Bet com t mudo

Minha foto
BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Um caso reaberto


Elisabet Gonçalves Moreira

Queria ter a concisão e o talento de Tchékhov para reabrir este caso, tido como “Um Caso Encerrado” por meu ex-professor Boris Schnaiderman[1]. Sim, porque o texto de Boris no livro “O mundo coberto de jovens” funciona como um conto de Tchékhov, dado que, naquela noite em que a repressão policial bateu na nossa sala de aula, na Universidade de São Paulo, em 1969, estávamos analisando um conto de Tchékhov.  E ele estava impregnado do poder da literatura que a reviveu ao narrar o fato.

Éramos então poucos alunos do curso de Russo e tínhamos aula à noite numa sala pequena, em torno de uma mesa, no prédio de História e Geografia. A recordação dessa noite foi tão forte que Boris Shnaiderman inicia seu texto remetendo àquela aula que ficou também em minha memória, porque ali estava e fui testemunha.

“Uma das lembranças mais gratas da minha atuação como professor de Língua e Literatura Russas da Universidade de São Paulo liga-se a momentos que passei estudando com os alunos o conto “Brincadeirinha”[2], de Tchékhov. (...) Eu ia pensando nesses e em outros exemplos, parado, giz na mão, diante da lousa com o trecho escrito em russo. Mas, quando estava tão embevecido com meus exemplos literários e os alunos também (estávamos, pois, naquele momento ótimo da transmissão de um texto), ouvi alguém bater à porta, nos fundos do prédio de História, na Cidade Universitária, onde tínhamos aquelas aulas, e que permanecia sempre fechada.
Contrariado por esta interrupção, pedi a um dos alunos que abrisse aquela porta. Apareceram, então, dois indivíduos de paletó e gravata, cada um com um revólver grande na cintura.”

Pediram nossos documentos de identidade, mas o Boris, irritado, fez, como ele mesmo diz, “um discurso violento” e foi levado preso, depois que chamaram outros policiais, incluindo um com uma vistosa metralhadora.

Mas de que me lembro com nitidez foi a ousadia do Boris – e ele não se lembrou disso – ao se dirigir para os policiais que entraram que “respeitassem a autonomia universitária”,  como se isso fosse possível. Ele estava mesmo zangado pois balançou o dedo na cara do policial. Claro que a coisa não poderia acabar bem... O cara da metralhadora pegou a carteira de identidade e disse ironicamente “Só podia ser russo”... embora o professor fosse naturalizado brasileiro. Naqueles tempos de ditadura militar russo era um palavrão, sinônimo de comunista e perigoso para o sistema.
No ponto de vista do relato de Boris, acompanhamos a cena com suspense. E suspense vivemos nós, alunos assustados naqueles tempos de terror.

Levaram o nosso professor e nos deram ordens para ficarmos encostados à parede, com os braços erguidos. Fizeram uma revista, tocando em nossos corpos, mais do que deveriam. Éramos poucos, não me lembro bem, mas não chegávamos a dez pessoas, a maioria moças. Como eu, então com 23 anos.

Disseram que não saíssemos dali. Não podíamos ver o que acontecia, pois a sala era pequena. Mas dispararam um tiro.  Havia duas grandes rampas de acesso ao andar superior do prédio e realmente isso impedia a visão. Pronto, pensamos, mataram o Boris...

E aí aconteceu um fato: ainda com as mãos na parede, sentimos um cheiro esquisito. Uma das moças havia urinado nas calças ou talvez até se sujado. Então soube que isso, sim, era possível, “cagar de medo”.

Mas o medo foi dando lugar ao que havia de ser feito. Havia silêncio, já era tarde, depois de 10 da noite, e saímos da sala. Preocupados, soubemos que o Boris estava vivo e fora levado para o Dops, o temível Departamento de Ordem Política e Social, perto da Estação da Luz.

Então decidimos, nosso pequeno grupo, ir até a casa de Boris para avisar Regina, sua esposa. Já não havia mais ônibus neste horário e fomos bem apertados num fusquinha de uma das colegas até o bairro de Santa Cecília. Lembro-me que eu estava com o coração aos pulos, com as emoções daquelas últimas horas. Porque o medo continuava, sabíamos que podiam torturar e matar no Dops, notícias de todos os dias, mesmo a boca pequena.

Subimos até o apartamento do professor. Regina nos atendeu e, às vezes, agora, tenho até vontade de rir, porque a reação dela foi exatamente o oposto do que se esperava. Ela ficou muito brava, disse coisas que “esse Boris não tem jeito”. Míriam e Carlos, seus filhos, apareceram sonolentos. Mas Regina disse que ia avisar algumas pessoas, incluindo Dom Paulo Evaristo Arns e, se me lembro bem, Gofredo da Silva Teles, advogado. Nomes que tiveram lugar na denúncia das arbitrariedades policiais e repressivas da época.

Um pouco mais tranquilos, voltamos para nossas casas.
O resto daquela noite, o Boris nos relata, assim como Aurora Fornoni Bernardini, também amiga, em seu Discurso de Saudação na Outorga do Título de Professor Emérito a Boris Schnairderman, pela Universidade de São Paulo, em 2001, que eu guardo, entre muitos outros materiais e livros que o Boris me enviou, morando eu em Petrolina, desde 1976. Boris voltou para casa “são e salvo” como soubemos depois, após sua prisão.

“Em todo caso, assim se encerrava mais um capítulo de minha relação com as autoridades constituídas.” Parágrafo final de seu relato.






[1] Depoimento/conto/causo no livro Um mundo coberto de jovens/organização Benjamin Abdala Júnior. São Paulo: Com-Arte, 2016. “Um Caso Encerrado” de Boris Schnaiderman, p. 41-47.
[2] Este conto pode ser lido on line com o nome Brincadeira, sem indicar a tradução. http://www.baratosdaribeiro.com.br/clubedaleitura/2009/01/15/%E2%80%9Ca-brincadeira%E2%80%9D-de-tchekov/
Impresso em livro:
Kaschtanka E Outras Histórias De Tchekhov – tradução de Boris Schnaiderman e Tatiana Belinky.
São Paulo: Boa Companhia, 2014.

Na foto abaixo, Boris (1917-2016) e eu, em setembro de 2010, em seu apartamento em São Paulo. 41 anos depois deste fato. Uma amizade que atravessou décadas. Um carinho e lembranças que reabrem memórias...

                                         

sábado, 11 de novembro de 2017

FEMICÍDIO

Aconteceu. Acontece. Um crime – feminicídio pela Lei – em Petrolina. Um homem matou a namorada com uma furadeira elétrica e golpes de faca. Não posso me esquecer do horror. E, por desafio de uma discussão sobre “Narrativas do Feminino”, retorno à escrita. Neste caso, um “rap” bem recebido e aqui distribuído.


                                   Femícidio
                                                                                                   Elisabet G. Moreira

                        Havia um corpo de mulher
                        Havia buracos entre braços
                        Não mais abraços.
                        Metáforas de vaginas
                                                FEMICÍDIO (coro)
                        Apenas pênis vibratório
                        Ferramenta furadeira que penetra
                        Afiada faca que aumenta furos,
                        gemidos e gritos do horror.
                                                        FEMICÍDIO
                        Não ao gozo da fêmea
                        Sim ao prazer do macho alfa
                        Em posse de obscena cena.
                                                         FEMÍCIDIO
                        Irracional maldade
                                                         FEMICÍDIO

                         Help me help us
                         Um rap réquiem...

https://www.carlosbritto.com/homem-e-preso-em-petrolina-apos-matar-namorada-usando-uma-furadeira/

15 de outubro de 2017

Um homem foi preso no Bairro Gercino Coelho, zona leste de Petrolina, após ter matado a namorada utilizando uma furadeira. O fato, de acordo com o 5º Batalhão de Polícia Militar (BPM), aconteceu por volta das 21h de ontem (14). O acusado é Jeidson Santos de Morais, de 27 anos, o qual confessou ter cometido o crime contra Vanderléia Carvalho Macedo, também de 27.

A vítima foi encontrada sem roupa, já sem vida, com vários ferimentos provocados por furadeira e também com perfurações de golpes de faca. O acusado, após cometer o crime, ligou para a mãe da vítima e contou o que tinha feito, pedindo para que ela fizesse deslocamento até o local do crime, na Avenida das Nações, nº 517.

À polícia, ele confessou que houve uma discussão por causa de mensagens enviadas ao WhatsApp do mesmo envolvendo a sua namorada, e que teria “perdido a cabeça”, agindo de maneira descontrolada até cometer o crime. No local do fato foi encontrada uma furadeira com vestígios de sangue. O acusado foi encaminhado à Delegacia de Polícia Civil, enquanto o corpo da vítima foi removido para o Instituto de Medicina Legal (IML).




O Feminicídio é crime previsto no Código Penal Brasileiro, inciso VI, § 2º, do Art. 121, quando cometido "contra a mulher por razões da condição de sexo feminino".[8] O §2º-A, do art. 121, do referido código, complementa o supracitado inciso ao preceituar que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar (o art. 5º da Lei nº 11.340/06 enumera o que é considerado pela lei violência doméstica);[9] II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. O feminicídio foi incluído na legislação brasileira através da Lei nº 13.104, de 2015. Muitas vezes popularmente ainda chamado de "crime passional".





quarta-feira, 19 de julho de 2017

As cidades visíveis

Retomando um fazer: crônica... motivada por um curso com Luiz H.Pellanda. Já redigi muitas crônicas, para serem lidas num programa de rádio em Juazeiro, nos anos 80... poucas ficaram como texto viável, dada sua efemeridade. De todo modo, o desafio lançado foi falar cronicamente sobre a cidade... especialmente aos olhos do "flâneur", aquele que perambula... e vê, se tiver olhos para ver.

As cidades visíveis
                                                 Elisabet Gonçalves Moreira


Por que não gosto de caminhar pelas ruas de minha cidade? Nada é uniforme, então tenho dificuldades para andar, para me desviar de buracos, de cocô de cachorro... também me incomoda o cheiro de esgoto que vem das bocas de lobo... ou de xixi velho nas encostas de muros... da visão do lixo que se espalha, principalmente sacos plásticos vazios que se agarram como se vivos fossem.

Meu trajeto é curto. Nas imediações de casa, quase periferia, caminho porque também é preciso desenferrujar as juntas, olhar o mundo além do meu muro com cerca elétrica. Levar apenas o essencial, saber da certeza de voltar onde a vida se desenrola devagar e confortável.

Mas, de repente, vejo uma grande folha vermelha de castanhola que o vento de julho trouxe no meu caminho. Vermelha, uma cor que eu ou um mestre jamais conseguiria reproduzir... ah, olhos de artista, me diz minha companheira. Sim, meus olhos enxergam essas cores, o amarelo pálido das xananas nos vãos e interstícios das margens das ruas...

Olho por onde piso... quase um provérbio. Então vejo e também ouço... Barulhos artificiais de artifícios tão modernos como uma acelerada de moto, do escape de um carro, de gente apressada ou em exercício de levar o cachorrinho para passear, mais um fazer obrigatório do viver na cidade.

De cidade vem cidadão. Que relação haverá neste conceito? Ser da cidade, citadino, exclui o camponês, o ribeirinho, o favelado e outros nomes que moldam condições e classes sociais? Tantos significados, estereótipos, preconceitos e uma dinâmica que vai e vem, apesar dos guetos e dos condomínios fechados.

Impossível ver uma cidade sem pensar em suas contradições, no que está imóvel e belo no  cartão postal e o que se vê nas ruas, nas praças, num pulsar quase frenético... O flanelinha insistente com sua lata d´água abastecida no jardim público, o malabarista da esquina, pedintes em várias situações, aqueles que entregam pequenos panfletos de propaganda de óticas, de dentistas... por que não fazer um empréstimo consignado? Ou visitar Madame Devoica?

Tantos moldes, situações, embaraços, embrulhos, sacolas, gritos, buzinas, o horror se instalando no caos... que se ordena no final do dia, no apagar das luzes... Sim, podemos ver ou viver... vendo o vermelho de uma folha de castanhola ou ignorando o que se passa, inevitável como o desenrolar dos dias...


Petrolina, 14 de julho de 17




quinta-feira, 27 de abril de 2017

“O SAMBA É FOGO”: O povo e a força do Samba de Véio da Ilha do Massangano


                                                                                                          

                                                                            “O Samba é Fogo”:
                                       O povo e a força do Samba de Véio da Ilha do Massangano
                                                                                                     Márcia Nóbrega
                                                                     (Rio: Papeis Selvagens; SESC, 2017, página 80)
Que livro é esse?

 Livro que não arde, mas cuja leitura pode incendiar, como o samba, com seu povo e sua força...

“O que importa é que a brincadeira é a arte de proporcionar encontros, seja ele entre pessoas entre si, coisas ou espíritos. Através dele passam intensidades – seja a força ou seja o fogo – que comporão agenciamentos que, longe de levar à produção de um sujeito unificado, compõe sujeitos múltiplos.”  (página 80)

Só mesmo uma observadora de olhar sensível e apurado para narrar  possibilidades de significados e nos oferecer uma travessia e um porto para ancoragem de entendimento, se isso for desejo.

Não há dúvidas, Márcia Nóbrega, neste livro, que já foi dissertação de mestrado, defendida em 2010 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, nos revela como o fogo e as águas circulam na Ilha do Massangano.  E, por isso, este livro é fundamental para entendermos o samba de veio e o jogo de relações que o identificam. Sempre vi, neste trabalho de Márcia, uma fundamentação consistente e original para nos mostrar como aquele povo da ilha é e está em seu viver e sentir, tendo como mote o samba ali acontecendo.

Que fogo é esse que dá voz e força a um povo cercado de água por todos os lados?

                                                                               (Foto de Lizandra Martins)

As lições que o livro nos passa mostram que, mesmo em terra firme, podemos ainda aprender com esse modo de viver e sentir, de relações entre o mundo natural e o sobrenatural, de antinomias e de constantes reinvenções onde o princípio básico é mostrar a vida (e a morte) em encontros e intensidades.

Para isso servem as festas, outras tantas que na ilha há, servem também orações e penitências, servem suas práticas em procedimentos e processos, serve o samba.

Um samba que carrega hoje uma característica: “samba de veio”, quando saiu da ilha e se tornou espetáculo em palcos da cidade, pois na Ilha ele é apenas samba, sem figurinos e chapéus de palha. É dos “janeiros”, de “reis”, pedindo licença para entrar. E, em sua intensidade, esse fogo que nele habita e que nele se faz necessário, desde afinar o couro dos tamboretes, esquentar o corpo na cachaça até incendiar emoções.

Canções, vozes, batidas, palmas, umbigadas, balanço, ritmo, muito além do entretenimento, parte intrínseca da vida, do cotidiano e de um modo de ser neste mundo, microcosmo numa ilha, de gente, de parentes que se fazem povo em suas variadas designações. Nomes e desígnios, destinos que se cruzam e se fundem...

Uma ilha de nome Massangano, de raiz africana, mistura-se no samba com os caboclos, vibram canções vindas do litoral e de outros portos, neste vaivém das águas e dos séculos... Márcia cria adjetivos, dá gênero ao nome, desaguando tudo numa  “existência massangana”. E é aí que seu trabalho de observadora e estudiosa se justifica.

Não dá para sintetizar em apresentações ou artigos o que seja esta existência, talvez pontuar detalhes e características no geral. A palavra tradição praticamente não existe no trabalho de Márcia, pois é no presente dinâmico de cada rodada de samba, sua motivação e encadeamento que o samba de veio da Ilha do Massangano se faz e se refaz no fogo simbólico que “esquenta” a própria vida. 

Sem estereótipos ou exotismo, Márcia capta e analisa sabiamente esta realidade, a do cotidiano, do dia-a-dia em sua luta pela sobrevivência, marcada por uma alegria de ser, de saber como ela nos diz, “de nunca estar sozinho”, existindo pelas forças atávicas em sintonia, seja no terreiro, seja na festa...

Quem precisa ler o livro de Márcia? Quem quer ler o livro de Márcia?

Então é esta uma apresentação, um lançamento, um convite à leitura, ao conhecimento do que vale a pena, com momentos de intensa linguagem poética, nos transes de observação do que é a vida em sua dinâmica. Não só do samba de veio ou do povo da ilha, mas poder também extrapolar para outros olhares, metodologias e informações.  

Márcia Nóbrega soube vivenciar os mistérios desta ilha e escrever para que nós outros saibamos que esse fogo é também a força de um povo... sabemos dele? Distanciados pelas águas e o circuito urbano não podemos fingir que não sabemos o que o povo da ilha pensa, sonha, dança, vive... Um “povo” que se estende para outros ilhados ao nosso redor.

                                                      
Flagrante no lançamento do livro em 23/4/17, na Ilha do Massangano. Dona Amélia, mestre do samba numa ponta e, na outra, Márcia Nóbrega. (Foto de Tatiana Devos Gentile)

Parabéns querida Márcia, torci muito pela edição deste livro, assim como outros amigos seus.
Que venham outras complementações, já que, bem sabemos, tudo está em processo, e um olhar dinâmico é fundamental... e você o tem. Assim como tem o dom de escrever bem.
Carinho,
Elisabet G. Moreira

Abril de 2017

quinta-feira, 30 de março de 2017

O que há por detrás das máscaras do teatro?


A fixação do teatro numa linguagem (palavras escritas, música, luz, ruído) indica a aproximação de sua perda. O teatro, como a cultura, propõe o problema de denunciar e dirigir as sombras. Tem-se que acreditar num sentido da vida renovada pelo teatro.”
                                              Joseph Chaikin (Open Theater)


Justificando: Em março de 1998 escrevi este texto, a pedido de Sebastião Simão, ator, diretor teatral, poeta. Atuante nestas margens do rio São Francisco, hoje em Recife, Sebastião “formou” uma geração de atores, chamando-os para um teatro moderno, visceral, mesmo que pesquisando antigos textos. Reencontro-o neste março após 19 anos, num espetáculo solo, mas com seus bonecos, encenando Osman Lins. Conheço Odília Nunes em uma residência artística sobre memórias no SESC Petrolina. Encontros e lembranças...
E coloco este texto em cena... acredito que ainda seja útil, pelo menos rememorativo será.



Sebastião Simão no espetáculo “Mistério das Figuras de Barro” de Osman Lins, março 2017 - cartaz de divulgação

MÁSCARAS de MENOTTI DEL PICCHIA

Elisabet Gonçalves Moreira - Petrolina, 19.3.98

         O que terá levado Sebastião Simão a encenar Máscaras de Menotti del Picchia?
       Não sei nem lhe perguntei sobre isso, mas tenho algumas hipóteses, pois há muitas relações e inferências a serem feitas. Primeiro, sua companhia teatral chama-se Cia. Máscaras do Teatro. O símbolo consagrado do teatro são as máscaras (persona do teatro grego, daí a palavra personalidade), da oposição do trágico e do cômico, riso e pranto, dualidade intrínseca à nossa condição humana. Máscaras - como metáfora -  é também a representação do ator, concretizada como objeto não só no teatro grego ou japonês, mas na commedia dell’ arte italiana, cujo auge aconteceu nos séculos XVI, XVII e XVIII. Até nós chegaram, bem caracterizadas, as máscaras convencionais,  ligadas ao carnaval,  do Arlequim, do Pierrô e da Colombina, personagens da peça de Menotti Del Picchia.
         É significativo, portanto, que esta tenha sido a primeira das cinco peças escolhidas pelo encenador, dentro do projeto PRA VER TEATRO! E que o jornal tenha também o nome MÁSCARAS. Tirá-las ou colocá-las, vai ser um processo que se desencadeia interativo. Como postura de aproximação e distanciamento. Tanto da parte do espetáculo como de nós, espectadores. Em expectativa...
        
Quem é Menotti del Picchia

         Nome italiano, mas brasileiro, sim.  Nascido numa pequena cidade do interior de São Paulo, em 1892, Menotti del Picchia faleceu já bem idoso. Mais que sua obra literária, é conhecido como um divulgador das correntes modernistas e participante da Semana de Arte Moderna de 1922. Suas obras mais conhecidas são o poema Juca Mulato, de 1917 e o romance Salomé. Segundo o crítico Alfredo Bosi, Menotti del Picchia “construiu obra singular no contexto modernista, no sentido de uma descida de tom (um maldoso diria: de nível) que lhe permitiu aproximar-se do leitor médio e roçar pela cultura de massa que hoje ocupa mais de um ideólogo perplexo.” Reconhecendo-o, no entanto, como escritor brilhante, procura justificar o caminho seguido, na medida em que suas obras “responderam às expectativas de um público de fato divorciado do Modernismo de 22, enquanto este não soube, ou não pôde, refletir as tendências e os gostos de uma classe média em crescimento, incapaz de maior refinamento artístico.” Realmente, Bosi é duro com Menotti. Mas é sabido que as obras de um Oswald de Andrade e de outros modernistas notáveis, é de difícil entendimento e aceitação para muitos letrados que se pretendem “esclarecidos, mesmo nos dias de hoje.”  (Fonte: História Concisa da Literatura Brasileira de Alfredo Bosi, S. Paulo, Cultrix, 1972, 2a. ed., páginas 413-415).

Sobre a peça

          Máscaras, conforme confissão do autor na introdução do livro publicado pela Ediouro, foi fruto de um desafio entre amigos no ano de 1920. Conta também que no lançamento festivo dessa peça, em 1921, Oswald de Andrade teria “deflagrado” o desafio de uma nova ordem literária que resultaria na Semana de 22. Mas o próprio Menotti reconhece também que Máscaras é, em certa medida, um anacronismo, classificando-a de “bluette” romântica...
         “Bluette” - do francês - significa “pequena obra literária pretensiosa”. E romântica, todo mundo sabe o que é: sentimentalismo, emoção, geralmente exacerbada.
         Máscaras é uma peça em 3 atos, com 3 personagens, bem definidos. A saber, pela sequência: O beijo de Arlequim, em que a fala “titular” é desse personagem, em diálogo com Pierrô, cuja referência é uma mulher, idealizada não só por sua beleza, mas sobretudo pela sensualidade despertada através de um beijo do Arlequim, máscara do cinismo e da lascívia. O sonho de Pierrô, com a continuação do diálogo, do ponto de vista agora de Pierrô, é a máscara romântica do amor idealizado. Finalmente o terceiro ato, O amor de Colombina, em que finalmente a personagem mulher em referência aparece, vendo-se dividida entre os dois, entre a simbologia de suas máscaras, sonho e realidade. Já viu este filme, digo esta história, talvez numa marchinha antiga de Carnaval?
         Talvez os não muito jovens lembrem-se desta alegoria. O ponto de vista do homem está expresso nesta incógnita eterna para ele, conquistador em desafio:  quem é a mulher afinal? Aliás, o autor deixa claro, antes de iniciar as cenas, citando os personagens: Arlequim: um desejo; Pierrô: um sonho; Colombina: a mulher. As abstrações estão caracterizadas no tipo tradicional destes personagens homens. Para a Colombina, a dureza - assim o senti - do substantivo concreto: a mulher. São personagens planos, fáceis de identificação. Tipos de uma tradição popular, daí a relação com a commedia dell’arte, que utilizava personagens típicos, cada qual com um nome tradicional e um traje distinto.
         A relação, como texto, só dá para se fazer até aí, pois na commedia os diálogos eram improvisados. Há outras características como canções, acrobacias, trejeitos. No texto temos explicitamente uma canção em redondilha maior, cantada por Colombina, além de execução musical por Arlequim.
         A respeito disso, o texto é todo em versos. E metrificados. Doze sílabas poéticas, alexandrinos portanto, dentro da mais pura tradição formal parnasiana, tão em gosto na época. O vocabulário também é precioso e erudito. E a mensagem não poderia ser mais definida: a mulher dividida igualmente entre o amor sensual e o amor platônico, romântico.
         Máscaras, como título e como alegoria. Uma representação em que o autor relaciona explicitamente, antes do texto cênico, com a vida, “em qualquer terra”, “em qualquer tempo”, onde os homens amem e sonhem.

Sobre a encenação

         Associando - critica ou didaticamente - o que foi dito, façamos nós, se não uma análise, a tentativa de se envolver em propósitos.
         Intuição de que - a priori -  Sebastião Simão não fará uma encenação tradicional de uma peça tão tradicional ela mesma. O processo de desmitificação (distanciamento brechtiniano) pode se dar por esta opção, por escolher teatralmente linguagens em interação que mostrem criticamente a realidade da vida e a realidade do teatro. Em representações. E que, como num jogo, interajam. E divirtam também, como espetáculo lúdico que, no final de contas, o teatro é.

 Aliás, a possibilidade de rir de nós mesmos, desmascara muito de nossa condição humana.




Odília Nunes e sua personagem Cordelina (foto de Renata Pires)

Só para lembrar: Odília foi a Colombina naquela apresentação de 1998...

        




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

São João do carneirinho: o detalhe na pesquisa

Uma pausa à Série Mexicana... em conversas sobre metodologia de pesquisa, me foi pedido um texto sobre considerações que faço e demonstro. Então, aqui vai o texto que, posteriormente, será também publicado na revista virtual da UPE.


A PESQUISA E O DETALHE:

A CARDABELA NA IMAGEM DE SÃO JOÃO DO

CARNEIRINHO

Elisabet Gonçalves Moreira[1]

Para Dominique e Jean de Poudevigne



São João do carneirinho: imagem de domínio público, sem autoria.

Embora as festividades do São João no calendário de festas religiosas tradicionais em nosso país tenham mudado muito – e é natural que isso aconteça na dinâmica dos tempos – esta imagem do São João menino com seu carneirinho ainda permanece e está instaurada na memória coletiva. Parte integrante das práticas rituais e dos costumes, ela é de tal modo popular que extrapola seu sentido como imagem de devoção.

Invariante, constata-se a presença central do menino, nesse caso em meio corpo, com cabelos cacheados e uma auréola dourada, vestido parcamente com uma pele que pode ser de camelo ou de carneiro, um ombro nu, segurando um cajado fino de madeira que ostenta a faixa com os dizeres em latim “Ecce Agnus Dei” (Eis o Cordeiro de Deus), um filhote de carneiro branco apoiado em seu braço, com um fundo que, geralmente, lembra uma noite de céu estrelado e, na parte inferior, nuvens e um arranjo simétrico de flores. Este conjunto, como se fora um altar, dá a conotação religiosa de que a imagem necessita para ser venerada, além das paredes da igreja paroquial.

Venho trabalhando há alguns anos com esta representação, de cunho popular, e sua simbologia. Já escrevi e apresentei partes dessa pesquisa, incluindo um trabalho comparativo com pinturas do mesmo tema de mestres consagrados na arte universal. Mas, neste momento, apresento basicamente um artigo, tomando um detalhe para exemplo de que o método, que leva ao conhecimento e à interpretação, traz também revelações e coincidências inesperadas. 

Partindo de algumas premissas metodológicas, desde o princípio de que, mesmo uma imagem é um texto, e que ele pode ser lido, isto é, decodificado dinamicamente, onde tudo é significativo, destaco a análise semiótica e suas correlações interpretativas, de um modo menos acadêmico para um artigo simples.

Assim, o detalhe a ser analisado é a cardabela (língua occitana) ou cardabelle (francês) a flor que aparece na parte inferior da imagem, no centro do buquê florido, rodeado de galhos floridos em nuances de um rosa forte. Há certas conexões ao se fazer uma pesquisa que nos proporcionam não só conhecimento, mas o prazer mesmo de compreender seu significado e como a ele chegamos. O que implica em também associar o detalhe com o todo, nesta dialética da interpretação, da leitura e da narrativa a nos desafiar.

I.                A cardabela representada

Essa imagem de São João do carneirinho, hoje digitalizada e de domínio público, sem autoria, teve sua origem, certamente, em uma ilustração para os “santinhos” católicos bastante difundidos na Europa ocidental e em nosso país, nos séculos XIX e XX. Quando comecei a fazer a leitura sígnica dos elementos constitutivos desta imagem, não identifiquei de imediato que flores eram essas e isso ficou pendente.

Entretanto, numa viagem ao sul da França, em 1992, meus olhos viram a cardabelle ou cardabela e o alumbramento se deu. Em uma vila histórica, dos tempos medievais, vi, nas portas das casas, a cardabela em destaque. Mas eu a vi também no chão, nativa, no campo, no tempo mais seco.
                             

                                 Cardabela seca                               Cardabela no solo                                    Cardo mariano

A cardabela não existe no Brasil, que eu saiba, mas pode ser comparada ligeiramente a algumas espécies de  “sempre-vivas”, flores típicas do cerrado, já que secas, são também duradouras e usadas para ornamentação. No vasto planalto de Larzac, sul da França, cardo é também outro nome para a flor desta planta selvagem tipicamente mediterrânea e que pertence à família das alcachofras. Como o girassol, ao se abrir, de um amarelo claro, ela tem a particularidade de captar a luz solar e se fecha quando cai a umidade e chega a chuva. Por isso ela é tida como uma espécie de barômetro, para previsão metereológica. Os pastores, criadores de ovelhas, também colhiam a flor da cardabela pelo seu miolo comestível e usavam as folhas espinhosas para desembaraçar a lã de seus rebanhos.

Sobretudo – e é esse detalhe do detalhe - diz-se que a cardabela, quando seca, é um amuleto de boa sorte e felicidade. Ela serve também para espantar os feitiços e as bruxas ao ser colocada com fé na porta da casa e na entrada dos celeiros e dos estábulos, para proteger os animais.  É pois muito significativo que a cardabela seja o símbolo de toda a região.

As outras flores do ramalhete também são classificadas como cardo, de folhas espinhentas, encontradas facilmente por toda Europa, à beira dos caminhos, em solos mais secos. Acredito que seja um cardo-mariano, embora haja muitas espécies dessa planta. Sua inforescência, cor de rosa ou púrpura, atrai principalmente abelhas e isso é fundamental para os apicultores. Também caule e folhas são comestíveis e têm vários usos medicinais. 

E o que elas estão fazendo no quadro de São João do carneirinho, se não esta correlação simbólica para homenagear um santinho, mediador de nossas preces e bons augúrios na vida terrena, como mostrar isso aos fieis (e a uma pesquisadora brasileira)  a constatação da origem desta imagem?

Sem dúvidas europeia, mais precisamente francesa, outras pesquisas paralelas mostraram que, mesmo que não tivesse sido impressa em “imprimeries” (gráficas) do sul da França, a matriz é de lá, um protótipo padrão. Todos os componentes da imagem se inscrevem numa tradição que consolida a representação de um São João ainda menino, uma criança modelo de virtude, primo de Jesus, bem diferente das representações de São João Batista adulto, batizando o Cristo ou decapitado pelo capricho de Salomé, como relata a Bíblia.

II.                A cardabela e a poesia occitana

Em outra ocasião, ganhei de um amigo francês, que mora perto de Montpellier, sul da França, um belo livro. “La Cloche D´Or”, cuja tradução literal é “O sino de ouro” com a foto em destaque da cardabelle na capa, já que a edição é francesa. Difícil fazer a indicação bibliográfica deste livro, mais um álbum, pois não possui ficha catalográfica e tem vários “patrocinadores”. [2]

O prefácio do livro é esclarecedor. Belas fotos, clichês para cartões postais e textos que complementam as imagens. E há um questionamento sobre o título que mostra a importância simbólica desta flor para a região. Um signo que realça a beleza da luminosidade solar, iluminada pelo poema de Max Rouquete, escritor assumidamente occitano.

Na página 58 encontramos a grande homenagem à cardabela. Primeiro na língua occitana, tão parecida com as línguas ibéricas, quando falada, sem o sotaque “carregado” dos franceses do norte. Mesmo os franceses reconhecem essa diferença dos sotaques.

Na página ímpar, a seguir, a “tradução” para o francês moderno, do mesmo autor.

Entre a língua occitana e o francês moderno, me atrevo a fazer uma tradução literal, para maior entendimento do texto e da poesia nele implícita.

CARDABELA – Cardabela, rosa verde/ e roda dentada, /relva solar nascida ao rés do chão /dos amores da terra e do sol.
Arrancada pelo vento do inverno/ tu te lembras que roda tu és./ E roda, porque tu rodarás/ pelas clareiras e planícies,/ livre, liberta de qualquer lugar,/ como a roda da desfortuna.
Como a coruja e o morcego,/ na porta a gente te prega,/ de cara com teu pai o sol./ Teus dedos sobre teu coração se fecham/ e se abrem. Morta, vives. / A cruz traz a imortalidade.
E tu existes, na claridade, a mão aberta como a mão eterna dos velhos tempos.

Observação: No verso “A cruz traz (ou faz) a imortalidade” há um componente imagético subliminar. O símbolo da Occitania é uma cruz, como se pode ver a seguir, relacionada também com a história das cruzadas medievais da região.  Lembra a cardabela? 


III.         A língua occitana: relações ampliadas

De detalhe em detalhe, algumas poucas relações que viabilizam caminhos  e possibilidades de leitura. Quando se estuda a história da língua portuguesa ou da literatura portuguesa, herdeiros que somos de nossa história de colonizados, aprendemos a importância do latim clássico ao latim vulgar, cruzado que foi na formação das línguas ibéricas. E em uma delas está a língua occitana.

A Occitania ou Provença nos leva também à lembrança da poesia e da música dos trovadores que escreviam e cantavam “em maneira de proençal”, ou seja, provençal. O Trovadorismo está fincado nas raízes da literatura brasileira até hoje, seja em textos consagrados, seja na poesia popular. Afinal, bem sabemos, a intertextualidade é um fato onde tradição e modernidade se mesclam e dialogam a todo instante. Por que não no imaginário?

E, além disso, retorno à introdução deste artigo, quando falei de revelações e coincidências. Ganhei outro livro. Desta feita de um ex-aluno, hoje colega e pesquisador de cordel.

RELIGIOSIDADE POPULAR França e Pernambuco: Diálogos, expressões e conexões de Silvério Pessoa (São Paulo, Fonte Editorial, 2016).

Quer melhor título do que esse? Embora o autor, também músico, Silvério Pessoa, não cite a cardabelle em sua dissertação de mestrado, a temática só confirma o que foi dito. Ele mostra, através de sua pesquisa, que a o catolicismo europeu foi introduzido pelo Mediterrâneo e acompanha “diálogos, expressões e conexões” entre França e Pernambuco, pelo viés da religiosidade popular. E faz uma citação da qual aproveito um fragmento.

“A religião popular é um dos elementos de uma cultura popular que permaneceu na França – especialmente no sul – autônoma até cerca de 1860. (...) Religião popular, ou seja, religião vivida, vivenciada por muitos  (...) em oposição a uma religião prescrita, oficial. Uma e outra caminham em ritmos diferentes.”  (p. 79)

Como justificar, no caso de nossa imagem, por exemplo, sua colocação nos mastros enfeitados das festas juninas? Ou como referência e elemento decorativo nas procissões e até nas quadrilhas?  Os fogos e foguetes de São João remetem também à imagem que se associa a outras histórias, a das fogueiras, das “simpatias” e seu simbolismo agrário. Embora estas festas, espalhadas pelo Brasil, tenham grandes diferenças entre si, a marca do afeto, da religiosidade ali vivida é ainda singular e prazeirosa.


Mastro de São João enfeitado com fitas, flores artificiais e laranjas.

Na imagem de São João do carneirinho, constatamos portanto que a cardabela ali reproduzida não é uma flor qualquer, aleatória. Signo da terra, ela é mais do que uma homenagem ao santinho, ela revela, muito além do catolicismo dogmático, toda a mística de seu poder ancestral, “dos velhos tempos”.  Uma reverência ao renascer, “morta, vive”, como diz o poema. Traz benesses, nos protege e nos mostra uma tradição também viva, que pode ser liberta nas entrelinhas, ou melhor, na leitura sígnica da imagem/texto. E na fé de seus devotos.

Evidentemente que este detalhe – e muitos outros - tem que ser estudado e pensado no conjunto do elementos da imagem. Em processo, este estudo continua. Não há análise que esgote uma interpretação, seja de que caminho metodológico for. A história, o momento, o olhar variam no seu conjunto e na visão pessoal do pesquisador. 




[1] Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Professora aposentada da UFPE e do IFSertão de Petrolina, PE.

[2] LA CLOCHE D´OR – Aspects, Êtres et Choses, de la Moyenne Vallée de L´Hérault et de ses environs. Photos Harold Chapman – Claire Parry – Textes Max Rouquette. (Ouvrage publié avec le concours de: Conseil Général de L´Hérault et d´autres offices. I.S.B.N. em cours © Bibliothèque 42. 34150 GIGNAC) s.d.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Série mexicana II

O veado alvejado e um ritual milenar

                                                                                     Elisabet Gonçalves Moreira



Figura 1: “O Veado ferido” ou “La Venadita” de 1946, de Frida Khalo (Óleo sobre metal, 22,4 x 30 cm)


    Figura 2:  Print da “Dança do Veado” - Balé Folclórico do México de Amália Hernandez



 Figura 3: Apresentação da “Dança do Veado”, em San Carlos, Sonora, México.


Qual a relação que se estabelece entre estas três figuras? Muitas... e vou acrescentar mais uma.




Figura 4: Estátua de veado numa praça da Cidade do México, 2016 (foto de minha autoria)


Para a continuação desta série, fiquei pensando... procuras, desafios, memórias, um caos que emerge em torvelinho. E sempre a correlação memória e o instante mágico das conexões entre passado, presente e conjeturas.

O título é meu tema; as ilustrações corroboram leituras, entre ditos e signos...

Que animal simbólico é este que perpassa todas as figuras?  O veado é um animal elegante, cheio de delicadeza e graça, símbolo de força, virilidade, pureza e velocidade.  
 Este belo ser foi um dos animais mais transcendentais para a cultura dos índios maias e iaquis, desde tempos remotos. A Dança do Veado, verdadeiro ritual, também chamada Mazoyiwua, é uma representação de sua atividade como caçadores durante gerações. O simbolismo deste ritual é muito significativo. O vínculo do homem em seu entorno geográfico e a veneração que faz da natureza como fonte de vida e sustento, a Mãe Terra.

Um reporte

Há alguns anos, nos tempos do vídeo cassete, minha filha Adriana me presenteou com o Balé Folclórico do México de Amalia Hernández. Fiquei maravilhada com a performance e coreografia da dança do veado, sua caçada e sua morte, nessa alegoria ancestral, pré-colombiana.
Consegui assistir a uma apresentação deste balé em 2016, numa manhã de domingo de outubro, no Museu Nacional de Belas Artes na Cidade do México. E me senti completa em poder ver, ao vivo, “La danza del venado”.
Com as possibilidades desta mídia e de seus acessos, coloco aqui o link, para se ter uma ideia da magia do espetáculo.





Notas sobre “A dança do veado”

Balés, concursos..., mas ainda há apresentações ritualísticas da dança do veado em ocasiões especiais. Encontrei sites que detalham a dança e sua simbologia com poucas variantes. Tudo ali tem um significado. Adereços, sons, cânticos, personagens, instrumentos.
Ademais, soube que há até concursos no interior do México para se escolher a melhor performance do bailado na caça e na morte do veado.


Na dança participam como personagens o Veado e os Pascolas (os caçadores). Há algumas variantes do figurino para a apresentação, mas a cabeça dissecada de um veado sobre a cabeça do dançarino e um par de maracas agitadas constantemente durante o ritual não deixam dúvidas da essência do protagonista. Os Pascolas são os caçadores à espreita da caça, armados com arcos e flechas. Podem utilizar máscaras pintadas de preto, de onde saem barbas e mechas. Todos portam guizos nas pernas e dançam descalços.
Outra característica que reflete o caráter milenar da Dança do Veado são os instrumentos usados. É o caso do tambor de barro ou madeira, que emite sons muito peculiares, como a água e até o bater do coração do veado. A música é complementada com cânticos em dialeto iaqui pelos músicos que acompanham a apresentação.
Os diferentes momentos da dança fazem alusão à luta do veado para defender sua vida das flechas do caçador. O espírito do animal é encarnado pelo homem que baila sem cessar reproduzindo o andar do veado em sua fuga desesperada, seus ferimentos, sua morte. É impressionante a atmosfera criada, de veracidade e beleza
No final coloco alguns destes sites/referências que melhor desenvolvem a simbologia da Dança do Veado.

Mais uma vez Frida Khalo

Relações e coincidências... quase num repente abri um livro que adquiri de um sebo virtual de Buenos Aires e do qual reproduzo a capa onde resplandece o nome de Frida Khalo e sua figura como um ícone de nosso tempo.



E, no folhear, lendo aqui e ali, vejo, à página 357 e 358, a dedicatória escrita em versos, que Frida Khalo fez num guardanapo para ofertar seu quadro, “O veado ferido”, reproduzido na Figura 1.
Frida Khalo havia saído de mais uma operação de sua coluna vertebral em Nova Iorque, ano de 1946. De volta ao México, continuou sofrendo dores não só físicas. E, mais uma vez, representou essa dor, que também nos comove.
Atravessado por flechas e sangrando, o veado, com a cabeça jovem de Frida, olha para o espectador dentro de um bosque, do qual não consegue sair, mesmo que o céu representasse uma esperança de escape. À esquerda do quadro, na parte inferior, aparece escrita a palavra “Carma”, assinalando seu destino. Um destino que, em muitos autorretratos de Frida, ela é incapaz de mudar.
Quase invariante em sua obra, o quadro tem muito da pintura votiva, tradicional no ex-voto mexicano. Em 3 de março de 1946 Frida ofereceu esta pintura para seus amigos Lina e Arcady Boyter como presente de casamento. E, mais uma vez, fiel às tradições mexicanas, fez um corrido.

CORRIDO PARA A Y L
                      Mayo de 1946
Solito andaba el Venado
Rete triste y muy herido
Hasta que em Arcady y Lina
Encontro calor y nido

Cuando el Venado regresse
Flerte, alegre y aliviado
Las heridas que ahora lleva
Todas se le habrán borrado

Gracias niños de mi vida,
Gracias por tanto Consuelo
en el bosque del Venado
ya se está aclarando el cielo

           Coyoacán, viernes  3 de mayo de 1946

Ahí les dejo mi retrato,
Pa´que me tengan presente,
Todos los días y las noches,
Que de ustedes yo me ausente.

La tristeza se retrata
En todita mi pintura,
Pero así es mi condición,
Ya no tengo compostura.

Sin embargo, la alegría
La llevo en mi corazón,
Sabendo que Arcady y Lina
Me quieren tal como soy.

Acepten este cuadrito
Pintado con mi ternura,
A cambio de su cariño
Y de su inmensa dulzura.
                             
                     Frida

O simbolismo do veado no México atual

A foto da Figura 4 ilustra a veneração a este animal mítico que abrange tantos significados. Se Frida Khalo o pintou ferido, como ela, há também uma canção bastante popular, de domínio público. Uma versão bem conhecida e humorada deste tema é a que realizou a cantora mexicana Lila Downs.


Diz a letra:

El venadito

Sou un pobre venadito
Que habito en la cerranía
Como no soy tan mancito
No bajo al agua de día
De noche poco a poquito
Y a tus brazos vida mia
Ya tengo listo el nopal
Donde?de cortar la tuna
Ya tengo listo el nopal
Donde?de cortar la tuna
Como soy hombre formal
No me gusta tener una
Me gusta tener de a dos
Por si se me?noja alguna
Quisiera ser perla fina
De tus lucidos aretes
Quisiera ser perla fina
De tus lucidos aretes
Pa?besarte la orejita
Y morderte los cachetes
Quién te manda ser bonita
Si esto a mi me compromete

Ya con esta me despido
Pero pronto doy la vuelta
Ya con esta me despido
Pero pronto doy la vuelta
No?más que me libre dios
De una niña mosca muerta
De esas que ay! Mamá por Dios!
Pero salen a la puerta
No soy coplero y me voy cantando
Ahí dejo mi chilena a la morena
Que estoy amando



Referências: