Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 20 de julho de 2023

MARCAS DE FERRAR - LEITURAS EM CONTINUIDADE

Henry Koster (1793-1820), inglês, autor do livro Viagens ao Nordeste do Brasil, ao qual já me referi, editado em português em dois volumes, traduzido por Câmara Cascudo (Rio-São Paulo-Fortaleza: ABC Editora, 2003) traz testemunhos e observações valiosas sobre a memória da vida brasileira do início do século XIX, principalmente sobre os escravos, seus amos e o cotidiano. Pois bem, um dos casos fala de um cavalo extenuado que o autor deixara a alguma distância de onde estava hospedado.

 “O guia, como instrução, desenhou a marca que o animal tinha na anca. Tenho admirado a habilidade desse povo em reconhecer a marca que uma vez viram, e a exatidão com que a traçam depois de ter somente lançado um rápido e casual olhar e, às vezes, com semanas passadas depois desse encontro.”  E continua, em nota de rodapé, “Durante o ano de 1813 estava em uma tarde com os amigos quando ouvi um cavalheiro perguntar aos do grupo se entre os ingleses presentes alguém deixara um cavalo em sua propriedade. Voltei-me e reconheci o coronel de Cunhaú. O cavalo me foi enviado um mês depois.” (KOSTER, p.223) 

 O próprio Câmara Cascudo complementa a nota: “É surpreendente a memória visual dos vaqueiros para reter e desenhar os ferros que marcam o gado alheio e o próprio. Nos segredos desse armorial bárbaro existem os Reis d´Armas de infalível sentença, indicando a ribeira, procedência e minúcia do animal pelo simples exame do ferro.” 

E eu complemento: Reis de armas constitui a categoria mais elevada de oficial de armas no âmbito da Heráldica. A eles eram confiados os registros de brasões, certificados de genealogias e títulos, entre outras incumbências. Sintomático foi Luís da Câmara Cascudo fazer esta ligação, que, aliás, Suassuna vai retomar. 

Numa matéria especial do jornal Diário do Povo, de Fortaleza, CE, com o título de “Sertão a Ferro e Fogo”, de Gil Dicelli e vários colaboradores (ver referência) transcrevo esta citação de Gilmar de Carvalho (1949-2021), reconhecido estudioso cearense de cultura popular: “O que mais me chama a atenção nas marcas de ferrar é o desenvolvimento de uma grafia peculiar, nascida do improviso dos ferreiros e dos fazendeiros, com os possíveis palpites dos vaqueiros. Grafia que incorpora influências, ao agrupar letras que se fundem, se enlaçam, se distanciam e se tencionam para significar mais. Estas marcas de ferrar formam um repertório básico de um design popular, que se trama com o artesanato, no improviso, e dobra a dureza do metal”. (Grifos meus) 






Ferros de marcar gado do século XX, da região do médio rio São Francisco, Pernambuco e Bahia, de minha coleção particular, fotografados por Sílvia Nonata

Gilmar destaca também que “a cultura de ferrar o gado é marcada por uma “violência inquestionável” contra o animal sabendo que “a marca de ferrar é irremovível.” Lembro, no entanto, que essa “violência” fazia parte de um mundo em que a ferra dos animais era tida como atividade de trabalho, do cotidiano e das regras de um costume herdado em que não se questionava o sofrimento do bicho. 

O que importava era o valor que se consubstanciava nessa posse, marcada e respeitada desde sempre. O poder de quem possuía também deveria ser ostentado. Daí a “força” subjetiva que os ferros representaram, um documento significativo de uma época. Assim como há homens que gostam de dominar seus semelhantes para demonstrar seu desejo de afirmação e poder, também os animais precisam ser dominados. Embora se reconheça que a intimidade com o animal, pego ou criado junto com o vaqueiro, também tenha seu valor afetivo. Nomes carinhosos marcavam essa convivência, uma personificação muitas vezes mitificada. Afinal era ele que acompanhava a vida do bicho até o seu fim, fosse pela venda ou por seu sacrifício, e essa escolha nem sempre dependia de sua vontade, mas de contingências várias ou da ordem de seu patrão. 

_(Continua...)_

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