Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

domingo, 14 de abril de 2024

SIMBOLISMO DE CONCHAS E PÉROLAS

 

Com a leitura esclarecedora do Capítulo IV, Observações sobre o simbolismo das conchas, do livro Imagens e Símbolos, de Mircea Eliade (São Paulo: Martins Fontes, 1996), também faço observações, um apanhado geral em que analiso, destaco e amplio exemplos.

Mircea Eliade inicia o capítulo com a afirmação: “As ostras, os mariscos, o caracol, a pérola são solidários tanto das cosmologias aquáticas como do simbolismo sexual.” (p. 123) Desse parágrafo inicial realço a seguinte observação “A crença nas virtudes mágicas das ostras e das conchas é encontrada no mundo inteiro, da pré-história aos tempos modernos.”

Assim, introduzo esta apresentação fazendo a leitura visual de três imagens. Poderia escolher muitas outras, mas essas são bem significativas para ilustrar, justificar e dialogar com o texto de Eliade.

Fig. 1. Nascimento de Vênus. Sandro Boticelli (1445-1510). Têmpera sobre tela, mede 172,5 cm de altura por 278,5 cm de largura. 1485–1486. A obra está exposta na Galleria degli Uffizi, em Firenzi (Florença), na Itália. 

Essa primeira imagem, o “Nascimento de Vênus” de Boticelli, uma das pinturas mais belas do renascimento italiano, corrobora o “simbolismo ginecológico e embriológico da pérola, formada na ostra”, afirmação ainda do primeiro parágrafo. Sem entrar em muitos detalhes, já que a pintura é pródiga em símbolos e em sua própria essência artística, temos, no centro da imagem, a figura de uma jovem mulher nua, “nascendo” de uma concha dentro das águas, analogia com a pérola, que “nasce” da ostra. Ela é a representação da deusa Vênus, ou Afrodite para os gregos, Deusa do amor, da beleza e da fertilidade, nascida das ondas do mar na ilha de Chipre, segundo a mitologia.  A deusa é impelida para a vida por Zéfiro (abraçado a uma ninfa) que representa o vento oeste na mitologia romana, alegoria da continuidade do mito. À direita, está a Deusa Primavera, à espera para cobri-la com um manto florido.

No centro da tela, Vênus faz um gesto pudico para ocultar a sua nudez, mas a luz ressalta sua beleza clássica e enfatiza suas curvas, assim como o cabelo que se enrola em seu corpo e encobre seu sexo. Para a época, a beleza seria um sinal visível de Deus, o que permitiria ao pintor, sem incorrer em blasfêmia, utilizar a mesma expressão facial para Vênus e para a Virgem Maria. Segundo divulgam, Boticelli era um homem "profundamente" religioso.  O simbolismo é mais forte do que uma possível censura do artista em sua concepção criativa.

Esse simbolismo mostrou-se também em diversidade, fosse em ritos agrários, nupciais ou fúnebres. Conchas e pérolas asseguram desde boas colheitas, um casamento fecundo até uma morte preparada para o renascimento, A segunda imagem “O Batismo de Cristo”, pintado por Leonardo Da Vinci, ainda aluno de Verrochio, simboliza a purificação do corpo pelas águas, o arquétipo da vida. Sem detalhar essas pinturas, o foco é evidenciar o imaginário e mostrar o simbolismo das conchas como um índice motivador para a Arte, para a religião e para a vida. No caso, a concha de água que João Batista derrama sobre o corpo nu do Cristo atrai o Espírito Santo, simbolizada na figura de uma pomba, ou seja, o poder de Deus sobre o batismo humano e sua conexão com o divino.


       Fig. 2. Batismo de Cristo (1470) Leonardo Da Vinci e Verrochio óleo sobre tela) 
Entretanto, o que mais me chamou a atenção na leitura desse capítulo IV foi um certo tom desgostoso, assim me pareceu, do pesquisador Mircea Eliade, ao destacar “a degradação ininterrupta do simbolismo” (p. 124). A Figura 3, a seguir, da apresentadora televisa Ana Maria Braga, com essa espécie de fantasia toda trabalhada em conchas, búzios e correntes de pérolas, miçangas falsas, se destaca compondo um efeito decorativo no conjunto. Mas, acredito, interpretações são polissêmicas e essa famosa mulher pode ter usado como proteção para sua saúde, resgatando seu poder mágico primordial, já que ela teve câncer, e quer se mostrar sempre viva, bela e atuante...

                                                    Fig. 3. Apresentadora de TV Ana Maria Braga (imagem pública retirada do Facebook) 2024.

Mircea Eliade observa: “A pérola, antigamente emblema da força geradora ou símbolo de uma realidade transcendental, conservou no Ocidente apenas o valor de “pedra preciosa” (p. 124). Não concordo muito com essa afirmação, pois as conchas e as pérolas ainda carregam variantes de seu simbolismo e de sua atração mística.

Lembro que, em sentido figurado, a pérola virou um clichê e alargou seu significado. A partir do discurso bíblico, no Evangelho de Mateus, encontramos duas referências que, no imaginário cristão, ficam poderosas de sentido. Mateus 13:44-46, uma parábola de Jesus que associa o reino dos céus a uma pérola e em Mateus 7:6 "Não deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; para que não as pisem e, voltando-se, vos despedacem.” Na hermenêutica bíblica, a pérola representa a sabedoria divina, a pureza e a perfeição. Ela é mencionada como um símbolo do Reino dos Céus e da salvação.

Também encontramos variantes do simbolismo da pérola (e conchas) em diferentes credos, preservando seu significado primordial “na crença de suas virtudes mágicas” como o espiritismo, o tarô, a numerologia, o horóscopo, os signos, o candomblé, a umbanda e a espiritualidade em geral.

Fig. 4. Escultura de Iemanjá em Sepetiba, cidade do estado do Rio de Janeiro. Todo ano, no dia 2 de fevereiro, é realizada no local uma grande festa em honra da divindade de matriz africana, considerada a protetora da pesca e mãe de todos os orixás.

Em nossa cultura miscigenada, Iemanjá, divindade africana, a grande mãe negra, aparece na maioria de suas imagens como branca, mas não deixa de representar seu poder das águas, aquela que nos protege e prepara para a vida. Para os iorubás, ela é a divindade dos rios. Segundo pesquisa, essa transposição para os mares é resultado do movimento de diáspora quando, já nos chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os "seus filhos".  Mesmo que tenha outros nomes e a devoção apareça em vários lugares, ela faz parte do imaginário brasileiro, não resta dúvidas.

 Na linguagem contemporânea, a pérola é usada tanto para o elogio, como para a ironia. Exemplos: fulano se expressou com uma “pérola” de criatividade ou “as pérolas” das redações dos vestibulares, mostrando absurdos interpretativos, apontam para essa associação. Em nosso mundo social, o uso de joias incrustadas em pérolas, carregam uma conotação de “classe”, de bom gosto, mais do que exibicionismo de riqueza.

Em seu livro, Mircea Eliade cita exemplos nas mais variadas culturas de como esse simbolismo também foi associado ao mágico religioso, inclusive em relação conjunta aos ciclos da lua. E destaca o simbolismo da fecundidade. Mais do que a origem aquática e o simbolismo lunar das ostras e dos mariscos, sua semelhança com a vulva contribuiu muito provavelmente para propagar a crença nas suas virtudes mágicas” (p.127)

  

 

                                                                    Fig. 5. À esquerda, conchas ou búzios, vendidos para confecção de ornamentos em pulseiras, colares, também usados pelos guias nas religiões de matriz africana, inclusive no jogo adivinhatório. À direita, uma ostra com uma pérola nascida de seu interior, resultado de uma reação natural do molusco contra invasores externos, como certos parasitas que procuram reproduzir-se em seu interior. Daí a expressão “ostra feliz não faz pérola” e seu sentido de ensinamento para a vida.

Na página 127, em um dos múltiplos exemplos, Mircea Eliade destaca a identificação da concha com o órgão genital feminino e associa que também mariscos e ostras participam dos (...) “poderes mágicos da matriz. Nelas estão presentes e exercem as forças criadoras que jorram, como uma fonte inesgotável de todo emblema do princípio feminino.” Portanto, continua a observação: “usar sobre a pele, como amuleto ou como ornamento, (...) impregna a mulher de uma energia favorável à feminilidade, ao mesmo tempo em que a preserva das forças nocivas e do mau agouro.” Não teria sido essa a motivação involuntária da fantasia usada por Ana Maria Braga?

Em outro destaque, “Funções rituais das conchas”, ele observa “A partir disso, explica-se facilmente pelo mesmo simbolismo a presença de mariscos, ostras e pérolas em inúmeros ritos religiosos, nas cerimônias agrárias e iniciáticas. (...) A força representada por um símbolo da fertilidade manifesta-se em todos os níveis cósmicos.” (p. 131) “As cerimônias de iniciação compreendem uma morte e uma ressurreição simbólicas; a concha pode significar o ato do renascimento espiritual (ressurreição) com tanta eficácia que ela assegura e facilita o nascimento carnal.” (p. 132)

Mircea Eliade também se refere “A virtude sagrada das conchas se transmite tanto à sua imagem como aos motivos decorativos que têm a espiral como elemento essencial” (p. 141). E nos dirigimos a outras relações, tendo a espiral uma referência orgânica da própria vida em seu perpétuo movimento de evolução. 


Fig. 6. Náutilo, concha marinha onde a espiral está perfeitamente visível e serve como exemplo tanto para a evolução espiritual como uma demonstração perfeita do algoritmo para a sequência de Fibonacci e a proporção áurea.

Isso foi um adendo ao capítulo de Mircea Eliade, pois ele apenas cita a “polivalência simbólica da espiral, suas relações com a Lua, o relâmpago, as águas, a fecundidade, o nascimento, a vida no além.” (p. 142)

Na parte final de suas observações, Eliade vai destacar novamente a pérola, na magia e na medicina, o mito simbólico que se perpetua, mesmo em suas modificações temporais e em seu uso. E reitera: “A história da pérola é mais um testemunho do fenômeno de degradação de um sentido metafísico inicial. O que num dado momento foi símbolo cosmológico, objeto rico em forças sagradas benéficas, torna-se, com o tempo, um elemento de ornamentação, do qual se apreciam as qualidades estéticas e o valor econômico.” (p. 143)

Destaca, no entanto, que o papel da pérola na medicina em tantas civilizações diferentes (após ter dado muitos exemplos em citações e notas de rodapé) “apenas sucedeu a importância que ela teve anteriormente na religião e na magia. Por ter sido emblema da força aquática e geradora, a pérola tornou-se – numa época posterior – tônico geral, afrodisíaco e ao mesmo tempo remédio contra a loucura e a melancolia, duas doenças de influência lunar, logo sensíveis à ação de todo emblema da Mulher, da Água, do Erotismo.” (p. 144) Lembro de uma passagem de um dos livros de Jorge Amado (mas não me recordo de qual!) em que o personagem pensa e antevê sua amante nua, sensualíssima, usando apenas um colar de pérolas...

Há um conto de Lygia Fagundes Teles, com o nome “As Pérolas”, no livro “Antes do Baile Verde” em que o colar de pérolas da esposa do personagem tem seu simbolismo agregado às memórias, aos ciúmes que a recordação lhe provoca. A associação é feita com o “sofrimento” da ostra, invadida por algo nocivo, que produz camadas de nácar para proteger seu corpo indefeso e o resultado é a preciosa pérola. “Uma ostra que não foi ferida, de algum modo, não produz pérolas, pois a pérola é uma ferida cicatrizada...” uma lição de vida trabalhada por Rubens Alves em um de seus livros mais conhecidos. Evidentemente que muitas outras referências podem ser encontradas, seja na literatura, na filosofia, na pintura, evidenciando seu caráter metafórico ou exemplar.

Elisabet Gonçalves Moreira - Petrolina, 4 de abril de 2024

 

ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola. São Paulo: Planeta, 2021.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. Ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

https://guiadoestudante.abril.com.br/dica-cultural/o-nascimento-de-venus-analise-da-obra-de-sandro-botticelli

https://www.bbc.com/portuguese/articles/Iemanjá, a divindade africana que ganhou feição branca no Brasil