Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

AVENTURAS NA SELVA (Parte II)

 

A motivação da parte I destas aventuras e histórias continua... não só neste blog, mas até numa pesquisa em andamento sobre os ferros de marcar o gado. Símbolos, mitos, leituras semióticas e afins...

E aqui reproduzo desenhos dos ferros dos Kadiwéus, nativos indígenas, povo originário, nos confins do Mato Grosso do Sul, copiados por Guido Boggiani, antropólogo entre outras atividades. E histórias, inferências e reflexões que nos arrebatam...


Desenhos e Ferros de marcar, usados como “siglas de reconhecimento” dos Kaduwéus, conforme figura 103, página 229, do livro “Os Caduveos” de Guido Boggiani (Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1975), Reprodução fac-similar da edição publicada pela Livraria Martins Editora, em 1945, como consta da Ficha Catalográfica.

Da “orelha” desse livro, uma apresentação inicial: “Sem pretensões literárias, como assevera o autor, Guido Boggiani redigiu, em 1894, a narrativa de uma viagem feita com escasso intuito de lucro e resultou num livro pitoresco, repleto das melhores observações sobre uma nação indígena entre diversas outras, mais ou menos perdida nos alagadiços entre o sul do Mato Grosso e o Paraguai.” (De Vivaldi Moreira, escritor mineiro, falecido).

Não concordo com a classificação de um livro “pitoresco”, pois vejo certo sentido depreciativo, já que o livro, embora tenha ressalvas etnográficas, principalmente no registro da língua ali falada, é uma obra fascinante. Mais do que informativa, com fotos e desenhos além de meramente ilustrações, a escrita de Boggiani, em primeira pessoa, diários de sua vida entre os Kaduvéos ou Caduveos, funciona e atrai como pequenos contos, fatos, opiniões e observações no cotidiano insólito dessa etnia, descendente dos lendários indígenas cavaleiros, os Guaicurus. Além do mais, esta edição se complementa com uma Introdução de Herbert Baldus e Prefácio de G.A. Colini, extremamente esclarecedoras sobre a vida e a obra de Boggiani, seu contexto histórico e antropológico.

Guido Boggiani

Guido Boggiani (1861-1902), italiano, faleceu com apenas 41 anos, assassinado por um indígena. As circunstâncias de sua morte, consequência de sua vida aventureira e destemida, são também elementos de uma história em que se mesclam desde o olhar de um antropólogo europeu ao mundo mágico e insólito dos indígenas em suas fronteiras, mitos e cotidiano. Foi como comerciante de couros de cervos do Pantanal, sua referência de contato com os nativos e habitantes da área, mas Boggiani era também pintor, aquarelista e retratista, carregando uma máquina fotográfica na transição entre um século e outro, escrevendo e registrando gente, paisagens, fauna e flora.

Mulher Kadiwéu do Rio Nabileque, Brasil. Foto da coleção Boggiani. Publicado em 1892/Dr. R. Lehmann-Nitsche. (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Kadiweu_woman_1892.jpg)

Fantástica ou não, uma das hipóteses era o “medo” de que, em fotos e desenhos, se aprisionasse a alma do retratado. Tanto que Boggiani e seu acompanhante tiveram a cabeça decepada e a máquina fotográfica enterrada. Ainda que não estejam claras até hoje as motivações para sua morte, pois Guido Boggiani convivia com os nativos há tempos, o mito de que as câmeras roubavam a alma e a vontade dos retratados, foi popularizado após sua morte violenta.

Guido Boggiani ressaltou o gosto pela ornamentação desses indígenas, tanto no corpo, como nos objetos de uso pessoal, nas marcas dos animais de sua propriedade, como “siglas de reconhecimento”. E afirma “Há belíssimas e algumas delas parecem representar figuras humanas simbólicas. O caráter destas siglas é notabilíssimo e talvez um acurado estudo delas possa conduzir a interessantes descobertas.” (p. 228)

Sim, é isto mesmo, daí indica outras pistas. “Reproduzo aqui algumas das principais (...) e sobre alguns objetos estão reunidas em quantidade como se fossem caracteres de uma escrita.” O desafio é oportuno. Impossível não eleger o olhar semiótico, já caracterizado como “etnossemiótico”, em que podemos mergulhar, analisar e refletir as múltiplas camadas das condições de significação, sem o empirismo muitas vezes fortuito dessas ocorrências sígnicas.

Observar os desenhos é mesmo irresistível.  Lévi-Strauss ressaltou que, de todas as etnias indígenas brasileiras, são os índios Kadiwéu que apresentam uma das pinturas corporais mais bem elaborada, criativa e bonita. Desenhos que representam, inclusive, sua estratificação social, histórica e cultural.

Claro que já existem muitos trabalhos sobre essa etnia, além do reconhecimento por etnólogos, antropólogos como Levy Strauss e Darci Ribeiro, além do próprio Boggiani. Para mim, foi uma grande surpresa conhecer (mesmo através do acervo bibliográfico) e divulgar mais uma vez a beleza e importância estética e cultural dos Kadiwéus. Sem dúvidas, há ainda muito a ser pesquisado, tantas as possibilidades, nesse grande tecido intercultural que se nos apresenta, linhas e olhares em diálogo.