Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quarta-feira, 25 de junho de 2025

NAS RAIAS DAS (IN)CERTEZAS: ENCONTRO IMAGINÁRIO: DURAND, BAKHTIN E PEIRCE

 

Para que a criação ocorra é necessário imaginar, princípio básico. Assim, posso criar um encontro imaginário, mesmo que introdutoriamente, entre o francês Gilbert Durand (1921-2012), o russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) e o estadunidense Charles S. Peirce (1839-1914).

Nas minhas pesquisas, já os havia encontrado e percebido os liames epistemológicos do que defenderam e desenvolveram criativamente. De referência comum há o fato de todos eles terem sido filósofos, entre outras atribuições, o que antecipa idiossincrasias em suas concepções teóricas e o pragmatismo distintivo de cada um.

Espécie de incipiente roteiro teatral para esse encontro fictício, procuro sintetizar alguns postulados dos envolvidos, em que também me situo e admito. São muitos anos de estudo e de embates metodológicos, artigos e trabalhos práticos, alguns publicados. Entendo que a própria seleção dos envolvidos – apenas três - já implica num olhar limitado, senão atrevido, de interesse pela reflexão e pela empatia com as teorias que os caracterizam, tentando mostrar, ainda que sumária e racionalmente, onde se encontram e onde se distinguem.

E propor, como objetivo deste artigo, uma atenção interdisciplinar mais acurada, em especial nas análises, olhares e leituras de fatos, referências, objetos, textos, arte. Ressalte-se que todos eles, seja Durand com seus estudos sobre o imaginário, Bakhtin focando no diálogo polifônico, Peirce em sua tríade gerativa de significados, não se circunscrevem isoladamente.

Há influências e colaboradores em suas concepções, múltiplas e abrangentes. Portanto, não é tarefa fácil trabalhar em determinada direção ou restringir aspectos. Até porque não conheço em profundidade o complexo arcabouço teórico de suas obras extensas e da bibliografia resultante. Desse modo também não vou colocar citações ou uma bibliografia. A incompletude fica como desafio.

O que percebo, no final de contas, é a linguagem humana e comunicativa que está na base desses estudos. Uma linguagem produzida por signos ideológicos, simbólicos e gerativos de significação, que desembocam na criação do imaginário. E que se amplia na decodificação de signos verbais e não verbais, acústicos, pictóricos, em sua multiplicidade ontológica. E onde nos reconhecemos humanamente. Nós e o outro, em sua alteridade existencial.

É, pois, a troca de significados entre o original, a produção e a recepção, uma dinâmica essencialmente dialógica, traduzida em possibilidades e relações de sentido, como estruturou M. Bakhtin em várias de suas obras. Intertextos, memórias do passado e expectativas de futuras respostas podem ser ressignificadas nas diferentes vivências.

Gilbert Durand insere o imaginário na relação com o cosmos e o meio ambiente, na noção fundamental do “trajeto antropológico”, propondo uma espécie de gramática iconológica que obedece a uma lógica de imagens, constituída por dois regimes, diurno e noturno, e três estruturas antropológicas que configuram o imaginário e que orientam as análises nessa linha específica, a chamada mitocrítica. Sob a teoria do imaginário, as constelações simbólicas seriam os conjuntos que se interligam em diferentes culturas, provenientes de narrativas míticas; a imaginação simbólica vai se manifestar quando o significado não é de modo algum apresentável e o signo só pode referir-se a um sentido e não a uma coisa sensível.

Charles Sanders Peirce, associado a um conceito básico nos estudos da contemporaneidade, a Semiótica, ou ciência geral dos signos, tendo em vista que a compreensão dos elementos da realidade não ocorre independentemente das suas representações. Desse modo, configura-se como aplicável à compreensão de diversos e distintos sistemas de linguagem, incluindo no momento, os estudos de e sobre o imaginário.

Feitas essas ligeiras apresentações, podemos, portanto, iniciar a interlocução desse encontro...



G.Durand. A questão da lógica, de que Peirce trata, também foi tratada por mim, na análise das imagens representativas. Acho que podemos discutir mais diretamente a questão do símbolo, pois ele é sempre a manifestação de um significado oculto, que transborda as barreiras da conotação comumente adotada pela dimensão do código linguístico. 






C.S.`Peirce. OK. Nunca "fecharemos" diretamente essa questão, mas a subjetividade da leitura do símbolo é sempre um desafio.



M. Bakhtin. Sim, há muito a se discutir, talvez nunca desfazer os nós e equívocos do que pensamos, assim como de nossas vidas e suas incompletudes. Porém, antes de mais nada, devemos considerar que todo ato de compreensão é dialógico, diferenciando-se de uma postura linear, ainda retrógrada, cartesiana. Jamais um pesquisador será neutro, estará sempre permeado pelo seu horizonte avaliativo. Na atividade científica, a relação do pesquisador com o objeto entra em diálogo com os discursos observados e com os discursos anteriormente produzidos sobre o objeto. Mais do que uma questão metodológica, é uma questão de princípio.



G.Durand. Concordo. Justifico essa dinâmica investigativa, interpretativa, pois o símbolo sempre trará um significado adicional, indicado por meio da narrativa onde é empregado e os elementos com os quais ele se integra. Dentro de um código linguístico deve-se observar seu movimento, adaptação e valorização em cada contexto. Assim, em minha teoria sobre o imaginário, acrescentei a universalidade dos arquétipos, o que contrasta com os símbolos que apresentam diferenças dependendo do meio. Por isso faço uso do “trajeto antropológico”, essa incessante troca que existe ao nível do imaginário, entre a subjetividade desse pensar e os desafios objetivos que emanam do meio cósmico e social.

C.S.Peirce. Exatamente. Desenvolvi a semiótica, uma teoria geral dos signos, na tentativa de descobrir a lógica que fundamenta as nossas concepções do real e como o conhecimento cresce a partir do compartilhamento e debate de opiniões no interior de uma comunidade. Considero o signo como o meio para a transmissão das formas que fundamentam os conceitos, e a comunicação como a mais elevada dos vários tipos de ação do signo. Sempre trabalhamos as mediações simbólicas em processo contínuo e interativo.

G.Durand. Nessa linha, acho importante esclarecer o fato de que os símbolos se mantêm discutíveis e em contínua transformação. De todo modo, discordo de Pierce, pois não vejo o símbolo como arbitrário, há um sentido natural, como imagem em sentido mais amplo, um modo de a consciência apresentar objetos que não se apresentam diretamente à sensibilidade. É isso a que chamo de símbolo: a reunião dessa imagem com um sentido. Por isso é uma imagem simbólica, reveladora de uma maneira de enfrentar ou compreender sua inserção no mundo.

C.S.Peirce. Mas é essa também sua natureza gerativa: crescer e se desenvolver num universo inteligível e repleto de sentido. Chamei esse aspecto de semiose. Aliás, nessa conversa, há sempre uma palavra que já foi usada, virou clichê, mas é fundamental: entender como processo, de uma dinâmica intrínseca. No caso, o processo de significação em sua função semiótica, que ocorre em todo ato de linguagem, seja ela artística ou não. Mesmo que a vejamos diferentemente em sua concepção particular.

M.Bakhtin. Percebem como estamos falando de teorias e práticas em comum? Claro, há distinções e muitas. Mas ressaltamos que a pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades discursivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades se interpenetram, assim como do compromisso ético do pesquisador com o objeto que, dessa perspectiva, é também ele, um sujeito histórico, atravessado por relações de poder que provocam efeitos no mundo social.  Não é possível, em pleno século XXI, aceitar uma análise monodirecionada, alguns estudos de mão única que vemos em registros variados.

G.Durand. Entendo que precisamos nos encontrar outras vezes, especialmente nos trabalhos de mitocrítica, mostrando que nossa subjetividade pode e deve ser trabalhada de uma perspectiva polifônica, um diálogo de muitas vozes e consciências, assim como de um entendimento mais amplo da semiose, um processo de significação ilimitado, dinâmico e gerativo dos símbolos em nosso imaginário e em nossa humana condição. Tudo vai culminar na dinâmica sociocultural e organizacional dos mitos, sua razão de ser contra a angústia do tempo e da morte. Afinal, em nosso mundo contemporâneo, lidamos com uma multiplicidade de sistemas semióticos em jogo no processo de produção de sentidos.

...oooOooo...

Teria sido possível esse encontro? Haverá outros? De todo modo, para concluir, apresento um gráfico gerado por IA mostrando a intersecção, senão entre eles, as teorias que os representam e o propósito deste artigo, entre coloquial e um tiquinho irreverente...




Gráfico gerado por IA mostrando a intersecção entre imaginário, semiose e dialogismo, com a ajuda da ferramenta de IA GPT-4 da OpenAI., em setembro de 2024.

 1.      Círculo do Imaginário em amarelo:  Representa o conceito de “imaginário”. Ele abrange ideias, símbolos e imagens, incluindo mitos, sonhos e arquétipos 

2.      Círculo da Semiose em azul: Neste círculo, encontramos o conceito de “semiose”, que se refere aos processos de significação e interpretação de signos. A semiose está relacionada à linguagem, símbolos e comunicação.

 3.      Círculo do Dialogismo em rosa: O terceiro círculo representa o “dialogismo”. Aqui, exploramos a interação entre diferentes vozes, perspectivas e discursos. O dialogismo é central na teoria de Bakhtin sobre a linguagem e a literatura.

                                                                           

 

 Elisabet Gonçalves Moreira

(Nos idos de setembro de 2024, margem direita do rio São Francisco)






segunda-feira, 16 de junho de 2025

ENTRE SÉCULOS

                                                                                            Passagem do século XX e do milênio: 1999-2000



2025: 1/4 do século XXI
                         

                                          EU/NÓS

 

1999-2000

Nós vimos a passagem do século e do milênio.

Privilégios e desígnios que agradecemos.

O tempo cósmico ou o tempo contado nos balançou nas expectativas e na realidade do fato. Agradecer a quem? Uma família constituída e palavras ocas de significado. Paz, Amor, Saúde, Sucesso. Bordadas em ponto cruz, registro emoldurado.

2025: ¼ do século XXI

25 anos depois, o que acrescentar?  A fração constata o tempo que se atravessa. O pequeno bordado, agora num bastidor da moda, atualizado com os nomes de uma família ampliada nos traz a realidade fictícia do passado, presente, futuro. Por precaução, as datas do nascimento de cada um.

Em ponto cruz... cruzam-se os dados, talvez os dedos para desejos em continuidade. O que restou?

A ilusão do registro não chama a atenção, vive-se sem atinar para o ciclo dinâmico do que não nos pertence. Apenas duramos...

Elisabet G. Moreira

Petrolina, 27/5/25



terça-feira, 3 de setembro de 2024

PROFESSORA APOSENTADA PUBLICA ARTIGO

 Sensacionalista a chamada? Nem tanto... mas, talvez merecesse o adjetivo de ousada para os dois substantivos. Nada a ver com superação, mas subjetivar a alegria do encontro com suas raízes no aprendizado de quatro décadas atrás, no Mestrado de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo, com orientação especial de Boris Schnaiderman. E que venho desenvolvendo em pesquisas e trabalhos, muitos deles aqui publicados. E em outros periódicos, colunas e revistas. Nesse caso, é minha primeira publicação na revista RUS, da USP, embora tenha outros dois artigos publicados na década de 70. 

No portal de revistas da USP: https://www.revistas.usp.br/rus/

Edição RUS, Vol. 15, Nº 26, de maio de 2024 : Tolstói - pensador e artista da diferença


Além de poder acessar a edição completa, em PDF, lá está o meu artigo, especificamente nesse link:

https://www.revistas.usp.br/rus/article/view/222278

Anna Kariênina: interfaces ilustrativas da personagem

AutoresElisabet Gonçalves Moreira

  • Elisabet Gonçalves Moreira Pesquisadora independente

DOI: 

https://doi.org/10.11606/issn.2317-4765.rus.2024.222278

Palavras-chave: 

Anna Kariênina, Tolstói, Dialogismo, Análise semiótica

Resumo

Este estudo analisa e compara três ilustrações da personagem Anna Kariênina, do romance de Liev Tolstói, veiculadas em diferentes mídias, com objetivos e público específicos. A primeira ilustração é traduzida num retrato artístico e pessoal de Anna K. por uma artista polonesa em um magazine digital; a segunda remete a uma fala da personagem na obra de Tolstói, ilustrada através da tradicional boneca matrióchka, em um magazine dos Estados Unidos, também acessível on line. A terceira ilustração é capa de um mangá, de origem japonesa, traduzido e editado na Espanha, em formato de pocket book.  A ilustração de Anna Kariênina, no mangá que leva seu nome, apresenta os traços invariantes desse estilo de histórias em quadrinhos, mas que dão ao significante outra conotação como meio específico de comunicação de massa. Além da oposição verbal x não verbal, nas interfaces, articulam-se percepções e pontos de vista. A relação dialógica entre o signo e o leitor evidencia leituras e ideologias fundamentais como caminhos e vias da interpretação, com destaque para a análise semiótica.

(...)

Biografia do Autor

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FASSLER, Joe. Seção By Heart - Periódico on line The Atlantic, de 3 de novembro de 2015 https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2015/11/by-heart-mary-gaitskill-tolstoy-anna-karenina/413740/ - Acesso em agosto de 2021.

GROENSTEEN, Thierry. O sistema nos quadrinhos. Nova Iguaçu, RJ: Marsupial Editora, 2015.

LOTMAN, I.M. Sobre o problema da tipologia da cultura. In: Semiótica Russa – Organizador Boris Schnaiderman. São Paulo, Perspectiva, 1979.

LUYTEN, Sonia B. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo, Hedra, 2012.

ROSSIGNOL, Susana (Redatora e fundadora da Geração Friki – seção “Comics”).

https://www.generacionfriki.es/comics/anna-karenina-una-adaptacion-al-manga-que-pierde-la-esencia-de-la-novela/ - Acesso em 06/02/2024

TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

TOLSTÓI, León. Anna Karenina el manga. Barcelon: La otra h, 2017.

WRZOSEK, Agnieszka. Anna Karenina, ilustração para K Mag magazine on line, março de 2013. (https://cargocollective.com/agiewu/Anna-Karenina).

Sem autoria. La otra h (www.laotrah.com) - Selo gráfico da editora Herder. Acesso no blog https://herdereditorial.com/coleccion/la-otra-h?utm_source=herder&utm_medium=organic&utm_campaign=08&utm_id=blogmenu - Acesso em 03/02/2024

Manga de Dokuha. Wikipedia – enciclopédia livre. https://en.wikipedia.org/wiki/Manga_de_Dokuha - Acesso em: 03/02/2024.






terça-feira, 25 de junho de 2024

DESAFIOS DO IMAGINÁRIO (III)

 

Viagem à volta de mim mesma...


Transitando entre símbolos, mitos, alegorias, metáforas, fui armazenando linguagens nas dobras de um inconsciente inquieto.

Signos em decifração, sempre interessada pelo conhecimento e pelo fazer. Na espiral, entre descidas e ascensão, pude vislumbrar hiatos e incongruências.

Nesse lugar nenhum onde o movimento nos lança para além do real e da fantasia, dancei à beira do lago sagrado querendo nele mergulhar, me segurando em suas faldas voláteis.

Sonho de uma noite de primavera, antecipei o outono. Tempo passageiro como todos os tempos, acreditei na possibilidade da permanência.

Cronos não quis nem conversa. Estava muito distante e entretido entretempos. Conversei com Einstein, aquele mesmo que desdobrou o tempo.

Foi gentil, mas duro, tudo passa e retornará. Agora mesmo vou ali e aqui, ontem, hoje, amanhã. Onde você se situa? Merda para todos esses mitos que mais bagunçam do que me esclarecem.

Na literatura encontrei Próspero que me isolou na tempestade mágica e me fez aguardar a calmaria. Apenas metáfora de uma espera onde o real se confunde – e rima - com o imaginal.

Imagina eu? Queria o dom, o banho mágico para vislumbrar além do visível. Então retornei a caminhos dantes navegados, resvalando nos anelos de minha limitada espiral humana.

E pude acumular totens, na significação de tempos e descobertas que se superpõem. Alegorias de mim mesma, continuo nessa jornada, ainda ansiando a beatitude de todos os desfechos.

In illo tempore


Esclarecendo: o desenho é de minha autoria, como ilustração e referência de minha "jornada acumulativa" no curso sobre Imaginário. E usei, no topo, uma citação de Freud: 

"O totem é, em primeiro lugar, o ancestral comum do clã, mas também seu espírito protetor e auxiliar." 

E encontrei esse belíssimo poema de Léopold Senghor, ex-presidente do Senegal,  O Totem. Seu manuscrito em francês, traduções em português, inglês, italiano e em espanhol.

Acredito que não esteja muito legível nesta foto, reproduzida acima. Portanto, vou colocar a versão em português.

                                                         (tradução de Gastão Gomes)

                          E o original em francês: lembrando que o Senegal, África, foi colônia francesa.

                                                                                                       LE TOTEM

     Il me faut le cacher au plus intime de mes veines
l’Ancêtre à la peau d’orage sillonnée d’éclairs et de foudre
Mon animal gardien, il me faut le cacher
Que je ne rompe le barrage des scandales.
Il est mon sang fidèle qui requiert fidélité
Protégeant mon orgueil nu contre
Moi-même et la superbe des races heureuses...

(Léopold Sédar Senghor, Chants d’ombre, 1945)

...oooOooo...


sexta-feira, 7 de junho de 2024

DESAFIOS DO IMAGINÁRIO (II)

 

Era uma vez...

Uma mulher com 2024 anos de idade que regressava teimosamente aos exemplos e cultivo de deusas ancestrais, rainhas da luz e das trevas. Espirais do conhecimento, movimentos de idas e voltas nos embates com o mundo e reveses além do cotidiano, neles se enovelava.

Louvou Inana, exemplo da única mulher deusa que, antes do dilúvio, desceu aos infernos e dele voltou, refazendo seu destino. Invocada, Inana fez companhia a essa mulher que, volta e meia, nos círculos do tempo, abria portais e lutava em desespero pela vida e pelo amor.

No oco do corpo, um abismo foi construído. Ali encontrou o caminho da descida, degraus que a sustentavam e que se deterioravam com o aglomerado de mágoas e culpas. Dos olhos mágicos de Inana vinham os créditos da continuidade, ainda que o risco da queda fosse previsível.

Entre o céu e a terra em que navegava Inana, essa mulher achou que também podia ser uma deusa. Mas o abismo em que descera, também submergia sua onírica intenção. Assim, passou a louvar seu monstro interno, ela mesma, gostando de ser algoz e vítima.

Inana sabia o que essa mulher não sabia. Encontraram demônios e os mais perigosos ela lhe ensinou a esconjurá-los. Da revolta guardou pouco saber, mas aprendeu a continuar. Cicatrizes ficam cravadas nas artérias em circulação, labirinto em que se perdera, sem fio de resgate.

Inana, numinosa, proferiu o dito irreversível, enunciado repetido, sucessivo, vozes em coro, em solos, pelos séculos e séculos amém “eu sou a luz do mundo”. E se despediu dessa mulher que ficou presa na metáfora epifânica de si mesma.

Então ela começou a subir os degraus da volta. Pelo oco do corpo foi vendo o que construíra, em galhos e papel, preto e branco, em cores, legitimando o reverso de sua humana aceitação. A espiral ascendente resplandeceu para que essa mulher entendesse para que viera e caminhara séculos e séculos amém!


Foto tirada do livro:

Inana: antes da poesia ser palavra era mulher/Enheduana: traduzido do sumério por Guilherme Gontijo Flores, Adriano Scandolara. São Paulo: sobinfluencia edições, 2022. (p. 84/85)




(os deuses dialogam entre si...)


terça-feira, 28 de maio de 2024

DESAFIOS DO IMAGINÁRIO (I)

 Criações a partir de textos e improvisações sobre o imaginário teórico me trazem de volta ao blog.  Uma ilustração acompanha, dialogando e/ou complementando.

A MEIO CAMINHO...

Solitária em seu destino de viajante humana, a mulher caminhou décadas e décadas, apostando em oferendas a que se obrigava. Esperando trocas, aplausos, assim vivia.

Entretanto, percebeu que suas oferendas nem sempre eram recebidas como esperava. Mesmo quando aprovada, idealizando plenitude, entendeu tarde dessa criação pelas bordas.

Egoísta, despachou humanas oferendas para longe de si, mais solitária em seu desejo de ser. Adornou-se como personagem de um jogo estático em seu avesso.

Cobriu-se de matizes vermelhos e laranjas, num semicerrar de olhos velados. Assim, não via o mundo e nem a si mesma, desengonçada em seu corpo rígido.

Sua bagagem era a do exagero, de tudo um pouco a sustentar sua inquietude.  Na diversidade de desafios, oscilava em ondas espiraladas.

Tentou ser árvore, pássaro, borboleta, mas lhe disseram a verdade da vida figurativa em cópias sucessivas, máscaras em que se auto representava.

Havia oferendas da noite nesse processo da viagem limite. Agradar a deusa (ela mesma) poderia compensar escolhas subjetivas, presos arbítrios na continuidade.

Houve um momento em que ela se ofereceu inteira. Rejeitada, sua crueldade transbordou no íntimo. E se manifestou em seu corpo, em juntas e dores tiranizando trajetos.

De todo modo, ela subsistia. Entendeu que a redenção é uma história para iniciados. Aguardando o final, outra deusa, sim, outra deusa mulher lhe falou da liberação possível.

Atender ao chamado do amor que subsiste como receita contra necessidades personalizadas de punição e ressentimento. Aplaudir sem vergonha o final do filme de que gostou.

E assim fez. O excesso de bagagem agora visto em outra dinâmica, a do prazer e inspiração.  Atirou longe o que se lhe afigurou desperdício de si mesma. Não era. Não foi. Abençoou-se.

Descaradamente, a criança interna se regozija e pode ser mais do que estar na espera do inevitável. Aprendendo a tingir de vermelho e seus matizes que acompanham o arrebol, continua viajante.






domingo, 14 de abril de 2024

SIMBOLISMO DE CONCHAS E PÉROLAS

 

Com a leitura esclarecedora do Capítulo IV, Observações sobre o simbolismo das conchas, do livro Imagens e Símbolos, de Mircea Eliade (São Paulo: Martins Fontes, 1996), também faço observações, um apanhado geral em que analiso, destaco e amplio exemplos.

Mircea Eliade inicia o capítulo com a afirmação: “As ostras, os mariscos, o caracol, a pérola são solidários tanto das cosmologias aquáticas como do simbolismo sexual.” (p. 123) Desse parágrafo inicial realço a seguinte observação “A crença nas virtudes mágicas das ostras e das conchas é encontrada no mundo inteiro, da pré-história aos tempos modernos.”

Assim, introduzo esta apresentação fazendo a leitura visual de três imagens. Poderia escolher muitas outras, mas essas são bem significativas para ilustrar, justificar e dialogar com o texto de Eliade.

Fig. 1. Nascimento de Vênus. Sandro Boticelli (1445-1510). Têmpera sobre tela, mede 172,5 cm de altura por 278,5 cm de largura. 1485–1486. A obra está exposta na Galleria degli Uffizi, em Firenzi (Florença), na Itália. 

Essa primeira imagem, o “Nascimento de Vênus” de Boticelli, uma das pinturas mais belas do renascimento italiano, corrobora o “simbolismo ginecológico e embriológico da pérola, formada na ostra”, afirmação ainda do primeiro parágrafo. Sem entrar em muitos detalhes, já que a pintura é pródiga em símbolos e em sua própria essência artística, temos, no centro da imagem, a figura de uma jovem mulher nua, “nascendo” de uma concha dentro das águas, analogia com a pérola, que “nasce” da ostra. Ela é a representação da deusa Vênus, ou Afrodite para os gregos, Deusa do amor, da beleza e da fertilidade, nascida das ondas do mar na ilha de Chipre, segundo a mitologia.  A deusa é impelida para a vida por Zéfiro (abraçado a uma ninfa) que representa o vento oeste na mitologia romana, alegoria da continuidade do mito. À direita, está a Deusa Primavera, à espera para cobri-la com um manto florido.

No centro da tela, Vênus faz um gesto pudico para ocultar a sua nudez, mas a luz ressalta sua beleza clássica e enfatiza suas curvas, assim como o cabelo que se enrola em seu corpo e encobre seu sexo. Para a época, a beleza seria um sinal visível de Deus, o que permitiria ao pintor, sem incorrer em blasfêmia, utilizar a mesma expressão facial para Vênus e para a Virgem Maria. Segundo divulgam, Boticelli era um homem "profundamente" religioso.  O simbolismo é mais forte do que uma possível censura do artista em sua concepção criativa.

Esse simbolismo mostrou-se também em diversidade, fosse em ritos agrários, nupciais ou fúnebres. Conchas e pérolas asseguram desde boas colheitas, um casamento fecundo até uma morte preparada para o renascimento, A segunda imagem “O Batismo de Cristo”, pintado por Leonardo Da Vinci, ainda aluno de Verrochio, simboliza a purificação do corpo pelas águas, o arquétipo da vida. Sem detalhar essas pinturas, o foco é evidenciar o imaginário e mostrar o simbolismo das conchas como um índice motivador para a Arte, para a religião e para a vida. No caso, a concha de água que João Batista derrama sobre o corpo nu do Cristo atrai o Espírito Santo, simbolizada na figura de uma pomba, ou seja, o poder de Deus sobre o batismo humano e sua conexão com o divino.


       Fig. 2. Batismo de Cristo (1470) Leonardo Da Vinci e Verrochio óleo sobre tela) 
Entretanto, o que mais me chamou a atenção na leitura desse capítulo IV foi um certo tom desgostoso, assim me pareceu, do pesquisador Mircea Eliade, ao destacar “a degradação ininterrupta do simbolismo” (p. 124). A Figura 3, a seguir, da apresentadora televisa Ana Maria Braga, com essa espécie de fantasia toda trabalhada em conchas, búzios e correntes de pérolas, miçangas falsas, se destaca compondo um efeito decorativo no conjunto. Mas, acredito, interpretações são polissêmicas e essa famosa mulher pode ter usado como proteção para sua saúde, resgatando seu poder mágico primordial, já que ela teve câncer, e quer se mostrar sempre viva, bela e atuante...

                                                    Fig. 3. Apresentadora de TV Ana Maria Braga (imagem pública retirada do Facebook) 2024.

Mircea Eliade observa: “A pérola, antigamente emblema da força geradora ou símbolo de uma realidade transcendental, conservou no Ocidente apenas o valor de “pedra preciosa” (p. 124). Não concordo muito com essa afirmação, pois as conchas e as pérolas ainda carregam variantes de seu simbolismo e de sua atração mística.

Lembro que, em sentido figurado, a pérola virou um clichê e alargou seu significado. A partir do discurso bíblico, no Evangelho de Mateus, encontramos duas referências que, no imaginário cristão, ficam poderosas de sentido. Mateus 13:44-46, uma parábola de Jesus que associa o reino dos céus a uma pérola e em Mateus 7:6 "Não deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; para que não as pisem e, voltando-se, vos despedacem.” Na hermenêutica bíblica, a pérola representa a sabedoria divina, a pureza e a perfeição. Ela é mencionada como um símbolo do Reino dos Céus e da salvação.

Também encontramos variantes do simbolismo da pérola (e conchas) em diferentes credos, preservando seu significado primordial “na crença de suas virtudes mágicas” como o espiritismo, o tarô, a numerologia, o horóscopo, os signos, o candomblé, a umbanda e a espiritualidade em geral.

Fig. 4. Escultura de Iemanjá em Sepetiba, cidade do estado do Rio de Janeiro. Todo ano, no dia 2 de fevereiro, é realizada no local uma grande festa em honra da divindade de matriz africana, considerada a protetora da pesca e mãe de todos os orixás.

Em nossa cultura miscigenada, Iemanjá, divindade africana, a grande mãe negra, aparece na maioria de suas imagens como branca, mas não deixa de representar seu poder das águas, aquela que nos protege e prepara para a vida. Para os iorubás, ela é a divindade dos rios. Segundo pesquisa, essa transposição para os mares é resultado do movimento de diáspora quando, já nos chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os "seus filhos".  Mesmo que tenha outros nomes e a devoção apareça em vários lugares, ela faz parte do imaginário brasileiro, não resta dúvidas.

 Na linguagem contemporânea, a pérola é usada tanto para o elogio, como para a ironia. Exemplos: fulano se expressou com uma “pérola” de criatividade ou “as pérolas” das redações dos vestibulares, mostrando absurdos interpretativos, apontam para essa associação. Em nosso mundo social, o uso de joias incrustadas em pérolas, carregam uma conotação de “classe”, de bom gosto, mais do que exibicionismo de riqueza.

Em seu livro, Mircea Eliade cita exemplos nas mais variadas culturas de como esse simbolismo também foi associado ao mágico religioso, inclusive em relação conjunta aos ciclos da lua. E destaca o simbolismo da fecundidade. Mais do que a origem aquática e o simbolismo lunar das ostras e dos mariscos, sua semelhança com a vulva contribuiu muito provavelmente para propagar a crença nas suas virtudes mágicas” (p.127)

  

 

                                                                    Fig. 5. À esquerda, conchas ou búzios, vendidos para confecção de ornamentos em pulseiras, colares, também usados pelos guias nas religiões de matriz africana, inclusive no jogo adivinhatório. À direita, uma ostra com uma pérola nascida de seu interior, resultado de uma reação natural do molusco contra invasores externos, como certos parasitas que procuram reproduzir-se em seu interior. Daí a expressão “ostra feliz não faz pérola” e seu sentido de ensinamento para a vida.

Na página 127, em um dos múltiplos exemplos, Mircea Eliade destaca a identificação da concha com o órgão genital feminino e associa que também mariscos e ostras participam dos (...) “poderes mágicos da matriz. Nelas estão presentes e exercem as forças criadoras que jorram, como uma fonte inesgotável de todo emblema do princípio feminino.” Portanto, continua a observação: “usar sobre a pele, como amuleto ou como ornamento, (...) impregna a mulher de uma energia favorável à feminilidade, ao mesmo tempo em que a preserva das forças nocivas e do mau agouro.” Não teria sido essa a motivação involuntária da fantasia usada por Ana Maria Braga?

Em outro destaque, “Funções rituais das conchas”, ele observa “A partir disso, explica-se facilmente pelo mesmo simbolismo a presença de mariscos, ostras e pérolas em inúmeros ritos religiosos, nas cerimônias agrárias e iniciáticas. (...) A força representada por um símbolo da fertilidade manifesta-se em todos os níveis cósmicos.” (p. 131) “As cerimônias de iniciação compreendem uma morte e uma ressurreição simbólicas; a concha pode significar o ato do renascimento espiritual (ressurreição) com tanta eficácia que ela assegura e facilita o nascimento carnal.” (p. 132)

Mircea Eliade também se refere “A virtude sagrada das conchas se transmite tanto à sua imagem como aos motivos decorativos que têm a espiral como elemento essencial” (p. 141). E nos dirigimos a outras relações, tendo a espiral uma referência orgânica da própria vida em seu perpétuo movimento de evolução. 


Fig. 6. Náutilo, concha marinha onde a espiral está perfeitamente visível e serve como exemplo tanto para a evolução espiritual como uma demonstração perfeita do algoritmo para a sequência de Fibonacci e a proporção áurea.

Isso foi um adendo ao capítulo de Mircea Eliade, pois ele apenas cita a “polivalência simbólica da espiral, suas relações com a Lua, o relâmpago, as águas, a fecundidade, o nascimento, a vida no além.” (p. 142)

Na parte final de suas observações, Eliade vai destacar novamente a pérola, na magia e na medicina, o mito simbólico que se perpetua, mesmo em suas modificações temporais e em seu uso. E reitera: “A história da pérola é mais um testemunho do fenômeno de degradação de um sentido metafísico inicial. O que num dado momento foi símbolo cosmológico, objeto rico em forças sagradas benéficas, torna-se, com o tempo, um elemento de ornamentação, do qual se apreciam as qualidades estéticas e o valor econômico.” (p. 143)

Destaca, no entanto, que o papel da pérola na medicina em tantas civilizações diferentes (após ter dado muitos exemplos em citações e notas de rodapé) “apenas sucedeu a importância que ela teve anteriormente na religião e na magia. Por ter sido emblema da força aquática e geradora, a pérola tornou-se – numa época posterior – tônico geral, afrodisíaco e ao mesmo tempo remédio contra a loucura e a melancolia, duas doenças de influência lunar, logo sensíveis à ação de todo emblema da Mulher, da Água, do Erotismo.” (p. 144) Lembro de uma passagem de um dos livros de Jorge Amado (mas não me recordo de qual!) em que o personagem pensa e antevê sua amante nua, sensualíssima, usando apenas um colar de pérolas...

Há um conto de Lygia Fagundes Teles, com o nome “As Pérolas”, no livro “Antes do Baile Verde” em que o colar de pérolas da esposa do personagem tem seu simbolismo agregado às memórias, aos ciúmes que a recordação lhe provoca. A associação é feita com o “sofrimento” da ostra, invadida por algo nocivo, que produz camadas de nácar para proteger seu corpo indefeso e o resultado é a preciosa pérola. “Uma ostra que não foi ferida, de algum modo, não produz pérolas, pois a pérola é uma ferida cicatrizada...” uma lição de vida trabalhada por Rubens Alves em um de seus livros mais conhecidos. Evidentemente que muitas outras referências podem ser encontradas, seja na literatura, na filosofia, na pintura, evidenciando seu caráter metafórico ou exemplar.

Elisabet Gonçalves Moreira - Petrolina, 4 de abril de 2024

 

ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Planeta, 2021.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. Ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

https://guiadoestudante.abril.com.br/dica-cultural/o-nascimento-de-venus-analise-da-obra-de-sandro-botticelli

https://www.bbc.com/portuguese/articles/Iemanjá, a divindade africana que ganhou feição branca no Brasil