Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A HORA DA ESTRELA

A HORA DA ESTRELA: RESCALDO DE UM DEBATE 

Elisabet Gonçalves Moreira

“Quando as estrelas nascem e quando morrem, elas emitem radiação UV. Se víssemos o céu noturno somente com a luz ultravioleta, quase todas as estrelas iriam desaparecer e só iríamos ver nascimentos e mortes espetaculares. ” Stephen Hawking
“Eu vos direi "Amei para entendê-las
Pois só quem ama pode ter ouvidos
Capaz de ouvir e entender as estrelas."   Olavo Bilac

 
Neste maio de 2016, um alvoroço em minha vida, quase uma estrela... Depois de ser apresentada como crítica literária, um jargão em alguns eventos, também me atrevo – e gosto muito disso – em fazer crítica de cinema... no caso, a partir do convite de Chico Egídio, na dinâmica de seu exitoso projeto de cineclube no espaço Janela 353, para fazer a mediação do debate após exibição do filme A HORA DA ESTRELA, de Suzana Amaral. O desafio antecipava dois pontos básicos: “Mostra Brasil Mulher” no mês de maio, filmes nacionais de mulheres ou sobre mulheres e o fato de o filme ser uma produção baseada no livro A HORA DA ESTRELA, de Clarice Lispector.
Pensei em várias possibilidades, começando por comparar o livro com o filme, a adaptação para outra linguagem, pois muitos alunos e professores acreditam que basta ver o filme para dispensar a leitura do livro. Afinal, em quase duas horas de filme, com o olhar focado na tela, acompanhando a dinâmica das imagens e diálogos, fruímos de um ato que pode se tornar mais atraente do que a leitura, porquanto se daria em outro tipo de uso do tempo e da concentração. Observo que isso acontece não só por comodismo, mas também porque as propostas curriculares atuais se tornaram um arremedo do prazer da leitura, impondo leituras obrigatórias para vestibulares e exames do ensino fundamental, num mundo competitivo e de excesso de informações. Uma discussão que, didática e pedagogicamente, pode render bastante.
No entanto, a mediação para a qual fora convidada, era justamente um debate sobre o filme e não uma aula convencional. Foi interessante também perguntar no debate sobre quem havia lido o livro e, no conjunto, apenas três pessoas responderam sim, por causa da obrigatoriedade no ensino médio. Portanto, esse aspecto livro/filme foi mais citado do que estudado. Embora eu – e também a crítica em geral – ateste que a cineasta conseguiu, no filme, a essência da Macabéa, referência fundamental da narrativa. Os problemas existenciais da personagem imbricam e dialogam na questão social, de nosso país. Mesmo com diferenças significativas, observamos a recriação da linguagem cinematográfica, entrecruzando outras mediações em sua multiplicidade de signos.
Ressalto a fala do cineasta Jorge Furtado que, inclusive, fez uma adaptação de A Hora da Estrela para a tv.  Deixou “registrado... que as narrativas audiovisuais, por melhores que sejam, não substituem a importância e o prazer da leitura. Só a leitura produz escritores e só a leitura produz bons cineastas. O cinema e a televisão criam imagens, a leitura cria imaginação. ”
http://www.casacinepoa.com.br/as-conexões/textos-sobre-cinema/adaptação-literária -para-cinema-e-televisã
O filme original é de 1985, dirigido por Suzana Amaral que também assina o roteiro e uma equipe das várias linguagens que perfazem uma produção cinematográfica. Entretanto, em 2009, foi feita uma cópia de restauração do original, a que pude assistir em meu computador, pelo youtube.com e muito me admirei em verificar, nos créditos, uma outra grande equipe. Então, a pergunta que fica: qual o filme a que assistimos? Seria a mesma coisa? Neste 2016, o que, em termos técnicos de cinematografia, isso representa? Infelizmente, em nosso caso, Chico Egídio projetou o filme original, bastante prejudicado no aspecto visual, depois de 31 anos! Posso dizer que as modificações feitas no filme melhoraram muito a qualidade e o prazer do acompanhamento da montagem. Essa possibilidade técnica não é a mesma que se aplica ao texto de Clarice Lispector, a obra literária em seu trato finalizado com a palavra escrita. Essas questões podem ser complexas, se pensarmos em adaptações e restaurações de filmes antigos, mas é importante ficarmos atentos pois tudo na obra lhe confere significado. Um caso para ser pensado e completado em outros desafios.
Portanto, vamos a alguns itens que abriram e foram complementados no debate.

1.       O filme apresenta uma narrativa linear, começo, meio e fim, com pequenas epifanias que nos levam ao mundo da protagonista, Macabéa. A diretora e roteirista Suzana Amaral estudou cinema nos Estados Unidos e declarou que foi só a partir da leitura do livro de Clarice que se deu conta da situação da classe social proletária no Brasil e fez o filme. Associo também aqui a referência dolorosa de Clarice, em sua última entrevista para a TV Cultura, para a “inocência pisada”, a “miséria anônima” de sua personagem. Neste caso, A HORA DA ESTRELA, o filme, atinge o objetivo geral de mostrar o Brasil pela mulher, ou a mulher brasileira, aqui representada?

Sim, foi a resposta geral. A questão de gênero, no contraponto Macabéa em sua ingenuidade passiva e Olímpico, o namorado grosseiro e machista, é evidente. Esclarecedor foi também o comentário de uma participante, natural de Cajazeiras, na Paraíba, terra de Marcelia Cartaxo, a atriz que representa Macabéa, ao afirmar que, ainda hoje, ela conhece muitas Macabéas, sempre esperando da vida sua “hora da estrela”, sem se dar conta do mundo real e desmistificador deste sonho pueril e habitado no imaginário de tantas mulheres.

"Te dou um Céu
Cheio de Estrelas
Feitas com caneta bic
Num papel de Pão."
                                                          Zeca Baleiro

2.       Sigo dois postulados básicos: o da análise imanente da obra, partindo de seu funcionamento interno e o de que “nenhuma análise esgota um verdadeiro texto artístico”, seja um livro ou um filme e como eles dialogam com a realidade e a representação. Assim, sempre que vejo um filme, observo com atenção o uso das metáforas, onde elas funcionam como leituras subjetivas e criativas do diretor ou da montagem. E como a ideologia está aí, presente ou subjacente nestas escolhas. O olhar do receptor é fundamental nesta interação.
“No que se refere à criação cinematográfica, as metáforas podem estar inscritas em cada plano por meio de símbolos de conotações distintas; sendo assim é necessário entender primeiro seu significado individual para depois compreender o sentido completo do filme. A metáfora, ao conotar algo diferente daquilo que ela denota, pertence ao tipo de mecanismos que se usa na literatura e no cinema para levar ao leitor e ao espectador um nível de significação não primária. Um elemento pode ser metafórico ou não dependendo do quadro no qual se insere, e, no caso do cinema, no plano. ”
           Estefania Cano Reyes, La metáfora en el cine.
https://cafecin.wordpress.com/2012/12/01/la-metafora-en-el-cine-por-estefania-cano-reyes/

3.       Sobre o significado dos nomes próprios e seus respectivos personagens. Macabéa, um feminino de Macabeus, do Antigo Testamento bíblico, que conta a história e libertação dos judeus depois da conquista de Alexandre, cognominado o Grande; os judeus, numa sequência de lutas e conquistas, tiveram a liberdade religiosa cerceada, assim como a heroína do romance e do filme, uma sobrevivente num mundo opressor que limita sua liberdade de se entender como gente, até mesmo de existir. Seria Macabéa a metáfora do momento?  Olímpico: um nordestino de físico nada atlético, esperto, o índio guerreiro, sua grossura, seu machismo revoltante (e que não revolta Macabéa, sempre passiva); Glória, “galega de farmácia”, qual a sua glória? Observar que ela faz um contraponto de tipo de mulher, sempre bem pintada e arrumada, com a desajeitada Macabéa. Mesmo que ela também acabe sempre perdendo em sua vida amorosa.

4.       Outros personagens: a cartomante: ex-prostituta que sabe tudo da vida, do passado e do futuro, antecipando o final da ingênua Macabéa que sorri esperançosa (não posso deixar de fazer uma associação evidente com o conto A cartomante de Machado de Assis); as colegas de quarto, vidas da periferia, quais os sonhos e o futuro destas moças? E os homens? Detêm o poder?  Detêm o poder, mas esse não pertence aos pobres, aos oprimidos, todos perdedores. Basta lembrar o sonho de Olímpico em ser deputado e o seu discurso, aplaudido somente por uma moradora de rua.

5.       Aliás, analisar Macabéa, nossa estrela, é fundamental. A personagem em si, a atriz que a interpreta, o papel social como mulher e empregada sem qualificação, na iminência de perder o emprego, sem ninguém na vida, sem família, sem afetos. O fato de Macabéa “catar milho” na máquina de escrever é uma metáfora forte, não só de sua incapacidade neste fazer, mas de sua incapacidade de linguagem, de se comunicar, de querer “ser gente”, sem consciência de si mesma. O fato de ela gostar de se distrair aos domingos indo ao metrô, nos subterrâneos da cidade grande, funcionaria como outra metáfora? Sua invisibilidade se manifestaria neste gosto esdrúxulo?

6.       “Rádio relógio”: Uma ironia, a nos provocar o riso e a reflexão. Ironia que já está no livro de Clarice, na audição de uma “cultura inútil”, sem sentido, a não ser curiosidades e clichês, típicos do saber e do senso comum.  Será este o propósito para o povo brasileiro além do elementar? É disto que ele precisa? Faz sentido a mediocridade, também a periferia do conhecimento?
       “É na sua produção cultural que um povo se reconhece e, se     reconhecendo, pode se transformar”.
             Jorge Furtado

7.       Seguimos o filme, não com a palavra como no livro, mas com o “olho da câmera”. Então, o que faz aquele gato em cena? O gato no escritório, zanzando, o close nele comendo o rato morto, logo após Glória trair Macabéa para tirar seu namorado. Funciona como metáfora icônica da traição, da esperteza em que o maior come o menor, fácil de decodificar neste caso. Gosto muito de pensar nestes detalhes, nada surge de graça. Partes do todo, da dialética dos significados.  Até a salsicha saindo do pão em mais de uma cena, a parede com recortes de revistas perto da cama de Macabéa...  Pensar também no destaque ao canto do bem-te-vi, quando Olímpico posa para a foto e Macabéa observa. Mais do que efeitos de montagem, observamos “bem-te-vis” nos (des)encontros deste casal nada bem visto...

8.       A música, acompanhante incidental da maioria das cenas, torna-se reveladora quando ópera e quando valsa, funcionando como clichês para os sentimentos de Macabéa, facilitando esse entendimento.  O cinema ainda é uma arte de diversão, de recepção para o “público em geral”.

No fim, vence quem: a ideologia do capitalismo, de seus valores, a “hora da estrela” para Macabéa é a de sua morte como única possibilidade, após o discurso encorajador da cartomante para um futuro de final feliz. No livro isso é cruel, morre a palavra; no filme é uma alegoria... Poético nesse voo final daquela Macabéa que queria apenas ser gente e feliz. Simbólico, como deve ser a poesia em todas as artes.

“Somos todos viajantes de uma jornada cósmica - poeira de estrelas, girando e dançando nos torvelinhos e redemoinhos do infinito. A vida é eterna. Mas suas expressões são efêmeras, momentâneas, transitórias”  . Deepak Chopra 
 
Observação: as citações entre aspas servem não só como referência, mas, sobretudo, como instigadoras de contrapontos e reflexões.

domingo, 1 de maio de 2016

Um olhar estrangeiro sobre o Sertão

Amigos todos, escrevi o prefácio para o livro de Veronique Bulteau, "Para uma antropologia do Sertão - Ecologia e Sociologia do cotidiano" após ter feito a tradução.  No prefácio, procurei pontuar os aspectos mais significativos deste trabalho em Antropologia Social, feito na Sorbonne, Paris, com orientação de M. Michel Maffesoli. Tenho certeza que, após conhecerem este trabalho, nunca mais verão o Sertão e o Sertanejo da mesma forma. O livro também estará disponível em e-book, bancado pela UPE e em edição impressa, pessoal.
(Quem quiser o livro, entre em contato comigo).






À guisa de prefácio

UM OLHAR ESTRANGEIRO SOBRE O SERTÃO


Geralmente é sob esta perspectiva que a tese de Veronique Bulteau sobre o sertão brasileiro desperta atenção e curiosidade. Francesa, estudou em Paris, na Sorbonne, e escreveu duas teses sobre o Sertão, uma equivalente ao nosso Mestrado e a outra ao Doutorado. Acrescente-se também o fato de ter sido o renomado sociólogo Michel Maffesoli seu orientador, na área de Antropologia Social, para esta monografia.

Mas é lendo seu trabalho de pesquisadora e estudiosa que mais surpresas acontecem no que tem de desvelador seu olhar sobre o sertão brasileiro e o sertanejo, aquilo que ela subintitula de “Ecologia e Sociologia do Cotidiano”. Sobretudo, para mim, que “traduzi” este trabalho, mesmo sem ser da área e muito menos uma tradutora profissional, sempre acreditei que o trabalho de Veronique Bulteau não poderia ficar desconhecido.

Há uma expressão francesa bastante comum: “joie de vivre”, literalmente “alegria de viver”, e ao caracterizar e demonstrar este comportamento social no sertanejo desta região, já somos tomados de um certo assombro. O sertanejo, sujeito às secas cíclicas de seu meio ambiente, é visto sob um prisma diferente. Como nesta afirmação: “Neste sentido, trata-se de um mistério, uma vez que a vida do sertanejo parece infernal para o outro – o não sertanejo. Sua arte de viver é algo que permanece apenas entre seu povo. Uma alegria de viver que recobre uma vitalidade, um sentido de festa e de hedonismo”.


Bem fundamentada teoricamente e tendo observado na prática o cotidiano sertanejo na longínqua Caititu, localidade do município de Petrolina, em Pernambuco, Veronique Bulteau justifica seu ponto de vista, indo de encontro a muitos estereótipos. Certo que muito da visão sombria sobre o Nordeste e seu sertão vem mudando, mas este trabalho foi escrito em 1992, portanto há mais de duas décadas. E, mesmo que neste século XXI, as condições sejam outras, na dinâmica histórica e social, seu trabalho ainda é inovador e sua divulgação é de singular importância.

Outro questionamento feito pela autora é fundamental e, pessoalmente, não entendo como até hoje – pelo que conheço – ninguém fez esta pergunta “Qual é o sentimento do sertanejo?” Ninguém se colocou no olhar do outro, do próprio sertanejo. “Em conversas ou contatos, ressalta-se que a vida é difícil, “a vida aqui é uma luta”, mas “boa”. O que a torna assim é o sentimento de pertencimento a uma comunidade, e a existência de laços de reciprocidade quase indestrutíveis.”

É por isso que a sociedade sertaneja não pode ser apreendida senão a partir do todo, de uma visão global, holística. Se existe o registro seca/chuva em seu meio ambiente, em seu cotidiano, a principal preocupação do sertanejo é a seca ou água ou, como ela mesmo diz que, “por uma aliança de contrários, dá no mesmo”. É nessa alternância da festa de viver e da dor de viver que Veronique Bulteau classifica o Sertão como “naturalmente” dionisíaco.

Escrevendo para um leitor francês, um trabalho acadêmico, no entanto sua leitura se torna atraente para nós mesmos, o leitor brasileiro que, de repente, se vê no meio de conjeturas e hipóteses para as quais não havia atinado ou não conhecia.

Outros aspectos extremamente interessantes, bem estudados e exemplificados, são citados com base numa bibliografia de fôlego no conjunto deste trabalho. Ressalte-se o destaque para a marcante presença indígena na civilização sertaneja, seu nomadismo inerente, além de traços histórico-sociais como o messianismo, o cangaço, a tradição oral, o corpo “como matéria que veicula a energia vital e que faz de cada um ator da vida cotidiana.

Se existe uma antropologia aplicada ao Sertão, Veronique Bulteau acrescenta sua contribuição para uma antropologia do Sertão nesse estudo, onde realça que “a elaboração de uma sociologia compreensiva da cultura sertaneja nos permitiu percorrer diversos caminhos que se interceptam em um cruzamento nodal, o de uma sociologia do imaginário.”

Então, é isso – e muito mais. Apresento o trabalho de minha amiga, uma amizade que começou há muitos anos e que se fortaleceu na troca de mensagens, de interesses comuns, de livros, de presentes e de presença... E não foi diferente nestes últimos meses de escritas, reescritas, correções... Agradeço a ela – que me agradece – e também a Odomaria Bandeira que, gentilmente leu minha tradução, me orientou e corrigiu alguns termos próprios da área de Antropologia em português.
Nenhum trabalho está completo em definitivo, até porque Veronique Bulteau tem outra tese sobre o Sertão... mas, neste aqui, sem dúvidas, o leitor terá indicadores fundamentais para uma compreensão mais completa desse espaço, o Sertão, e do ser que o habita, o sertanejo.

Elisabet Gonçalves Moreira *
Petrolina, março de 2016


* Elisabet Gonçalves Moreira é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada. Mora em Petrolina desde 1976, onde se aposentou como professora pela UPE e pelo IF Sertão.