Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quarta-feira, 19 de abril de 2023

MARCAS DE FERRAR - (PARTE IV) MARCAS NA LITERATURA: FERRANDO GENTE E GADO

 Continuando... ainda na literatura, José de Alencar idealiza um vaqueiro, ou melhor, um sertanejo que faz um ferro para sua amada e marca corajosamente um boi selvagem na paisagem inóspita de um Brasil colonial... diferente do Fabiano, vaqueiro humilhado de  Graciliano Ramos, mais de um século depois. Lembrando ainda os vaqueiros e bois mitificados nas cantigas sertanejas, outro olhar participante.

(...)

Relendo o romance O Sertanejo, de José de Alencar (1829-1877), ali encontrei a narração de um fato que também ilustra este trabalho sobre ferros de marcar o gado. Sem entrar em detalhes da estrutura narrativa ou da ideologia do autor, nesse romance “colonial” de Alencar, o Romantismo traz subcódigos que exacerbam o “bom selvagem”, até mesmo o realismo de certas práticas e descrições, como já se observou.

Arnaldo, o herói do romance, salvador de donzelas cobiçadas, é o protótipo do vaqueiro. Na voz do narrador: “Essa corrida cega pelo mato fechado é das façanhas do sertanejo a mais admirável. Nem a destreza dos árabes e dos citas, os mais famosos cavaleiros do velho mundo; nem a ligeireza dos guaicurus e dos gaúchos, seus discípulos, são para comparar-se com a prodigiosa agilidade do vaqueiro cearense.” [1]


Exagero ou não, na trama, ficamos sabendo do Dourado, um touro selvagem, e que Flor, a donzela, filha do capitão-mor, amada por Arnaldo, diz com arrogância explícita: “O Dourado há de ter o meu ferro! Exclamou com um arzinho de princesa que lhe assentava às maravilhas.” (ALENCAR, p. 161)


Pouco depois, acompanhamos a perseguição ao touro, como se fora uma caçada da nobreza europeia. Claro que é Arnaldo quem encontra o touro nas brenhas do sertão e matas virgens e o domina.

 

“Apeou-se e tirou um ferro de marcar, da maleta de couro que trazia à garupa, e a que no sertão se dá o nome de maca.

Todo o bom vaqueiro tem seu tanto de ferreiro quanto basta para fazer um aguilhão, para arranjar as letras com que marca as reses de sua obrigação e as de sua sorte, para dar têmpera à faca de ponta, e até mesmo para consertar a espingarda.

Arnaldo, havia anos, fabricara na forja da Oiticica um ferro que representava uma pequena flor de quatro pétalas atravessada por um F. O feitio era mais apurado e de menores dimensões do que os ferros geralmente usados no sertão.” [...] Por toda parte, nas rochas, como nos troncos seculares, ele tinha esculpido este símbolo de sua adoração. Como os descobridores de novas terras erigiam um padrão, ou fincavam um marco para tomar posse dessas paragens em nome de seu rei, ele, Arnaldo, na sua ingênua dedicação, pensava que, daquela sorte, avassalava o deserto a D. Flor, e afirmava o seu império sobre toda a criação.”  (ALENCAR, p. 179)


Seria assim?

O que se destaca, na descrição do ferro, é o fato de ser uma flor de quatro pétalas atravessada por um F, já que Flor é o nome da donzela. Uma alegoria do desejo e do ato sexual na posse masculina sobre uma flor mais delicada, pois “a atravessa”. Essa sombra erótica é subliminar, até mesmo na delicadeza de ter o “feitio mais apurado e de menores dimensões do que os ferros geralmente usados no sertão”. A observação não me parece muito acertada, pois, no livro de registro de ferros do qual farei referência, podemos ver como esses ferros podiam ser bem “apurados”. No caso, penso que o autor quis mesmo destacar o romantismo implícito no amor do vassalo por sua nobre donzela.

            É preciso associar também, no imaginário sertanejo, histórias de animais famosos pela valentia. Isso ficou nas canções, no “folclore”, como a encenação e narrativas do “bumba-meu-boi”. Uma aura fantástica cerca a figura de animais glorificados em epopeias versificadas. Bem menos laudatória, temos a lenda do “Vaqueiro Misterioso”, com algumas variantes locais. Trata-se de um homem, vestido com gibão de couro surrado, e um chapéu de vaqueiro sempre à cabeça, que lhe encobre o olhar. Não se sabe de onde veio nem o que faz.

                Aparece nas ocasiões em que há vaquejadas, ferração ou encontros similares. Devido à sua aparência humilde, torna-se alvo de zombaria dos demais vaqueiros. Contudo, é o mais ágil deles, um herói que vence a todos. É aclamado, desejado pelas mulheres, convidado de honra do fazendeiro. Ele, porém, recusa todas as honrarias e desaparece da mesma forma como surge. Para Luís da Câmara Cascudo, o vaqueiro misterioso "é um símbolo da velha profissão heroica, sem registros e sem prêmios, contando-se as vitórias anônimas superiores às derrotas assistidas pelas serras, grotões e várzeas, testemunhas que nunca prestarão depoimento para esclarecer o fim terrível daqueles que vivem correndo atrás da morte.”[2]

            E é interessante notar que sobejam loas à personificação do animal, que, por sua vez, na contramão da cantoria, nela subentende-se a valentia necessária para subjugar a fera. Mitifica-se assim o herói anônimo em sua peleja com a fera bruta, um respeito épico.

Cito o belíssimo “Romance do Boi da Mão de Pau”, de Fabião das Queimadas (1848-1928), impresso no livro Vaqueiros e Cantadores, de Câmara Cascudo, citado na nota 10. No romance O sertanejo, de Alencar, ferrado o touro, afirma-se também o romantismo utópico do autor, pois, num gesto “afetuoso” com o animal, ele o solta.


Esse orgulhoso e heroico vaqueiro não é assim representado em Vidas Secas de Graciliano Ramos (1892-1953). Sem dúvidas, é preciso considerar outro contexto, outra linguagem. No capítulo “Fabiano”, ele é apenas um trabalhador sem teto e sem gado em seu destino de retirante da seca, mostrada como um flagelo da natureza e das condições sociais dos que ali vivem.

 

            “Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.

            Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado.” [3]

 

            O aceite desse acordo “trabalhista” está na entrega das “marcas de ferro” pelo fazendeiro, dono do lugar. E a lida do vaqueiro fica implícita. Há mais violência aí do que propriamente no ato de ferrar o animal. Fabiano é o personagem-símbolo das relações de poder num mundo que desconstrói o mito do herói improvável, por sua eterna carência econômica e social, submisso e alienado. Sem perder a grandeza da literatura de Graciliano Ramos, essa visão do nordestino oprimido acabou estereotipada e absorvida pelo imaginário como incontestável.

          



[1] ALENCAR, José de. O Sertanejo. São Paulo: Edigraf, 1961.

[2] CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1984. Páginas 119-124

[3] RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 120ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 9.

 




sábado, 1 de abril de 2023

MARCAS DE FERRAR - (PARTE III)

 MARCAS NA LITERATURA: FERRANDO GENTE E GADO 

Em continuação, por acaso, encontrei exatamente essa figura, descrita na coleção Homem, Mito e Magia[1], acrescida de outros detalhes simbólicos, tal como foi retirada de um livro do século XVI, "O Verdadeiro Dragão Vermelho". Sabe-se que Guimarães Rosa era um estudioso de magia, mitos, superstições e também como isso faz parte de suas obras, contos e romances, dialogando com temas universais da própria existência humana.

Vale lembrar inclusive a “marca da besta”, citada no mais emblemático livro bíblico, o Apocalipse em 13, 16-17.

16 Também obrigou todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa marca na mão direita ou na testa,

17 para que ninguém pudesse comprar nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o número do seu nome.

            Texto polêmico, extremamente simbólico, o Apocalipse abrange diversas interpretações em seu conjunto, desde a historicista, no período da dominação romana e o judaísmo, até a personificação dessa besta, entre o poder religioso e o poder político. Inclusive, já se ressaltou que a estrutura narrativa desse capítulo apresenta algumas semelhanças com a narrativa de certos mitos cananeus. Narrativas dentro de narrativas, assim construímos referências e mensagens subliminares.

            Não era difícil encontrar pessoas com marcas ou tatuagens na antiguidade. As marcas podiam ser feitas por várias razões. Sinais de devoção por uma cura alcançada, de agradecimento, de trabalho, de escravos fugidos, esses geralmente marcados na testa como penalidade. Marcas também podiam ser impressas no corpo, uma exigência para se ter acesso a um tribunal ou para se negociar no mercado durante a ocupação romana, tidas como prova do culto – e fidelidade - ao imperador. Para alguns autores, em Apocalipse 13, temos um retrato gráfico da operação ideológica do Estado. Sobretudo, a marca da Besta acabou representando, no imaginário popular, um compromisso com o Diabo e o Anticristo. (2)

Interessante observar mais uma correlação intertextual. No livro 0 Vale do Terror, de Conan Doyle (1859-1930), o detetive Sherlock Holmes enfrenta a astúcia de seu célebre inimigo o Prof. Moriarty e, coincidência, o primeiro morto da história também tem o antebraço ferrado com o mesmo e idêntico sinal usado por Rosa. E lá, como cá, embora com as devidas diferenças, a marca era o símbolo de uma associação de criminosos - espécie de Máfia - que no início só fazia o bem, mas se degenerou. Elementar a relação?



 “O médico apanhara a lanterna e estava examinando cuidadosamente o cadáver.

- Que marca é esta? Indagou. Pode ter alguma ligação com o crime?

O braço direito do morto apresentava-se, até a altura do cotovelo, um desenho de cor castanha, um triângulo dentro de um círculo, que se salientava vivamente na pele clara.

- Não é tatuagem, afirmou o médico, olhando com atenção através dos óculos. Nunca vi coisa igual. O homem foi marcado, há algum tempo, a fogo, como se usa fazer com o gado. Qual será o significado disto?”  (3)


Particularizando mais pistas neste desafio, vemos que no romance de Ariano Suassuna, A Pedra do Reino, há várias referências a brasões de uma “heráldica sertaneja”, imaginada e representada pelo escritor. Inclusive, também como poeta e ilustrador, suas “iluminogravuras” reforçam esse diálogo com suas origens entre signos verbais e não verbais. Pode-se observar, a seguir, até mesmo o ferro da família Suassuna na anca do cavalo e da cabra e outros signos/alegorias recorrentes neste exemplo de uma iluminogravura [4].



O próprio Suassuna escreveu sobre isso, além de sua obra literária, lembrando dos signos ligados à Astrologia, ao Zodíaco e à Alquimia, de antigos livros, almanaques e saberes que circularam – e circulam – por este “Brasil profundo”, mitologias ancestrais e atávicas.

Na fazenda da família de Ariano Suassuna, em Taperoá, na Paraíba, em 1982, onde o criador de gado Manelito Vilar, falecido, se destacou no estado, observei o ferro da família, marcado também no couro do encosto das cadeiras da sala de jantar, agora como efeito de decoração, mas que não deixa de ser significativo. E que foi bem justificado nesta citação (item 4 de nota de rodapé).

"A partir de um registro de vários ferros familiares feitos por seu antepassado Paulino Villar, fazendeiro do século XIX, Ariano Suassuna estudou a fundo as formas que encontrou e as relacionou com a simbologia antiga. Segundo ele, o traço vertical, chamado tronco, representa o céu; o horizontal, ou puxete, significa terra. Os dois juntos podem formar o galho, a união imperfeita entre o divino e o ser humano. Ou ainda a cruz, a união perfeita entre ambos. Há signos para o macho, a fêmea e para a fusão sexual. O escritor viu semelhanças entre 'as formas meio hieroglíficas dos ferros sertanejos mais abstratos' com alguns dos signos ligados à astrologia, ao zodíaco e à alquimia, e acha que alguns dos primeiros fazendeiros podem ter escolhido para seus ferros os símbolos astrológicos de seus signos e planetas pessoais. Os desenhos dos ferros familiares vão se alterando no decorrer das gerações. Cada filho que começa a criar gado vai acrescentando sobre a base imutável do ferro familiar, chamada mesa, as suas diferenças, chamadas divisas, que podem ser um risco para um dos lados, uma meia lua, um pé de galinha etc. Em geral, o filho mais novo fica com a marca igual à do pai quando este morre. O pai de Ariano, último filho, tinha o mesmo ferro de seu avô e de seu bisavô. O escritor guarda como 'objetos sagrados' os ferros com os quais seu pai marcava pessoalmente seu gado nas fazendas Acauhan e Malhada da Onça.”

Quantas histórias como essas podem ser contadas? Famílias, lugares, costumes, afeto, tradição. Afinal, a própria História se apresenta como um espaço semiótico, cujos signos se articulam em razão de correspondências específicas. O processo histórico aqui se insere significativamente, como manifestação semiótica de uma cultura, o que, por fim, também queremos demonstrar. E essas marcas pessoais indeléveis, ferradas a fogo nos animais, passam a representar também uma figura semântica, strictu sensu, mais sinédoque que metonímia, simbolicamente a parte pelo todo.

Nesse contexto, o gado marcado é uma extensão da identidade própria do indivíduo, dela fazendo parte mais do que o número de um RG ou do CPF, formas de se controlar a vida e as posses neste nosso país e correspondentes alhures.


(continua... )


[4] Apud A estética armorial dos ferros-de-marcar na obra de Ariano Suassuna e Manuel Dantas, de Daniella Carneiro Libânio de Almada in https://www.pluralpluriel.org/index.php/revue/article/view/131   nº 17 – 2017 - Acesso em 21/07/2022  


[3] DOYLE, Conan, O Vale do Terror. São Paulo: Melhoramentos, 1982, p. 38.


[1] A Magia dos Símbolos, O Círculo, in Homem Mito & Magia. São Paulo: Ed. Três, 1974, vol. I, p. 140/141.