Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

ROTA SERTÃO-MUNDO


                                                        Elisabet Gonçalves Moreira

                                            Para Genivaldo do Nascimento


Notas de viagem... de uma que se foi recente, já que nos recentes me preparo para outra, saindo deste sertão, indo para um mundão que me desafia.

Pois bem, se o assunto é de outra rota, nela retorno. Em registro de palavras/crônica, uma narrativa do que teve encantos e também alguns contrários.

E nos entretantos, também há questionamentos: para que serve uma viagem, aquela tida como lazer ou turismo? O que nos move, como indivíduos, a estas aventuras, além da zona de conforto do lar-doce- lar, para o desconhecido e possíveis imprevistos?

Sim, prevemos antecipação de olhares, alegrias, conhecer e mostrar – também - que consumimos lazer em viagens de turismo, que compramos lembrancinhas, que comemos o que há de típico, que tiramos fotos, que postamos em redes sociais e que ficam armazenadas em nosso computador. Mas, o que fica em nossa memória? O que pudemos presenciar, nos distantes, permaneceu e permanece nas proximidades de nossas lembranças e no “upgrade” de nosso conhecimento?


A saída de Petrolina, nestas margens do rio São Francisco, se deu num setembro, já passado, de um ano que passa neste 2016. Éramos seis, com o motorista Chico, ex-caminhoneiro, eu, Dri, Juli, Veronique, Lucas. Uma dobló e seis pequenas malas, matulão de último tipo.

Cedinho, pela estrada de Ouricuri, fomos vendo as paisagens do sertão pernambucano. Pequenas cidades, vilas, arruados, fazendas cercadas. A seca castigando tudo, mas em tudo havia uma cisterna de sobrevivência, aquela que capta a água da chuva. As pedras, serrotes e olhares distantes acompanhando nosso trajeto.

Santa Cruz da Venerada, vista da rodovia, pareceu tão linda quanto seu nome. São Francisco apareceu venerado no nome do posto em parada para algumas delícias sertanejas a gosto de café da manhã.

Visita ao Museu do Gonzagão em Exu. Primeiro entrave: quase nada se pôde ver, centenas de estudantes, seus professores e comitivas em visita. Mas pisamos na terra do “rei”... havia certa pressa em chegarmos ao Ceará, almoço combinado para Nova Olinda e um dia todo a ser preenchido. Programações antecipadas, horários, são limitações que também cerceiam usufrutos e descobertas.



A Serra do Cariri nos acompanhava, magnífica, pelo lado esquerdo. Sabíamos que o Ceará estava do outro lado. No caminho passamos também por Bodocó e ouvimos a canção dos antigamente, do sofrimento na beleza da música de Luiz Gonzaga, pelo interfone de um paulista prevenido na escuta.

Pau de Arara

Quando eu vim do sertão,
seu moço, do meu Bodocó
A malota era um saco
e o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei (bis)
Trouxe um triângulo, no matulão
Trouxe um gonguê, no matulão
Trouxe um zabumba dentro do matulão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matulão

E, se houve a saída, sempre houve a esperança do 

Último pau-de-arara

A vida aqui só é ruim
Quando não chove no chão
Mas se chover dá de tudo
Fartura tem de montão
Tomara que chova logo
Tomara meu Deus tomara

Só deixo o meu cariri
No último pau-de-arara
Só deixo meu cariri
No último pau-de-arara

Enquanto a minha vaquinha
Tiver o couro e o osso
E puder com o chocalho
Pendurado no pescoço
Eu vou ficando por aqui
Que Deus do céu me ajude
Quem sai da terra natal
Em outros cantos não para
Só deixo o meu Cariri
No último pau-de-arara
Só deixo meu Cariri
No último pau-de-arara


A subida da serra é muito bonita. Grandes planos podem ser avistados, paisagens em andamento. Lá no alto, o Ceará em divisa. Nada tão longe que não se possa fazer em dois dias, como fizemos.

Em Nova Olinda, almoço simples e sertanejo, quase um prato feito, na Fundação Casa Grande, no centro da cidade. Ansiosos pelo café, soube do gosto quando feito sem coar... No pequeno museu, dois meninos sabidos e simpáticos nos ensinavam sobre os cariris, descendentes todos destas tribos ancestrais, dizimadas no “desbravamento” e conquista do sertão.

Mas a curiosidade e a intenção era visitar logo a oficina/ateliê do mestre Espedito Seleiro e... claro, comprar peças exclusivas de sua arte no couro. Desenhos “ciganos”, além das peças da vaqueirama, hoje em bolsas, sandálias, carteiras de consumo “chique”. Até Vero, a francesa, levou uma linda e original bolsa das artes sertanejas...

Vejam este link, achei interessante porque bem ilustrado. 

https://www.rascunhosdefotografia.com.br/espedito-seleiro/



Os desenhos de seu Espedito também se encontram em outras releituras. Como numa camiseta que ganhei de Lucas, comprada ainda na Fundação.

O calor abrasava no lugar comum da tarde. Para mim, algumas limitações depois dos 70, mas Juli ainda foi conversar com os filhos e sobrinhos do mestre no ateliê, artesãos em atividade. Já eu o conhecia de outra viagem, um artista em sua glória.

Saída para Santana do Cariri. Cidade linda, daquele interior onde a vida passa lentamente... Visita ao Museu de Paleontologia, administrado pela URCA – Universidade Regional do Cariri, cuja sede fica na cidade de Juazeiro do Norte. Jovens adolescentes agora são acompanhantes das visitas. Bem informados, mostram que aprenderam a lição. Aliás, vale a pena aumentar o conhecimento.


Esse mundo pré-histórico, que conhecemos globalmente como jurássico, ali impressiona. Fósseis, montagem e recriação de dinossauros e entornos, são um instigante registro para pensarmos nosso planeta e suas incertezas...

Mas havia um pôr-do-sol à nossa espera. Exatamente às 16 horas daquela terça-feira memorável, subimos para a “cruz do pontal” no extremo da serra. Visão espetacular. Antevisão do que deve ter sido o sertão quando foi mar.

Do restaurante vinha o cheiro da paçoca de carne de sol sendo feita. Café acompanhou o prazer que teve até sorvete para alguns. Lucas, Dri e Juli fizeram a trilha da descida do pontal. Tudo muito seguro, tranquilo. Seu Chico “desce” com o carro para pegar os aventureiros que depois sobem e todos nós vamos apreciar o entardecer.

Fotos e mais fotos; rapidamente o sol se põe atrás da serra, no outro extremo do vale. Aplaudi, entusiasmada. Mas fui chamada a atenção para o medo imbuído da noite que se instalava e da pouca gente no local.





Ida para a cidade do Crato, onde passaríamos a noite. Estrada ruim, o nosso moderno “pau-de-arara” chiava, apitava, num automático aviso de que havia porta destravada. Às vezes seu Chico parava, batia as portas e daí a pouco tudo recomeçava. Mas chegamos ao hotel Encosta da Serra, cansados e prontos para um banho e saída para jantar.

Restaurante Pau-d´Arco, ao lado do hotel.  Suco de laranja com couve, boa pedida. Mas o pedido foi de outra monta, de outra bronca. “Espera” me ordenam. Algo explode acumulado dentro de mim, sem eu me dar conta. Pode uma viagem também demonstrar o que estava dentro sem ser dito. Nem foi a primeira vez, para me lembrar – ainda hoje - que sou apenas uma engrenagem na peça, de valor equânime, mesmo em relações filiais. Enfim, viver é aceitar seus desafios e aprender a ficar no que somos, em viagem ou em casa. A chegada de Rúbia foi providencial; sem estragar a noite, o jantar foi selado. Assim pudemos voltar mais tranquilos para o descanso na encosta da serra na Chapada do Araripe.

Segundo e último dia da viagem. Café da manhã no hotel, saída para Juazeiro do Norte, atravessando a cidade do Crato.  Seu Chico assegurava que havia consertado o automático do carro...

Juazeiro do Norte, a terra do Padre Cícero, a porta para se entender a fé e a religiosidade do nordestino, dos seus romeiros em peregrinações. Conhecer como funciona esse mercado da fé é realmente algo instigante. Desde a ida ao Horto para mais uma subida de serra, e dali avistar não só a paisagem da seca ou a “arquitetura da sobrevivência” nas casinhas coladas umas às outras. Ter olhos também para constatar, florescida aos pés da gigantesca estátua do “padim”, centenas de romeiros, mendigos, doidos, beatas, ambulantes de todos os tipos, ex-votos, cenários, instalações, numa apologia da representação dos desígnios da fé. O que seria da história da humanidade sem suas crenças e seus lugares sagrados?

Lá você vê, revive histórias só com o olhar, se souber fazer isto. Ao seu lado, há uma beata pagando promessa, há uma mulher que chora emocionada durante a missa, uma vela, um terço, uma estátua do padim, um retratinho, uma lembrança para sempre preciosa.




Veronique se sentiu incomodada na sala dos ex-votos. Compreendo-a. É um soco no estômago. Um parêntese: quando estive na cidade, também santuário, de Lourdes, na França, muito me marcou ver placas e placas nas paredes da igreja, com os recados das mães pedindo proteção por seus filhos na primeira guerra mundial. A vida pulsa – como sempre – nas incertezas de nossa humanidade e nos mistérios da vida e da morte. Compreendo também como surge a fé e a esperança...

Vero me lembra, na releitura destas frágeis linhas pós-escritas, que, no mercado havia dezenas de exemplares de literatura de cordel. Compramos alguns e marcante está o folheto “A oração do fechamento de corpo que Padre Cícero deu a Lampião.” O cruzamento de mitos, de heróis e santos dialogam no imaginário sertanejo e pulsam até hoje.

Nosso pequeno grupo, que se dispersara, reúne-se para ir ao centro de Juazeiro do Norte visitar o memorial e a igreja do Padre Cícero. Preferi ficar por perto, nas barracas da praça, verdadeiro mercado de lembrancinhas religiosas, comidas, artesanato barato. Dali fomos para o almoço no restaurante típico, “Coisas do sertão”, um self-service, que, ao chegarmos, tinha quase todos as panelas, num grande fogão à lenha, já no final, raspados... Mas deu para “encher o bucho” e ainda comer rapadura de sobremesa.

E a volta... seu Chico e suas falas para a dobló que continuava a apitar sem parar... Paramos no entanto nas imediações de Bodocó para comprar queijo manteiga, queijo coalho, espécimes bem sertanejas. E, de novo, em Santa Cruz da Venerada para uma ida ao banheiro, café, doces...

Houve uma curiosidade: sim, seu Chico fez questão de mostrar e demonstrar. Logo depois de sair de Exu, na rodovia, o carro, mesmo em ponto morto, “sobe na descida” como se estivesse em marcha à ré... Vôte!

A serra do Cariri foi ficando para trás, no nosso lado direito. A chegada a Petrolina se deu antes de 7 da noite.

Dois dias apenas, mas bem cheios. Uma rota que nos mostrou – mesmo a mim que já a conhecia – o quanto este sertão oferece para viajantes em busca de horizontes, geográficos e humanos.


A crônica mereceu aprovação de Juli que assim se manifestou:

 “Esta viagem foi maravilhosa, acho que uma das mais belas que já fiz na minha vida. ... Éramos vários transplantados de outros mundos (São Paulo, Grécia, Itália, USA, França) convergendo numa viagem às brenhas de um sertão esquecido por tantos. Revivi o sertão, vi com outros olhos, passei tempo com a família e amigos queridos. Muitas descobertas e redescobertas não apenas das minhas raízes, mas de mim também e de cada um.”

Apois, o mundo está nas pegadas da história, do conhecimento que fazemos e conseguimos usufruir. Ponto final.

(Fotos de Juliana G. Moreira)

(Petrolina, em 10 de outubro de 2016)
(Releitura e fotos em 03/05/2020)