Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Série mexicana II

O veado alvejado e um ritual milenar

                                                                                     Elisabet Gonçalves Moreira



Figura 1: “O Veado ferido” ou “La Venadita” de 1946, de Frida Khalo (Óleo sobre metal, 22,4 x 30 cm)


    Figura 2:  Print da “Dança do Veado” - Balé Folclórico do México de Amália Hernandez



 Figura 3: Apresentação da “Dança do Veado”, em San Carlos, Sonora, México.


Qual a relação que se estabelece entre estas três figuras? Muitas... e vou acrescentar mais uma.




Figura 4: Estátua de veado numa praça da Cidade do México, 2016 (foto de minha autoria)


Para a continuação desta série, fiquei pensando... procuras, desafios, memórias, um caos que emerge em torvelinho. E sempre a correlação memória e o instante mágico das conexões entre passado, presente e conjeturas.

O título é meu tema; as ilustrações corroboram leituras, entre ditos e signos...

Que animal simbólico é este que perpassa todas as figuras?  O veado é um animal elegante, cheio de delicadeza e graça, símbolo de força, virilidade, pureza e velocidade.  
 Este belo ser foi um dos animais mais transcendentais para a cultura dos índios maias e iaquis, desde tempos remotos. A Dança do Veado, verdadeiro ritual, também chamada Mazoyiwua, é uma representação de sua atividade como caçadores durante gerações. O simbolismo deste ritual é muito significativo. O vínculo do homem em seu entorno geográfico e a veneração que faz da natureza como fonte de vida e sustento, a Mãe Terra.

Um reporte

Há alguns anos, nos tempos do vídeo cassete, minha filha Adriana me presenteou com o Balé Folclórico do México de Amalia Hernández. Fiquei maravilhada com a performance e coreografia da dança do veado, sua caçada e sua morte, nessa alegoria ancestral, pré-colombiana.
Consegui assistir a uma apresentação deste balé em 2016, numa manhã de domingo de outubro, no Museu Nacional de Belas Artes na Cidade do México. E me senti completa em poder ver, ao vivo, “La danza del venado”.
Com as possibilidades desta mídia e de seus acessos, coloco aqui o link, para se ter uma ideia da magia do espetáculo.





Notas sobre “A dança do veado”

Balés, concursos..., mas ainda há apresentações ritualísticas da dança do veado em ocasiões especiais. Encontrei sites que detalham a dança e sua simbologia com poucas variantes. Tudo ali tem um significado. Adereços, sons, cânticos, personagens, instrumentos.
Ademais, soube que há até concursos no interior do México para se escolher a melhor performance do bailado na caça e na morte do veado.


Na dança participam como personagens o Veado e os Pascolas (os caçadores). Há algumas variantes do figurino para a apresentação, mas a cabeça dissecada de um veado sobre a cabeça do dançarino e um par de maracas agitadas constantemente durante o ritual não deixam dúvidas da essência do protagonista. Os Pascolas são os caçadores à espreita da caça, armados com arcos e flechas. Podem utilizar máscaras pintadas de preto, de onde saem barbas e mechas. Todos portam guizos nas pernas e dançam descalços.
Outra característica que reflete o caráter milenar da Dança do Veado são os instrumentos usados. É o caso do tambor de barro ou madeira, que emite sons muito peculiares, como a água e até o bater do coração do veado. A música é complementada com cânticos em dialeto iaqui pelos músicos que acompanham a apresentação.
Os diferentes momentos da dança fazem alusão à luta do veado para defender sua vida das flechas do caçador. O espírito do animal é encarnado pelo homem que baila sem cessar reproduzindo o andar do veado em sua fuga desesperada, seus ferimentos, sua morte. É impressionante a atmosfera criada, de veracidade e beleza
No final coloco alguns destes sites/referências que melhor desenvolvem a simbologia da Dança do Veado.

Mais uma vez Frida Khalo

Relações e coincidências... quase num repente abri um livro que adquiri de um sebo virtual de Buenos Aires e do qual reproduzo a capa onde resplandece o nome de Frida Khalo e sua figura como um ícone de nosso tempo.



E, no folhear, lendo aqui e ali, vejo, à página 357 e 358, a dedicatória escrita em versos, que Frida Khalo fez num guardanapo para ofertar seu quadro, “O veado ferido”, reproduzido na Figura 1.
Frida Khalo havia saído de mais uma operação de sua coluna vertebral em Nova Iorque, ano de 1946. De volta ao México, continuou sofrendo dores não só físicas. E, mais uma vez, representou essa dor, que também nos comove.
Atravessado por flechas e sangrando, o veado, com a cabeça jovem de Frida, olha para o espectador dentro de um bosque, do qual não consegue sair, mesmo que o céu representasse uma esperança de escape. À esquerda do quadro, na parte inferior, aparece escrita a palavra “Carma”, assinalando seu destino. Um destino que, em muitos autorretratos de Frida, ela é incapaz de mudar.
Quase invariante em sua obra, o quadro tem muito da pintura votiva, tradicional no ex-voto mexicano. Em 3 de março de 1946 Frida ofereceu esta pintura para seus amigos Lina e Arcady Boyter como presente de casamento. E, mais uma vez, fiel às tradições mexicanas, fez um corrido.

CORRIDO PARA A Y L
                      Mayo de 1946
Solito andaba el Venado
Rete triste y muy herido
Hasta que em Arcady y Lina
Encontro calor y nido

Cuando el Venado regresse
Flerte, alegre y aliviado
Las heridas que ahora lleva
Todas se le habrán borrado

Gracias niños de mi vida,
Gracias por tanto Consuelo
en el bosque del Venado
ya se está aclarando el cielo

           Coyoacán, viernes  3 de mayo de 1946

Ahí les dejo mi retrato,
Pa´que me tengan presente,
Todos los días y las noches,
Que de ustedes yo me ausente.

La tristeza se retrata
En todita mi pintura,
Pero así es mi condición,
Ya no tengo compostura.

Sin embargo, la alegría
La llevo en mi corazón,
Sabendo que Arcady y Lina
Me quieren tal como soy.

Acepten este cuadrito
Pintado con mi ternura,
A cambio de su cariño
Y de su inmensa dulzura.
                             
                     Frida

O simbolismo do veado no México atual

A foto da Figura 4 ilustra a veneração a este animal mítico que abrange tantos significados. Se Frida Khalo o pintou ferido, como ela, há também uma canção bastante popular, de domínio público. Uma versão bem conhecida e humorada deste tema é a que realizou a cantora mexicana Lila Downs.


Diz a letra:

El venadito

Sou un pobre venadito
Que habito en la cerranía
Como no soy tan mancito
No bajo al agua de día
De noche poco a poquito
Y a tus brazos vida mia
Ya tengo listo el nopal
Donde?de cortar la tuna
Ya tengo listo el nopal
Donde?de cortar la tuna
Como soy hombre formal
No me gusta tener una
Me gusta tener de a dos
Por si se me?noja alguna
Quisiera ser perla fina
De tus lucidos aretes
Quisiera ser perla fina
De tus lucidos aretes
Pa?besarte la orejita
Y morderte los cachetes
Quién te manda ser bonita
Si esto a mi me compromete

Ya con esta me despido
Pero pronto doy la vuelta
Ya con esta me despido
Pero pronto doy la vuelta
No?más que me libre dios
De una niña mosca muerta
De esas que ay! Mamá por Dios!
Pero salen a la puerta
No soy coplero y me voy cantando
Ahí dejo mi chilena a la morena
Que estoy amando



Referências:


quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Série Mexicana (I)


Em torno da pintura de Frida Khalo


                                                     Elisabet Gonçalves Moreira

Não é por causa de certo modismo no culto a Frida Khalo que me reporto nesse momento. Mais por uma experiência que tive, uma iluminação...

Estive na Cidade do México no final de outubro de 2016. Meu olhar se alargou, olhos de constatação da pujança cultural e histórica daquele país, encantamento que já me acompanhava muito antes disso. Daí a ideia desta série... aos poucos traduzo, revivo e amplio experiências e motivações.

A vida e a obra de Frida Khalo sempre me instigaram. O que na verdade podemos dela conhecer? Muito se tem revelado sobre esta mulher admirável, sua vida e seu sofrimento, mas a mim me chegou um entendimento de uma parte de sua pintura através de uma epifania, um momento quase mágico, desses poucos que temos na vida e que marcam o caminho de significados.

Na visita à cidade do México, entre tantos pontos turísticos, fiz questão de ir à Basílica de Guadalupe, um complexo grandioso, um lugar sagrado que me lembrou Aparecida do Norte em São Paulo e Juazeiro do Ceará. Excursões de romeiros, gente pagando promessa e o inevitável mercado da fé dos “recuerdos”, para lembranças e lembrancinhas, tantas velas, além das fotos, seja em selfies, seja na montagem de profissionais.

Fiquei visivelmente emocionada com os pagadores de promessa, gente de joelhos pelo pátio, até chegar à Basílica, onde fica, muito bem guardado, o manto com a pintura de Nossa Senhora, cuja tradição se iniciou em 1531.

Nossa Senhora de Guadalupe apareceu pela primeira vez ao índio asteca Juan Diego. Na língua asteca, o nome Guadalupe significa, pelo menos assim encontrei, Perfeitíssima Virgem que esmaga a deusa de pedra. Os Astecas adoravam a deusa Quetzalcoltl, que, segundo a visão do catolicismo tradicional, foi uma deusa monstruosa, a quem eram oferecidas vidas humanas em sacrifício. Sabemos que não é bem assim, mas a propaganda oficial e o imaginário dela decorrente acabaram por solidificar esta visão. E o que dizer do genocídio cometido em nome de Deus? Esse desrespeito às religiões dos povos conquistados pelos impérios modernos é terrivelmente destruidor.

Tanto assim que, esmagados os astecas, os índios restantes se converteram ao catolicismo imposto pelos conquistadores espanhóis. E o episódio do surgimento da virgem católica para o índio é extremamente significativo. E, hoje, Nossa Senhora de Guadalupe não é só a padroeira do México como também da América Latina.

 
Nossa Senhora de Guadalupe, foto do manto original, exposto na Basílica de Guadalupe, México. 


O simbolismo desta pintura (milagre ou não) é esclarecedor, sobretudo porque sincretiza elementos do paganismo asteca como do poderio de uma fé que ali se impunha na conquista. Isso também me faz lembrar uma palestra a que assisti, há muitos anos, do padre Quevedo, especialista em desmistificar fraudes místicas e religiosas quando defendeu a originalidade desta pintura no poncho do índio Juan Diego, pois, segundo a tradição, se mantém inexplicável e inalterada.

Mas a que vem esta introdução? Visitada a basílica, fui visitar o restante e, principalmente porque queria ver a antiga Igreja, estilo barroco, arquitetura monumental.

E lá se deu a iluminação. Não é o que você pode pensar... As paredes preenchidas com ex-votos. Nada parecido com as esculturas em madeira do Nordeste brasileiro, mas pequenos retábulos, pinturas representando milagres, promessas e agradecimentos a Nossa Senhora de Guadalupe. Arte popular, naif, seja lá que termo der, autêntica, de forte significado.

Meus olhos se arregalaram... E aí compreendi uma parte da pintura de Frida Khalo como experiência visual. E isso fez a diferença. Pouco a se falar, muito a se ver, a se comparar, até estudar mais.

Segundo pesquisa, a partir do fim do século XVIII e principalmente no século XIX, vários artistas mexicanos começaram a fazer pequenas pinturas em placas de zinco de 35 por 35 cm, embora as que vi, em sua maioria, eram retangulares, mais ou menos 30 por 20. Estas pinturas ou retábulos podem ser decodificadas em sua alegoria e origem sob vários aspectos. O fato é que elas se tornaram narrativas de agradecimento, consideradas arte popular, e hoje tomam todas as paredes internas da igreja, narrando não só expressões da fé como da própria vida cotidiana do povo mexicano.




E agora, a força inspiradora de alguns quadros de Frida (nascida em 1907 e falecida em 1954) em sua releitura de uma tradição que tanto lhe dizia respeito.


                                          Hospital Henry Ford (1932)


                                                Meu Nascimento (1932)


                                      O suicídio de Dorothy Hale (1938) 


E, no quadro abaixo, intencionalmente tomado de uma pintura votiva, há um acréscimo da confluência entre vida pessoal e arte. Evidentemente que, nos limites deste blog, não vou me especializar em mais análises, mas, agora, no conforto do meu escritório, pesquisando, encontrei material sobre o assunto, que ilumina ainda mais quem queira.
    
                                  

                         Retábulo (1940) (Óleo sobre metal 19,1 x 24,1 cm)


Sabemos que Frida sofreu um acidente terrível, num atropelamento de um bonde, que a marcou para o resto da vida. No retábulo acima, Frida nele se coloca, retomando uma pintura votiva de um acidente semelhante. Dá para se pôr no lugar dela, no instante em que seus olhos viram a pintura?

Sua marca, suas sobrancelhas unidas na menina acidentada, algumas etiquetas sobre o trem e o ônibus, ela escreve como subtítulo: “os esposos Guillermo Kahlo e Matilde Kahlo dão graças à Virgem das Dores por salvar sua filha Frida do acidente que ocorreu em 1925 na equina da rua Cuahutemozin e Calzada de Tlalpan."

Mais respeito e sintonia ainda tenho por Frida Khalo, tanto do ponto de vista pessoal, como de sua arte. Também Diogo Rivera, o esposo amado, bebeu nessa arte e na arte pré-colombiana. Pude ver isto na visita à casa azul onde moraram, hoje Museu Frida Khalo.

Este lado de sua pintura também nos ajuda a entender sua obra em conjunto, a melhor compreendê-la. E é isso que a torna tão especial. Acredito que, agora, estou mais preparada para apreciar e entender suas pinturas, sua vida, a herança de sua obra.

Mulher amante e amada, Frida soube mostrar uma pintura de mulher, a intimidade de uma arte que não é fácil de ser subjetivada, mas que dirige nosso olhar, inevitavelmente, para o significado da vida e da morte.

Petrolina, 3 de janeiro de 2017.