Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Prainha longe de casa




Ron ron ronrrrr... ainda sinto esse ronronar quando Prainha se deitava comigo, todas as tardes, para minha soneca. E gostava de ficar no lado direito do ombro. Às vezes pesava sobre meu seio, eu o ajeitava e ele dormia bem relaxado. Mas acordava, um bom tempo depois, e me chamava para eu lhe dar comida ou água. Ultimamente, debilitado, ficava mais nos pés ou nas pernas, perto do meu joelho, também doente. Depois não conseguia nem mais subir na cama, ficava na porta do quarto, deitado, levantava-se, ia até o tapete do banheiro, ficava um pouco lá, voltava, inquieto. Mas quieto no seu ronronar. Tudo silencia.




Tenho fotos de Prainha, sempre lindo, posudo. Mas não tenho gravações de seu ronronar, de seus miados, quase sempre discretos. Mas, como chorava, um miado alto, quando eu saía a pé, batendo o portão. Muitas vezes eu voltava, o consolava e saía novamente com o coração apertado. Sempre que chegava, ao abrir o portão, ele estava ali, ao lado, entre as plantas do jardim, me esperando. Valdir disse, inclusive, que, quando ouvia o portão abrindo, se ele estivesse no nosso quarto ou no tapete do banheiro, saía desabalado para me encontrar. Dorminhoco, mas atento em seu sentido de 
gato...





Quando saíamos de carro, ele não chorava. Parecia aceitar, pois sempre o carro voltava. Talvez tivesse medo de que, ao bater o portão, eu o abandonasse. Vi esse seu desespero, no Rio de Janeiro, quando Juliana, minha filha, sua primeira dona, saía para trabalhar e ele ficava preso todo o dia num pequeno apartamento, observando as gaivotas do 10º andar, como se quisesse alcançá-las... Ainda bem que era inteligente para perceber o impossível. Ele, que não me abandonava nunca, sempre ao meu lado, em que cômodos estivesse... Dono dos móveis e dos interstícios, arranhava ou dormia... Preferências bem sabidas. Mas no jardim, no emaranhado das icsórias, encontrava seu lugar, talvez ali por ser fresquinho, um felino selvagem ainda, em lembranças de uma selva ancestral.


Caçou um tanto... Lagartixas principalmente, que abundam no muro, entre as pedras. Alguns passarinhos, mas não devorava, apenas matava quando conseguia dar o bote. E olhava muito para o papagaio aqui em casa, na gaiola. Humm... se pudesse... Fiquei “fula” com ele por duas vezes... quando matou um dos filhotes de passarinhos que se lançava para voar. Os pais do filhote ficaram enlouquecidos... queriam atacar o Prainha, como se isso fosse possível. Ele, como todo felino, brincou com sua presa, pois o passarinho havia caído no chão, mas o estrago estava feito. Tirei o filhote dele, pus na casinha, mas o bichinho não resistiu.  De outra feita, quando o vi pegar, no ar, um filhote de beija-flor, tão delicado. No início, quando veio do Rio de Janeiro para cá, quase um filhote também, levava “presentes” para Juliana. Só ouvia os gritos das surpresas, principalmente quando levou até uma barata...



Quando ela se mudou para os Estados Unidos, eu o adotei, completamente apaixonada pelo Prainha. E foram 15 anos cuidando dele, curtindo, amando suas idiossincrasias... como não? Personalidade, ele tinha. Aliás, não havia quem não gostasse dele. Mesmo arisco, às vezes se “amostrava”... principalmente para mostrar que ele era da casa, era o meu dono e não admitia intrusos neste envolvimento doméstico... Muito lindo, enorme, peludo, um SRD de muita classe. Certa vez, num documentário na TV, vi que ele era um “gato doméstico de pelo longo”. Sim, podia ser, mas entrelaçávamos nossos pelos e afagos. Não há mais gestos.




Se lamber, coçar, tudo eu acompanhava e até me divertia... que língua!!! E dormir “arreganhado”, que paraíso de entrega! Adorava comer as pétalas das rosas... típico não? Quando sentia cheiro de peixe ou sardinha na cozinha, o sono ia embora... Colocava bichinhos e bonecas perto dele... nem tchum, mas as fotos ficavam divertidas. Tomava sol todos os dias no banco do jardim, em sua homenagem. Estranhei quando comia grama ou folhas de capim santo... depois me explicaram o porquê.  O cotidiano era preenchido. Meu modelo favorito!



Seu nome causava estranheza... Prainha, por quê? Geralmente precisava explicar. Explico. Foi achado, filhote abandonado, no Rio de Janeiro, na Prainha, praia de surfistas. Juliana, minha filha, morava e trabalhava no rio e namorava um surfista... dá para entender, não é? Quando ela teve que ser operada da coluna, passou um bom tempo em Petrolina e o trouxe. Sair de um apartamento pequeno para uma casa com quintal e jardim, deve ter sido um alumbramento. No primeiro dia subiu no telhado! Mas não conseguia descer, ficou com medo... nunca mais tentou. Tentou o guarda-roupa do meu quarto, conseguiu, até hoje não entendo o alcance daquele pulo... Depois se aquietou para galhos mais baixos... Folgado, engordou bastante uma época, seus pêlos sedosos o transformaram, segundo uma amiga em "gato almofada"...



Foi um estágio. Quando Juli definitivamente foi para os Estados Unidos, a melhor decisão foi deixá-lo aqui. Além dos custos, achamos que ele não iria suportar a viagem, a quarentena. Em casa ele teve espaço, carinho e atenção.

De dois anos para cá, começou a declinar. Nunca havia ficado doente, somente o levava ao médico para vacinar. Mas os problemas foram aparecendo, infecções urinárias, falta de apetite, até o coração estava doente.  Emagreceu 50% do seu peso normal. Tentamos vários tratamentos; para tirar o sal das rações (aliás, já não queria mais rações secas, que fora seu alimento durante anos), tentei fazer papas de frango desfiado, com legumes... até comprei um mix. Mas, para desespero meu, ele vomitava tudo... Foi internado duas vezes... por causa do cone, voltava ainda mais debilitado, cabeça baixa, caindo de fraqueza. Então resolvemos não mais internar, o próprio veterinário disse que ele poderia morrer a qualquer hora. A vida seguia difícil, a morte o aguardava...

Juliana disse que ele foi morar num céu cheio de sardinhas... É, pode ser, uma consoladora alegoria para o que não tem retorno... 

Fiz reflexões, analogias com minha velhice, com o futuro inevitável... Sensibilizada, todos que conheceram o Prainha, têm me confortado. Achei isso uma amostra de humanidade, um degrau acima da indiferença, que os torna ainda mais meus amigos. Muito obrigada.

Elisabet Gonçalves Moreira

(Um poema que me consolou...)


Elegiazinha

Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
— se somem — é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

[i. m. nikita (gata da Inês)]

De: ASCHER, Nelson. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.




(Prainha 2003-2018)

                                                                                                     Petrolina, 14 de agosto de 2018.