Bet com t mudo

Minha foto
BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Carrancas do sertão - signos de ontem e de hoje

Antes de colocar novos textos, por ter voltado recentemente de uma viagem, com vontade de escrever sobre minhas observações, ideias e reflexões, é que reapresento este texto sobre as carrancas do sertão. Espécie de intervalo, também é registro de um assunto que sempre me representa.

Este texto foi refeito a convite de Arthur Catraio e foi publicado na revista virtual Cultura Crítica

http://www.culturacritica.cc/2016/10/carrancas-do-sertao-signos-de-ontem-e-de-hoje/?lang=pt-br



CARRANCAS DO SERTÃO
SIGNOS DE ONTEM E DE HOJE[1]



RESUMO:  Este trabalho tem como referência as carrancas, esculturas em madeira utilizadas como figuras de proa nas barcas do submédio rio São Francisco desde o final do século XIX; sua evolução representativa como arte popular brasileira e significados míticos; sua apropriação pela linguagem publicitária e pela mídia como ícone/símbolo da região e sua importância cultural e comercial para o artesanato.
Palavras-chave: carrancas, figuras de proa, signos míticos, arte popular

ABSTRACT: This paper makes reference to the figureheads, sculptures in wood, used in the boats of the submedium São Francisco River since the late nineteenth century; their representative evolution as brazilian popular art and mythical meanings; its appropriation by advertising language and the media as icon / symbol of the region and its cultural and commercial importance to the craftwork.
Keywords: figureheads, mystical signs, popular art




A palavra carranca significa basicamente cara feia ou disforme e como carrancas ficaram conhecidas as figuras de proa ou cabeças de proa das barcas utilizadas na região do médio rio São Francisco, esculturas em madeira de lei colocadas nas proas das embarcações, no final do século XIX até os meados do século XX. Desapareceram, substituídas por outros modelos de barcas, mais leves, e também por vapores que faziam o tráfego ribeirinho, transportando gente e carga, do porto de Juazeiro, Bahia, a Pirapora, Minas Gerais e vice-versa.
As carrancas hoje, do século XXI, principalmente nestas duas cidades, aparecem em produção comercial como artesanato típico, divulgadas como símbolo da região, importante polo de desenvolvimento na região Nordeste. As carrancas da região são ligeiramente diferentes das carrancas que aparecem em Minas Gerais e muito mais das figuras de proa que lhes deram origem, dominando o modelo carranca-vampiro, nos mais diferentes tamanhos e materiais, fácil de ser feita, segundo os artesãos locais.


Carranca original de barca da autoria de Francisco Biquiba de La Fuente Guarany (1882-1987) no acervo do Museu do Sertão, de Petrolina, PE. (Foto da autora)



        Modelo “carranca vampiro” vendida atualmente em loja de artesanato em Petrolina, PE. (Foto da autora)

Na história da navegação, as figuras de proa estiveram e ainda estão presentes em todo agrupamento humano que tenha alguma ligação com a água, seja o rio ou o mar. Assim, a presença de ornamentos ou figuras de proa é antiquíssima, com certas características universais desta arte. Os registros mais conhecidos referem-se aos barcos de guerra vickings, cujas figuras tinham a função fundamental de atemorizar o inimigo, representando animais fantásticos, como dragões e serpentes.
Há que se destacar dois pontos básicos em qualquer menção sobre as carrancas do sertão, relacionadas a um espaço simbólico sobre as águas do rio São Francisco em terras semiáridas. As figuras de proa das barcas do rio São Francisco são consideradas como arte popular brasileira e assim foram legitimadas.  Outro fato é a sua originalidade: não existe, no mundo todo, um similar como as carrancas fluviais brasileiras, de feitio zooantropomorfo, cabeças de proa esculpidas numa mistura criativa de gente e animal.
Seu poder simbólico, arraigado na visão do ribeirinho, espantava não só os monstros e perigos da navegação pelo rio, como agora, protege também casas e jardins, sincretizado como uma espécie de Exu doméstico. Daí porque, quanto mais feia, mais poderosa ela é, daí sua oscilação entre o artístico e o comércio em larga escala. Sabedoria popular compartilhada, como representação social que lhe confere sentido e, portanto, legitimidade. O modelo carranca-vampiro seguiu por esta linha, tornando-se cada vez mais medonha, com uma boca escancarada, grandes dentes, olhos esbugalhados.
O Instituto Moreira Salles montou uma significativa exposição no segundo semestre de 2015, primeiramente na Pinacoteca do Estado de São Paulo e depois na sede do Instituto no Rio de Janeiro, arrematada por um livro essencial, A viagem das carrancas. A exposição conseguiu reunir figuras de proa originais, de grandes mestres como Afrânio e Guarany, entre outros. Ressalta-se a publicação na revista O Cruzeiro, em 1947, dos registros fotográficos de Marcel Gautherot com as barcas e carrancas do rio São Francisco quando estas esculturas de origem popular adquiriram divulgação nacional e foram objeto de estudo e de referências, continuando a desafiar olhares e registros. Ver os diapositivos de Gautherot é um privilégio e hoje este material faz parte do acervo do Instituto.
A carranca também é vista como um objeto de estudo do Folclore, aqui revisitado em seu conceito, concomitante ao de cultura popular. Luiz Beltrão nos alertara, “o discurso folclórico, em toda a sua complexidade, não abrange apenas a palavra, mas também meios comportamentais e expressões não-verbais e até mitos e ritos que, vindos de um passado longínquo, assumem significados novos e atuais, graças à dinâmica da folkcomunicação. ” (In Encontro Cultural de Laranjeiras 20 anos, p. 43). Folkcomunicação que procura estabelecer a relação entre as manifestações da cultura popular e a comunicação de massa, evidenciada pela sociedade multimídia e consumista em que vivemos.
As carrancas foram minuciosamente estudadas e descritas por Paulo Pardal, ex-professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, falecido em 2004, cujo trabalho sempre foi referência obrigatória sobre este assunto: Carrancas do São Francisco. Uma terceira edição foi lançada em 2006, pela Editora Martins Fontes. Existe também um resumo deste livro, com o mesmo título, na coleção Cadernos do Folclore, número 29, editado pela Funarte, em 1979. E, não há dúvida, os trabalhos de Paulo Pardal muito ajudaram na divulgação e na consideração da importância das carrancas como arte popular brasileira.          
            Feitas originariamente em madeira-de-lei, o escultor se guiava mais por sua inspiração e pelas condições do tronco em que trabalhava. Dentre os escultores conhecidos destas carrancas originais, destaca-se, pela produção e qualidade, o escultor Guarany, Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany, descendente de um padre espanhol, de negros e de índios, nascido em Santa Maria da Vitória, na Bahia, em 1882, falecido com mais de 100 anos. Paulo Pardal colecionou e estudou sua obra cuidadosamente, dividindo-a em três fases, com base no elemento plástico mais característico: “o tratamento que dispensa à cabeleira das carrancas, espessa ou em relevo acentuado, abundante, cobrindo quase todo o pescoço.”
            As barcas da época usavam remos manejados por homens, um trabalho difícil e desgastante, que ficou na memória de muitos ribeirinhos. Segundo a tradição, ao se ouvir um gemido da carranca, imediatamente os remeiros tratavam de encostar as embarcações e salvar o que fosse possível, pois ao segundo ou terceiro e último gemido da carranca, o naufrágio era inevitável. No imaginário dos ribeirinhos, ainda se contam muitas histórias das assombrações do rio, especialmente o Nego-d ’Água e o Minhocão. Daí a feiúra das carrancas: serviam como amuleto, espantando o perigo. Paulo Pardal, no entanto, faz restrições a essa generalização da imagem da carranca como protetora da barca, principalmente das primeiras, cujos motivos para sua utilização teriam sido os de prestígio e indicação de propriedade, por imitação de figuras de proa antropomorfas, vistas por algum fazendeiro (ou antes algum comerciante) do São Francisco, em navios aportados no Rio de Janeiro ou Salvador. A interpretação mística só teria vindo depois desta imitação primeira.


 Barcas ancoradas em Juazeiro Bahia, com carrancas de Guarany, na enchente do rio São Francisco em 1929. (Foto sem autoria, de propriedade da autora)

            Paulo Pardal destacou a força arquetípica do símbolo fálico no formato das carrancas do São Francisco e seu caráter apotropaico[2]. Realmente, muito das interpretações das carrancas pode ser visto por estes caminhos, mesmo quando desviadas de sua função originária, como é o caso atual.
            Terminado o ciclo das barcas, já na década de 40, as carrancas perderam sua função na proa das embarcações, quando foram substituídas por outros modelos ou por novas tecnologias, embora algumas tenham subsistido ainda nos anos 50. O ressurgimento das carrancas se deu paulatinamente, como objeto decorativo, no comércio do artesanato, ou como ícone representativo da região, assegurando-se nos anos 70 com todo vigor.    
     
CARRANCAS PARA CONSUMO

Morando na região do submédio São Francisco há quarenta anos, tenho acompanhado o “boom” do comércio das carrancas como símbolo da região, comercializadas em larga escala nas lojas de artesanato, em diversos tamanhos, feitas de umburana, madeira leve e abundante na região, hoje mais escassa, raramente em pedra ou argila. Aparecem ainda em camisetas, chaveiros, canetas, ornamentos de carro, cinzeiros, vasos de argila, no chamado “artesanato de lembranças”. O acesso do público é diferente: não mais a contemplação restrita em museus, praças ou coleções particulares das originais carrancas das barcas. Para consumo das massas, praticamente em qualquer rodoviária ou feiras de artesanato, pode-se adquirir carrancas ou um adereço que as têm como motivo, com o modelo “vampiro” dominante.

Qual seria, portanto, o sentido de pertencimento que respalda a carranca, utilizada como símbolo da região? A história em seus meandros, como memória de um passado idealizado em mais representações de sentido, é uma justificativa para dar esse respaldo. Funda-se uma tradição que implica uma teia de interesses coletivos e significados individuais, a partir de um conceito básico, generalizado.
Vejam-se alguns exemplos dessa apropriação nas fotos. Evidentemente que uma leitura sígnica detalhada de cada uma em particular mostraria o complexo em que se insere o consumo atual desta referência.  As subjetividades do design, da mensagem sub-reptícia, dos meandros ideológicos de seu uso em diferentes processos comunicativos mostram a dinâmica dessa escolha.


                     Registros de usos da carranca como símbolo da região, de eventos e campanhas publicitárias.



                    “Orelhão” de telefone público ainda disponível em alguns lugares da cidade, como no aeroporto de Petrolina.

Portanto, temos um novo direcionamento para o signo carranca, funcionando também como alegoria, como ilustração visual. Claro que, por trás, está a simbolização de um lugar, mas o que interessa agora é, sobretudo, a referência icônica. A representação da carranca, vista como um estereótipo, foi assimilada pelo senso comum.
            Aspectos da Folkcomunicação, aqui referida no início deste trabalho, ficam evidenciados ao se mostrar a mediação do uso de um ícone da tradição popular não somente como objeto de relações públicas, mas também como ele é veiculado pelos meios de comunicação de massa, que fazem uso dessa imagem. Interessante observar que há uma tentativa de substituir este símbolo por outros aspectos do agronegócio da fruticultura da região, produtos considerados exóticos como os vinhedos e a produção de vinhos. Mas a carranca resiste e, neste ano de 2016, a novela “Velho Chico”, da rede Globo, reforça o arquétipo.
Vale registrar que a produção da novela encomendou carrancas aos artesãos da Oficina do Artesão de Petrolina e escolheu duas para compor o cenário. As carrancas escolhidas seguiam o modelo tido como original, de Guarany.


                  Ator da novela “Velho Chico” da rede Globo, como um artesão de carrancas. (“print” da novela)


                                   José Nildo Silva finalizando a carranca (foto de Lizandra Martins)


José Nildo Silva, artesão de carrancas, fez também recentemente uma série de carrancas “segundo o modelo Guarany”, a pedido de um “colecionador” do Rio de Janeiro. Encomendas desse tipo acontecem vez em quando. Uso próprio ou para o mercado de arte? Autoria reconhecida ou carrancas comercializadas como fraude? Suposições que considero pertinentes pois os artesãos sempre foram explorados por atravessadores neste comércio,
Para um conhecedor, mesmo uma réplica atual, sem dúvidas, agrega mais valor do que a carranca vampiro, hoje tão banalizada. O interessante é pensar nesta ressignificação da réplica, com algum alcance de originalidade. Afinal, feita por um artesão popular, de madeira, nas margens do rio São Francisco, obtém-se um rescaldo, ainda que ilusório, de justificativa da representação encomendada e comprada.
Há de se compreender a dinâmica desta perda e consequentes mudanças sob outras perspectivas, em que se amalgamam conotações e intenções, dentro do funcionamento social. “No sincretismo exprime-se o fim da lamentação pela perda da origem, da identidade fixa, da memória restauradora”, assinala Canevacci (1996, p. 10).
Parece-nos conveniente, nesta abordagem, tocar também na questão do “kitsch” e o artesanato popular. Ao se classificar como “kitsch” a maioria dos objetos produzidos pelo artesanato popular e destinada ao comércio de grande escala, levanta-se uma polêmica: os limites entre arte e artesanato são às vezes tênues e discutíveis, tanto que muitas lojas se colocam como “morada da arte” ou similar. O processo de apropriação do estatuto e referencial do artístico é, nestes casos, mais uma estratégia de marketing para o comerciante ou “ingenuidade”, relativa no caso de alguns artistas, embora muitos deles sejam bem críticos e pouco condescendentes sobre algumas peças ou o trabalho de colegas. Para a maioria dos artesãos, o que conta mesmo é o valor do retorno ou a sobrevivência através deste trabalho.
                Mas, para o público consumidor, o estereótipo funciona bem. Quanto mais horrenda é a carranca em sua expressão, mais ela é considerada, porque, simbolicamente, seria mais “poderosa”. Inclusive, tivemos oportunidade de ouvir, várias vezes, consumidores em lojas de artesanato, escolhendo carrancas e achando-as lindas, comparando umas com as outras. Afinal, a própria arte há muito perdeu a sua aura única nestes tempos de reprodutibilidade e de acesso massificado.      
Na correlação entre produção e consumo, o kitsch pode representar uma função mediadora, como fator de ampliação do auditório e vontade de um repertório mais amplo. Insistimos, saber colocar-se dentro deste olhar é tentar compreender também a dinâmica social e o ponto de vista do outro, no caso de uma classe social geralmente de baixo poder aquisitivo e pouco acesso a bens da cultura erudita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Já se percebe, portanto, que as carrancas do São Francisco, contemporaneamente, têm outra função, a sociedade não é mais a mesma, as relações de produção e consumo são determinadas agora por fatores relevantes como a publicidade e o turismo emergente. As massas consumistas de hoje apreciam o objeto também pela referência de um status que lhe é conferido. Há o consumidor elitista, que encomenda para um artesão de maior qualidade uma réplica das carrancas originais, até o receptor comum que procura uma “lembrancinha” de sua viagem e que não lhe pese muito, nem no bolso nem na bolsa...
            A qualidade parece lhe importar muito pouco. O referencial é outro e a aquisição deste “bem turístico”, exótico ou curioso, lhe faz bem.  O significado da aquisição deste objeto de consumo tem diversas conotações, bem mais complexas.  Ele não se restringe a esta motivação desencadeadora, mas também a outros componentes que lhe são passados e interiorizados.
            Já se observou que este consumo se dá na exploração capitalista dos desejos, da fantasia. Qualquer possível sentimento de culpa por esse consumismo desenfreado pode ser anulado pelo outro lado, por uma justificativa de um significado simbólico, neste caso das carrancas, do poder do amuleto, de que elas possuem também poderes mágicos, espantando maus-olhados e, portanto, atraindo boa sorte, o que quer dizer geralmente dinheiro, abundância. E mais consumo. Esta aparente ambivalência faz parte de um jogo de sincretismo cultural, em que o lúdico está representado até no próprio ato de consumir e expor um objeto adquirido em condições especiais, cuja utilidade está camuflada nos vários significados sociais.
Convivendo com processos de “culturalização” como esse, de produção acelerada de signos, de materiais semióticos a nos envolverem, somos obrigados a refletir no que isso significa em termos de identidade, de valor espiritual e ético. Hoje, não se tem mais qualquer possibilidade de um conceito romântico ou simplista de cultura. Como nos adverte Muniz Sodré: “Aí se revela o significado da disjunção radical entre produção e consumo: o consumidor perde definitivamente o acesso à originalidade da produção, o sujeito interessa num universo indiferenciado, compensado por simulações de diferenciação. ” (SODRÉ, 1983, p.87).
            Para o pesquisador, não dá mais para ser só descritivista, é preciso penetrar no conjunto polifônico das manifestações culturais e do funcionamento social, alargando horizontes interdisciplinares. Neste caso, lembrar dos interstícios da arte, do popular e do erudito, do seu consumo massivo, na conjunção contemporânea de uma realidade onde tudo é provisório.

Bibliografia consultada
BENJAMIM, Roberto. Folkcomunicação no contexto de massa. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 2000.
CANEVACCI, Massimo. Sincretismos - uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Nobel, 1996.
GUARESCHI, Pedrinho A. e JOVCHELOVITCH, Sandra (orgs.). Textos em representações sociais. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
MAMMI, Lorenzo (org.) A viagem das carrancas. São Paulo: coedição WMF Martins Fontes, Instituto do Imaginário Brasileiro do Instituto Moreira Salles, 2015.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações - comunicação, cultura e hegemonia. Rio: Editora UFRJ, 1997.
MARTINS, Saul. Contribuição ao estudo científico do artesanato. Belo Horizonte: s/ed., 1973.
MOREIRA, Elisabet G. Carrancas do Sertão Signos de ontem e de hoje, de 2006 (Petrolina: SESC/PE, 2006, 70 p.il.)
NASCIMENTO, Bráulio do (e outros). Encontro Cultural de Laranjeiras - 20 anos. Governo do Estado do Sergipe, s/ed., s/data.
PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. 2a. ed. Rio: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1981.
_______. A carranca: um símbolo fálico. In Revista da Comissão Mineira de Folclore, número 20, agosto de 1999, páginas 139-143.
PIGNATARI, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1981.
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. Rio: Codecri, 1983.
VALLADARES, Clarival do Prado e PARDAL, Paulo. Guarany 80 anos de carrancas. Rio: Berlendis & Vertecchia Editores Ltda., 1981.
ZALIZNIÁK et alii. “Sobre a possibilidade de um estudo tipológico-estrutural de alguns sistemas semióticos modelizantes”, in Schnaiderman, Boris (org.). Semiótica russa. São Paulo: Perspectiva, 1979.

(Petrolina, 21 de setembro de 2016)



[1] Este artigo baseia-se essencialmente no livro homônimo de Elisabet Gonçalves Moreira Carrancas do Sertão Signos de ontem e de hoje, de 2006, e em textos e observações posteriores, produtos de uma pesquisa que se desenrola há quatro décadas nas margens do rio São Francisco, em Petrolina, onde mora a autora.

[2] Do grego Apotropaios (que afugenta os males) (Dicionário Caldas Aulete)

Autora: Elisabet Gonçalves Moreira
Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, professora aposentada da UPE – Universidade de Pernambuco e do Instituto Federal Sertão de Petrolina. Faz pesquisas em literatura e cultura popular.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

ROTA SERTÃO-MUNDO


                                                        Elisabet Gonçalves Moreira

                                            Para Genivaldo do Nascimento


Notas de viagem... de uma que se foi recente, já que nos recentes me preparo para outra, saindo deste sertão, indo para um mundão que me desafia.

Pois bem, se o assunto é de outra rota, nela retorno. Em registro de palavras/crônica, uma narrativa do que teve encantos e também alguns contrários.

E nos entretantos, também há questionamentos: para que serve uma viagem, aquela tida como lazer ou turismo? O que nos move, como indivíduos, a estas aventuras, além da zona de conforto do lar-doce- lar, para o desconhecido e possíveis imprevistos?

Sim, prevemos antecipação de olhares, alegrias, conhecer e mostrar – também - que consumimos lazer em viagens de turismo, que compramos lembrancinhas, que comemos o que há de típico, que tiramos fotos, que postamos em redes sociais e que ficam armazenadas em nosso computador. Mas, o que fica em nossa memória? O que pudemos presenciar, nos distantes, permaneceu e permanece nas proximidades de nossas lembranças e no “upgrade” de nosso conhecimento?


A saída de Petrolina, nestas margens do rio São Francisco, se deu num setembro, já passado, de um ano que passa neste 2016. Éramos seis, com o motorista Chico, ex-caminhoneiro, eu, Dri, Juli, Veronique, Lucas. Uma dobló e seis pequenas malas, matulão de último tipo.

Cedinho, pela estrada de Ouricuri, fomos vendo as paisagens do sertão pernambucano. Pequenas cidades, vilas, arruados, fazendas cercadas. A seca castigando tudo, mas em tudo havia uma cisterna de sobrevivência, aquela que capta a água da chuva. As pedras, serrotes e olhares distantes acompanhando nosso trajeto.

Santa Cruz da Venerada, vista da rodovia, pareceu tão linda quanto seu nome. São Francisco apareceu venerado no nome do posto em parada para algumas delícias sertanejas a gosto de café da manhã.

Visita ao Museu do Gonzagão em Exu. Primeiro entrave: quase nada se pôde ver, centenas de estudantes, seus professores e comitivas em visita. Mas pisamos na terra do “rei”... havia certa pressa em chegarmos ao Ceará, almoço combinado para Nova Olinda e um dia todo a ser preenchido. Programações antecipadas, horários, são limitações que também cerceiam usufrutos e descobertas.



A Serra do Cariri nos acompanhava, magnífica, pelo lado esquerdo. Sabíamos que o Ceará estava do outro lado. No caminho passamos também por Bodocó e ouvimos a canção dos antigamente, do sofrimento na beleza da música de Luiz Gonzaga, pelo interfone de um paulista prevenido na escuta.

Pau de Arara

Quando eu vim do sertão,
seu moço, do meu Bodocó
A malota era um saco
e o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei (bis)
Trouxe um triângulo, no matulão
Trouxe um gonguê, no matulão
Trouxe um zabumba dentro do matulão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matulão

E, se houve a saída, sempre houve a esperança do 

Último pau-de-arara

A vida aqui só é ruim
Quando não chove no chão
Mas se chover dá de tudo
Fartura tem de montão
Tomara que chova logo
Tomara meu Deus tomara

Só deixo o meu cariri
No último pau-de-arara
Só deixo meu cariri
No último pau-de-arara

Enquanto a minha vaquinha
Tiver o couro e o osso
E puder com o chocalho
Pendurado no pescoço
Eu vou ficando por aqui
Que Deus do céu me ajude
Quem sai da terra natal
Em outros cantos não para
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara
Só deixo meu Cariri
No último pau-de-arara


A subida da serra é muito bonita. Grandes planos podem ser avistados, paisagens em andamento. Lá no alto, o Ceará em divisa. Nada tão longe que não se possa fazer em dois dias, como fizemos.

Em Nova Olinda, almoço simples e sertanejo, quase um prato feito, na Fundação Casa Grande, no centro da cidade. Ansiosos pelo café, soube do gosto quando feito sem coar... No pequeno museu, dois meninos sabidos e simpáticos nos ensinavam sobre os cariris, descendentes todos destas tribos ancestrais, dizimadas no “desbravamento” e conquista do sertão.

Mas a curiosidade e a intenção era visitar logo a oficina/ateliê do mestre Espedito Seleiro e... claro, comprar peças exclusivas de sua arte no couro. Desenhos “ciganos”, além das peças da vaqueirama, hoje em bolsas, sandálias, carteiras de consumo “chique”. Até Vero, a francesa, levou uma linda e original bolsa das artes sertanejas...

Vejam este link, achei interessante porque bem ilustrado. 

https://www.rascunhosdefotografia.com.br/espedito-seleiro/



Os desenhos de seu Espedito também se encontram em outras releituras. Como numa camiseta que ganhei de Lucas, comprada ainda na Fundação.

O calor abrasava no lugar comum da tarde. Para mim, algumas limitações depois dos 70, mas Juli ainda foi conversar com os filhos e sobrinhos do mestre no ateliê, artesãos em atividade. Já eu o conhecia de outra viagem, um artista em sua glória.

Saída para Santana do Cariri. Cidade linda, daquele interior onde a vida passa lentamente... Visita ao Museu de Paleontologia, administrado pela URCA – Universidade Regional do Cariri, cuja sede fica na cidade de Juazeiro do Norte. Jovens adolescentes agora são acompanhantes das visitas. Bem informados, mostram que aprenderam a lição. Aliás, vale a pena aumentar o conhecimento.


Esse mundo pré-histórico, que conhecemos globalmente como jurássico, ali impressiona. Fósseis, montagem e recriação de dinossauros e entornos, são um instigante registro para pensarmos nosso planeta e suas incertezas...

Mas havia um pôr-do-sol à nossa espera. Exatamente às 16 horas daquela terça-feira memorável, subimos para a “cruz do pontal” no extremo da serra. Visão espetacular. Antevisão do que deve ter sido o sertão quando foi mar.

Do restaurante vinha o cheiro da paçoca de carne de sol sendo feita. Café acompanhou o prazer que teve até sorvete para alguns. Lucas, Dri e Juli fizeram a trilha da descida do pontal. Tudo muito seguro, tranquilo. Seu Chico “desce” com o carro para pegar os aventureiros que depois sobem e todos nós vamos apreciar o entardecer.

Fotos e mais fotos; rapidamente o sol se põe atrás da serra, no outro extremo do vale. Aplaudi, entusiasmada. Mas fui chamada a atenção para o medo imbuído da noite que se instalava e da pouca gente no local.





Ida para a cidade do Crato, onde passaríamos a noite. Estrada ruim, o nosso moderno “pau-de-arara” chiava, apitava, num automático aviso de que havia porta destravada. Às vezes seu Chico parava, batia as portas e daí a pouco tudo recomeçava. Mas chegamos ao hotel Encosta da Serra, cansados e prontos para um banho e saída para jantar.

Restaurante Pau-d´Arco, ao lado do hotel.  Suco de laranja com couve, boa pedida. Mas o pedido foi de outra monta, de outra bronca. “Espera” me ordenam. Algo explode acumulado dentro de mim, sem eu me dar conta. Pode uma viagem também demonstrar o que estava dentro sem ser dito. Nem foi a primeira vez, para me lembrar – ainda hoje - que sou apenas uma engrenagem na peça, de valor equânime, mesmo em relações filiais. Enfim, viver é aceitar seus desafios e aprender a ficar no que somos, em viagem ou em casa. A chegada de Rúbia foi providencial; sem estragar a noite, o jantar foi selado. Assim pudemos voltar mais tranquilos para o descanso na encosta da serra na Chapada do Araripe.

Segundo e último dia da viagem. Café da manhã no hotel, saída para Juazeiro do Norte, atravessando a cidade do Crato.  Seu Chico assegurava que havia consertado o automático do carro...

Juazeiro do Norte, a terra do Padre Cícero, a porta para se entender a fé e a religiosidade do nordestino, dos seus romeiros em peregrinações. Conhecer como funciona esse mercado da fé é realmente algo instigante. Desde a ida ao Horto para mais uma subida de serra, e dali avistar não só a paisagem da seca ou a “arquitetura da sobrevivência” nas casinhas coladas umas às outras. Ter olhos também para constatar, florescida aos pés da gigantesca estátua do “padim”, centenas de romeiros, mendigos, doidos, beatas, ambulantes de todos os tipos, ex-votos, cenários, instalações, numa apologia da representação dos desígnios da fé. O que seria da história da humanidade sem suas crenças e seus lugares sagrados?

Lá você vê, revive histórias só com o olhar, se souber fazer isto. Ao seu lado, há uma beata pagando promessa, há uma mulher que chora emocionada durante a missa, uma vela, um terço, uma estátua do padim, um retratinho, uma lembrança para sempre preciosa.




Veronique se sentiu incomodada na sala dos ex-votos. Compreendo-a. É um soco no estômago. Um parêntese: quando estive na cidade, também santuário, de Lourdes, na França, muito me marcou ver placas e placas nas paredes da igreja, com os recados das mães pedindo proteção por seus filhos na primeira guerra mundial. A vida pulsa – como sempre – nas incertezas de nossa humanidade e nos mistérios da vida e da morte. Compreendo também como surge a fé e a esperança...

Vero me lembra, na releitura destas frágeis linhas pós-escritas, que, no mercado havia dezenas de exemplares de literatura de cordel. Compramos alguns e marcante está o folheto “A oração do fechamento de corpo que Padre Cícero deu a Lampião.” O cruzamento de mitos, de heróis e santos dialogam no imaginário sertanejo e pulsam até hoje.

Nosso pequeno grupo, que se dispersara, reúne-se para ir ao centro de Juazeiro do Norte visitar o memorial e a igreja do Padre Cícero. Preferi ficar por perto, nas barracas da praça, verdadeiro mercado de lembrancinhas religiosas, comidas, artesanato barato. Dali fomos para o almoço no restaurante típico, “Coisas do sertão”, um self-service, que, ao chegarmos, tinha quase todos as panelas, num grande fogão à lenha, já no final, raspados... Mas deu para “encher o bucho” e ainda comer rapadura de sobremesa.

E a volta... seu Chico e suas falas para a dobló que continuava a apitar sem parar... Paramos no entanto nas imediações de Bodocó para comprar queijo manteiga, queijo coalho, espécimes bem sertanejas. E, de novo, em Santa Cruz da Venerada para uma ida ao banheiro, café, doces...

Houve uma curiosidade: sim, seu Chico fez questão de mostrar e demonstrar. Logo depois de sair de Exu, na rodovia, o carro, mesmo em ponto morto, “sobe na descida” como se estivesse em marcha à ré... Vôte!

A serra do Cariri foi ficando para trás, no nosso lado direito. A chegada a Petrolina se deu antes de 7 da noite.

Dois dias apenas, mas bem cheios. Uma rota que nos mostrou – mesmo a mim que já a conhecia – o quanto este sertão oferece para viajantes em busca de horizontes, geográficos e humanos.


A crônica mereceu aprovação de Juli que assim se manifestou:

 “Esta viagem foi maravilhosa, acho que uma das mais belas que já fiz na minha vida. ... Éramos vários transplantados de outros mundos (São Paulo, Grécia, Itália, USA, França) convergendo numa viagem às brenhas de um sertão esquecido por tantos. Revivi o sertão, vi com outros olhos, passei tempo com a família e amigos queridos. Muitas descobertas e redescobertas não apenas das minhas raízes, mas de mim também e de cada um.”

Apois, o mundo está nas pegadas da história, do conhecimento que fazemos e conseguimos usufruir. Ponto final.

(Fotos de Juliana G. Moreira)

(Petrolina, em 10 de outubro de 2016)
(Releitura e fotos em 03/05/2020)

domingo, 25 de setembro de 2016

Retomando falas...


SIGNIFICÂNCIAS...

Significados adquiridos em especiais circunstâncias... Sete décadas de vida completei e um ano especial este que corre, decorre:  2016, pensando no privilégio de ser e estar também na segunda década do século XXI, eu que nasci no século passado... Até minha neta de 16 anos, é do século passado! Como isso parece pesar,  ah, o tempo... como não falar dele?

Aconteceram tantos fatos, acontecem, como uma festa de aniversário, um tempo de reunião em que tenho coragem para afirmar: estou sã e salva. E exibida desta condição... como num grande facebook ao vivo. (Que se danem os críticos e os invejosos!)

Sim, porque eu me curei de muitos medos que me atravancaram o cotidiano de menina, de moça, depois profissional e mulher que se esforçava para mostrar – não para si mesma! – mas para os outros que eu não só era capaz, como fazia... Isso não é um arremedo de autoajuda, apenas a constatação privilegiada de uma aprendizagem: o envelhecimento está me tornando sábia... não a intelectual sabida, mas uma pessoa se tornando gente, sem os excessos da crítica e de exigências. Apaziguando dores passadas, entendendo passagens...

Poderia elencar tópicos desta aprendizagem, sobretudo a generosidade, aqui aprendida neste Nordeste e nestas margens onde cheguei há exatamente 40 anos, casada com um homem também generoso de amor. Mas esqueceria outros que podem ser apreciados...
Por isso vou elencar fatos: alguns deles me levaram a este “balanço” de um setembro petrolinense:

- Fui homenageada no III Clisertão, um reconhecimento que me assusta até hoje: eu merecia realmente esta homenagem? Mais um exemplo de generosidade, de ex-alunos, como Genivaldo. E, por isso, relevante foi o painel chamado de expografia, que Thom Galiano planejou e conseguiu executar, me conhecendo pouco a pouco. 

- Terminei a tradução do livro de minha amiga francesa Veronique Bulteau, “Para uma antropologia do sertão”; consegui editar o livro impresso, divulguei, apresentei e ainda fiz o prefácio, já que Vero assim me pediu. E o Clisertão foi vivido, vivenciado plenamente, até mesmo finalmente conhecer Caititu, nos limites de Petrolina.

- Falando em prefácios:  redigi para Romilda e Thom, para livros inéditos que aguardamos e uma apresentação para a exposição dos desenhos de André Vítor Brandão, ainda no SESC. Exercícios de leitura e escrita. Até fiz alguns desenhos ilustrativos para os poemas de Thom, um outro desafio.

- Também consegui colocar virtualmente meu blog: www.betcomtmudo.com.br , depois de cinco anos, mas, confesso que, neste caso, estou questionando continuidades. Bom, não vem ao caso agora... vou continuar pensando depois.

- E a estreia em palco: fui atriz na peça O Terceiro Sinal, representando literalmente uma atriz de teatro. Quem assistiu, pôde ver esta performance que já se delineava há muitos anos, desde salas de aula, no conhecimento e interpretação de textos... A apresentação da peça foi o resultado de um formidável trabalho de equipe, em que aprendi mais ainda sobre a vida. À nossa trupe, deixo um agradecimento generoso também. Aplausos.

Por essas e outras é que, nesta alegoria de minha comemoração, no outono de minha vida, tomei como tema uma “deixa” de minha filha Juliana, “nunca é tarde para se reinventar, para se divertir”. Na compreensão desta frase otimista, é que me sinto também “salva”... Amanhã, se preciso for, me reinvento...

Aniversários e comemorações, mais do que nunca, hoje têm lembranças para os que vieram... Idealizei pequenos panôs que fiz um a um manualmente... qual o significado disso? Gosto muito de desenhar, de pintar, de trabalhos manuais. Tenho muitos livros e a internet para me inspirar. Então fiz lembrancinhas com muito carinho, usando várias técnicas, me inspirando e, a cada uma que fazia, me sentindo feliz e... generosa. Podem até não gostar, mas quis fazer este registro e deixar, para amigos um trabalho meu. Não é despedida, é lembrança.

Assim, em vez de engordar, já que tinha todos os quilos além da conta em remédios também além da conta, de mazelas como diabetes, artrose e o escambau, estou emagrecendo num outro patamar de consciência, de que escolho e simbolizo minhas dores passadas e atuais, e que o inevitável -  pois virá - me deixa tranquila e segura.

Espero que chegue a todos a generosidade deste obrigada, porque vem de um coração mais generoso também... 

Petrolina, 10 de setembro de 2016
Elisabet Gonçalves Moreira






quarta-feira, 1 de junho de 2016

Minicontos quase esquecidos... apologia da crueldade?

 
                                              Elisabet Gonçalves Moreira

Comilança

Havia alegria na mesa. Banquete de gente simples. O prato principal chegou. Finalmente o aniversariante foi servido.

Solução

Margarete chorava por tudo. Violeta enxugava e enxugava. Até que não aguentou mais. Jogou Margarete no rio.

Descrição

O sol se punha no horizonte. As cores quentes dos vermelhos e amarelos se misturavam aos azuis das nuvens em brancos e cinzas matizando o crepúsculo. O espetáculo se refletia no oceano. Num dia de chuva Ivan mergulhou na tela do seu quadro.

Boneca de papel

Cris tinha essa mania desde criança: recortar bonecas de papel, vesti-las com diferentes trajes e adereços, tudo com muito cuidado para não estragar dobras e vinhetas. A boneca grega lhe deu muito trabalho. Tanto que, ao vê-la dançar, não teve dúvidas, amassou suas pernas até que ela parasse.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A HORA DA ESTRELA

A HORA DA ESTRELA: RESCALDO DE UM DEBATE 

Elisabet Gonçalves Moreira

“Quando as estrelas nascem e quando morrem, elas emitem radiação UV. Se víssemos o céu noturno somente com a luz ultravioleta, quase todas as estrelas iriam desaparecer e só iríamos ver nascimentos e mortes espetaculares. ” Stephen Hawking
“Eu vos direi "Amei para entendê-las
Pois só quem ama pode ter ouvidos
Capaz de ouvir e entender as estrelas."   Olavo Bilac

 
Neste maio de 2016, um alvoroço em minha vida, quase uma estrela... Depois de ser apresentada como crítica literária, um jargão em alguns eventos, também me atrevo – e gosto muito disso – em fazer crítica de cinema... no caso, a partir do convite de Chico Egídio, na dinâmica de seu exitoso projeto de cineclube no espaço Janela 353, para fazer a mediação do debate após exibição do filme A HORA DA ESTRELA, de Suzana Amaral. O desafio antecipava dois pontos básicos: “Mostra Brasil Mulher” no mês de maio, filmes nacionais de mulheres ou sobre mulheres e o fato de o filme ser uma produção baseada no livro A HORA DA ESTRELA, de Clarice Lispector.
Pensei em várias possibilidades, começando por comparar o livro com o filme, a adaptação para outra linguagem, pois muitos alunos e professores acreditam que basta ver o filme para dispensar a leitura do livro. Afinal, em quase duas horas de filme, com o olhar focado na tela, acompanhando a dinâmica das imagens e diálogos, fruímos de um ato que pode se tornar mais atraente do que a leitura, porquanto se daria em outro tipo de uso do tempo e da concentração. Observo que isso acontece não só por comodismo, mas também porque as propostas curriculares atuais se tornaram um arremedo do prazer da leitura, impondo leituras obrigatórias para vestibulares e exames do ensino fundamental, num mundo competitivo e de excesso de informações. Uma discussão que, didática e pedagogicamente, pode render bastante.
No entanto, a mediação para a qual fora convidada, era justamente um debate sobre o filme e não uma aula convencional. Foi interessante também perguntar no debate sobre quem havia lido o livro e, no conjunto, apenas três pessoas responderam sim, por causa da obrigatoriedade no ensino médio. Portanto, esse aspecto livro/filme foi mais citado do que estudado. Embora eu – e também a crítica em geral – ateste que a cineasta conseguiu, no filme, a essência da Macabéa, referência fundamental da narrativa. Os problemas existenciais da personagem imbricam e dialogam na questão social, de nosso país. Mesmo com diferenças significativas, observamos a recriação da linguagem cinematográfica, entrecruzando outras mediações em sua multiplicidade de signos.
Ressalto a fala do cineasta Jorge Furtado que, inclusive, fez uma adaptação de A Hora da Estrela para a tv.  Deixou “registrado... que as narrativas audiovisuais, por melhores que sejam, não substituem a importância e o prazer da leitura. Só a leitura produz escritores e só a leitura produz bons cineastas. O cinema e a televisão criam imagens, a leitura cria imaginação. ”
http://www.casacinepoa.com.br/as-conexões/textos-sobre-cinema/adaptação-literária -para-cinema-e-televisã
O filme original é de 1985, dirigido por Suzana Amaral que também assina o roteiro e uma equipe das várias linguagens que perfazem uma produção cinematográfica. Entretanto, em 2009, foi feita uma cópia de restauração do original, a que pude assistir em meu computador, pelo youtube.com e muito me admirei em verificar, nos créditos, uma outra grande equipe. Então, a pergunta que fica: qual o filme a que assistimos? Seria a mesma coisa? Neste 2016, o que, em termos técnicos de cinematografia, isso representa? Infelizmente, em nosso caso, Chico Egídio projetou o filme original, bastante prejudicado no aspecto visual, depois de 31 anos! Posso dizer que as modificações feitas no filme melhoraram muito a qualidade e o prazer do acompanhamento da montagem. Essa possibilidade técnica não é a mesma que se aplica ao texto de Clarice Lispector, a obra literária em seu trato finalizado com a palavra escrita. Essas questões podem ser complexas, se pensarmos em adaptações e restaurações de filmes antigos, mas é importante ficarmos atentos pois tudo na obra lhe confere significado. Um caso para ser pensado e completado em outros desafios.
Portanto, vamos a alguns itens que abriram e foram complementados no debate.

1.       O filme apresenta uma narrativa linear, começo, meio e fim, com pequenas epifanias que nos levam ao mundo da protagonista, Macabéa. A diretora e roteirista Suzana Amaral estudou cinema nos Estados Unidos e declarou que foi só a partir da leitura do livro de Clarice que se deu conta da situação da classe social proletária no Brasil e fez o filme. Associo também aqui a referência dolorosa de Clarice, em sua última entrevista para a TV Cultura, para a “inocência pisada”, a “miséria anônima” de sua personagem. Neste caso, A HORA DA ESTRELA, o filme, atinge o objetivo geral de mostrar o Brasil pela mulher, ou a mulher brasileira, aqui representada?

Sim, foi a resposta geral. A questão de gênero, no contraponto Macabéa em sua ingenuidade passiva e Olímpico, o namorado grosseiro e machista, é evidente. Esclarecedor foi também o comentário de uma participante, natural de Cajazeiras, na Paraíba, terra de Marcelia Cartaxo, a atriz que representa Macabéa, ao afirmar que, ainda hoje, ela conhece muitas Macabéas, sempre esperando da vida sua “hora da estrela”, sem se dar conta do mundo real e desmistificador deste sonho pueril e habitado no imaginário de tantas mulheres.

"Te dou um Céu
Cheio de Estrelas
Feitas com caneta bic
Num papel de Pão."
                                                          Zeca Baleiro

2.       Sigo dois postulados básicos: o da análise imanente da obra, partindo de seu funcionamento interno e o de que “nenhuma análise esgota um verdadeiro texto artístico”, seja um livro ou um filme e como eles dialogam com a realidade e a representação. Assim, sempre que vejo um filme, observo com atenção o uso das metáforas, onde elas funcionam como leituras subjetivas e criativas do diretor ou da montagem. E como a ideologia está aí, presente ou subjacente nestas escolhas. O olhar do receptor é fundamental nesta interação.
“No que se refere à criação cinematográfica, as metáforas podem estar inscritas em cada plano por meio de símbolos de conotações distintas; sendo assim é necessário entender primeiro seu significado individual para depois compreender o sentido completo do filme. A metáfora, ao conotar algo diferente daquilo que ela denota, pertence ao tipo de mecanismos que se usa na literatura e no cinema para levar ao leitor e ao espectador um nível de significação não primária. Um elemento pode ser metafórico ou não dependendo do quadro no qual se insere, e, no caso do cinema, no plano. ”
           Estefania Cano Reyes, La metáfora en el cine.
https://cafecin.wordpress.com/2012/12/01/la-metafora-en-el-cine-por-estefania-cano-reyes/

3.       Sobre o significado dos nomes próprios e seus respectivos personagens. Macabéa, um feminino de Macabeus, do Antigo Testamento bíblico, que conta a história e libertação dos judeus depois da conquista de Alexandre, cognominado o Grande; os judeus, numa sequência de lutas e conquistas, tiveram a liberdade religiosa cerceada, assim como a heroína do romance e do filme, uma sobrevivente num mundo opressor que limita sua liberdade de se entender como gente, até mesmo de existir. Seria Macabéa a metáfora do momento?  Olímpico: um nordestino de físico nada atlético, esperto, o índio guerreiro, sua grossura, seu machismo revoltante (e que não revolta Macabéa, sempre passiva); Glória, “galega de farmácia”, qual a sua glória? Observar que ela faz um contraponto de tipo de mulher, sempre bem pintada e arrumada, com a desajeitada Macabéa. Mesmo que ela também acabe sempre perdendo em sua vida amorosa.

4.       Outros personagens: a cartomante: ex-prostituta que sabe tudo da vida, do passado e do futuro, antecipando o final da ingênua Macabéa que sorri esperançosa (não posso deixar de fazer uma associação evidente com o conto A cartomante de Machado de Assis); as colegas de quarto, vidas da periferia, quais os sonhos e o futuro destas moças? E os homens? Detêm o poder?  Detêm o poder, mas esse não pertence aos pobres, aos oprimidos, todos perdedores. Basta lembrar o sonho de Olímpico em ser deputado e o seu discurso, aplaudido somente por uma moradora de rua.

5.       Aliás, analisar Macabéa, nossa estrela, é fundamental. A personagem em si, a atriz que a interpreta, o papel social como mulher e empregada sem qualificação, na iminência de perder o emprego, sem ninguém na vida, sem família, sem afetos. O fato de Macabéa “catar milho” na máquina de escrever é uma metáfora forte, não só de sua incapacidade neste fazer, mas de sua incapacidade de linguagem, de se comunicar, de querer “ser gente”, sem consciência de si mesma. O fato de ela gostar de se distrair aos domingos indo ao metrô, nos subterrâneos da cidade grande, funcionaria como outra metáfora? Sua invisibilidade se manifestaria neste gosto esdrúxulo?

6.       “Rádio relógio”: Uma ironia, a nos provocar o riso e a reflexão. Ironia que já está no livro de Clarice, na audição de uma “cultura inútil”, sem sentido, a não ser curiosidades e clichês, típicos do saber e do senso comum.  Será este o propósito para o povo brasileiro além do elementar? É disto que ele precisa? Faz sentido a mediocridade, também a periferia do conhecimento?
       “É na sua produção cultural que um povo se reconhece e, se     reconhecendo, pode se transformar”.
             Jorge Furtado

7.       Seguimos o filme, não com a palavra como no livro, mas com o “olho da câmera”. Então, o que faz aquele gato em cena? O gato no escritório, zanzando, o close nele comendo o rato morto, logo após Glória trair Macabéa para tirar seu namorado. Funciona como metáfora icônica da traição, da esperteza em que o maior come o menor, fácil de decodificar neste caso. Gosto muito de pensar nestes detalhes, nada surge de graça. Partes do todo, da dialética dos significados.  Até a salsicha saindo do pão em mais de uma cena, a parede com recortes de revistas perto da cama de Macabéa...  Pensar também no destaque ao canto do bem-te-vi, quando Olímpico posa para a foto e Macabéa observa. Mais do que efeitos de montagem, observamos “bem-te-vis” nos (des)encontros deste casal nada bem visto...

8.       A música, acompanhante incidental da maioria das cenas, torna-se reveladora quando ópera e quando valsa, funcionando como clichês para os sentimentos de Macabéa, facilitando esse entendimento.  O cinema ainda é uma arte de diversão, de recepção para o “público em geral”.

No fim, vence quem: a ideologia do capitalismo, de seus valores, a “hora da estrela” para Macabéa é a de sua morte como única possibilidade, após o discurso encorajador da cartomante para um futuro de final feliz. No livro isso é cruel, morre a palavra; no filme é uma alegoria... Poético nesse voo final daquela Macabéa que queria apenas ser gente e feliz. Simbólico, como deve ser a poesia em todas as artes.

“Somos todos viajantes de uma jornada cósmica - poeira de estrelas, girando e dançando nos torvelinhos e redemoinhos do infinito. A vida é eterna. Mas suas expressões são efêmeras, momentâneas, transitórias”  . Deepak Chopra 
 
Observação: as citações entre aspas servem não só como referência, mas, sobretudo, como instigadoras de contrapontos e reflexões.

domingo, 1 de maio de 2016

Um olhar estrangeiro sobre o Sertão

Amigos todos, escrevi o prefácio para o livro de Veronique Bulteau, "Para uma antropologia do Sertão - Ecologia e Sociologia do cotidiano" após ter feito a tradução.  No prefácio, procurei pontuar os aspectos mais significativos deste trabalho em Antropologia Social, feito na Sorbonne, Paris, com orientação de M. Michel Maffesoli. Tenho certeza que, após conhecerem este trabalho, nunca mais verão o Sertão e o Sertanejo da mesma forma. O livro também estará disponível em e-book, bancado pela UPE e em edição impressa, pessoal.
(Quem quiser o livro, entre em contato comigo).






À guisa de prefácio

UM OLHAR ESTRANGEIRO SOBRE O SERTÃO


Geralmente é sob esta perspectiva que a tese de Veronique Bulteau sobre o sertão brasileiro desperta atenção e curiosidade. Francesa, estudou em Paris, na Sorbonne, e escreveu duas teses sobre o Sertão, uma equivalente ao nosso Mestrado e a outra ao Doutorado. Acrescente-se também o fato de ter sido o renomado sociólogo Michel Maffesoli seu orientador, na área de Antropologia Social, para esta monografia.

Mas é lendo seu trabalho de pesquisadora e estudiosa que mais surpresas acontecem no que tem de desvelador seu olhar sobre o sertão brasileiro e o sertanejo, aquilo que ela subintitula de “Ecologia e Sociologia do Cotidiano”. Sobretudo, para mim, que “traduzi” este trabalho, mesmo sem ser da área e muito menos uma tradutora profissional, sempre acreditei que o trabalho de Veronique Bulteau não poderia ficar desconhecido.

Há uma expressão francesa bastante comum: “joie de vivre”, literalmente “alegria de viver”, e ao caracterizar e demonstrar este comportamento social no sertanejo desta região, já somos tomados de um certo assombro. O sertanejo, sujeito às secas cíclicas de seu meio ambiente, é visto sob um prisma diferente. Como nesta afirmação: “Neste sentido, trata-se de um mistério, uma vez que a vida do sertanejo parece infernal para o outro – o não sertanejo. Sua arte de viver é algo que permanece apenas entre seu povo. Uma alegria de viver que recobre uma vitalidade, um sentido de festa e de hedonismo”.


Bem fundamentada teoricamente e tendo observado na prática o cotidiano sertanejo na longínqua Caititu, localidade do município de Petrolina, em Pernambuco, Veronique Bulteau justifica seu ponto de vista, indo de encontro a muitos estereótipos. Certo que muito da visão sombria sobre o Nordeste e seu sertão vem mudando, mas este trabalho foi escrito em 1992, portanto há mais de duas décadas. E, mesmo que neste século XXI, as condições sejam outras, na dinâmica histórica e social, seu trabalho ainda é inovador e sua divulgação é de singular importância.

Outro questionamento feito pela autora é fundamental e, pessoalmente, não entendo como até hoje – pelo que conheço – ninguém fez esta pergunta “Qual é o sentimento do sertanejo?” Ninguém se colocou no olhar do outro, do próprio sertanejo. “Em conversas ou contatos, ressalta-se que a vida é difícil, “a vida aqui é uma luta”, mas “boa”. O que a torna assim é o sentimento de pertencimento a uma comunidade, e a existência de laços de reciprocidade quase indestrutíveis.”

É por isso que a sociedade sertaneja não pode ser apreendida senão a partir do todo, de uma visão global, holística. Se existe o registro seca/chuva em seu meio ambiente, em seu cotidiano, a principal preocupação do sertanejo é a seca ou água ou, como ela mesmo diz que, “por uma aliança de contrários, dá no mesmo”. É nessa alternância da festa de viver e da dor de viver que Veronique Bulteau classifica o Sertão como “naturalmente” dionisíaco.

Escrevendo para um leitor francês, um trabalho acadêmico, no entanto sua leitura se torna atraente para nós mesmos, o leitor brasileiro que, de repente, se vê no meio de conjeturas e hipóteses para as quais não havia atinado ou não conhecia.

Outros aspectos extremamente interessantes, bem estudados e exemplificados, são citados com base numa bibliografia de fôlego no conjunto deste trabalho. Ressalte-se o destaque para a marcante presença indígena na civilização sertaneja, seu nomadismo inerente, além de traços histórico-sociais como o messianismo, o cangaço, a tradição oral, o corpo “como matéria que veicula a energia vital e que faz de cada um ator da vida cotidiana.

Se existe uma antropologia aplicada ao Sertão, Veronique Bulteau acrescenta sua contribuição para uma antropologia do Sertão nesse estudo, onde realça que “a elaboração de uma sociologia compreensiva da cultura sertaneja nos permitiu percorrer diversos caminhos que se interceptam em um cruzamento nodal, o de uma sociologia do imaginário.”

Então, é isso – e muito mais. Apresento o trabalho de minha amiga, uma amizade que começou há muitos anos e que se fortaleceu na troca de mensagens, de interesses comuns, de livros, de presentes e de presença... E não foi diferente nestes últimos meses de escritas, reescritas, correções... Agradeço a ela – que me agradece – e também a Odomaria Bandeira que, gentilmente leu minha tradução, me orientou e corrigiu alguns termos próprios da área de Antropologia em português.
Nenhum trabalho está completo em definitivo, até porque Veronique Bulteau tem outra tese sobre o Sertão... mas, neste aqui, sem dúvidas, o leitor terá indicadores fundamentais para uma compreensão mais completa desse espaço, o Sertão, e do ser que o habita, o sertanejo.

Elisabet Gonçalves Moreira *
Petrolina, março de 2016


* Elisabet Gonçalves Moreira é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada. Mora em Petrolina desde 1976, onde se aposentou como professora pela UPE e pelo IF Sertão.