Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

domingo, 14 de janeiro de 2024

“Na lasca do mundo, no oco do nada e do nunca” Virgílio Siqueira

 

Virgílio Siqueira - “Poeta; e mais do que isso não quero ser” - foi homenageado em uma mesa acadêmica na UPE, Universidade de Pernambuco, na 3ª. Semana de Letras de Petrolina, em novembro de 2023, com o título “Uma poética ao sol e à chuva”. Convidada que fui, entre outros, apresentei esse trabalho.

 

Assumidamente poeta, Virgílio Siqueira é cioso do seu fazer, dessa lida com as palavras.

Sem dúvidas há muito a se dizer sobre a poesia de Virgílio, natural de Ouricuri, onde nasceu em 1956, e que fez de Petrolina seu lugar mais assente. Um bom poeta pernambucano, como o caracterizou Lourival Batista, o Louro do Pajeú, não confundido com seu xará, o Virgílio italiano.

 

Sabemos que a poesia brasileira contemporânea, de modo geral, está num plano de diálogo e de busca que incluem o sujeito e a maneira como ele se coloca diante do mundo, já que “aos atentos se revela inteira”, como ele diz em um de seus poemas. Ao mesmo tempo está inserida na busca pela criação e pela experiência estética, aliada à tradição e à linguagem.

 

Seu volumoso “Vaga-lumear”, uma reunião de mais de 500 poemas, entre outras obras, editado por ele mesmo, mostra o cuidado com a seleção, a montagem e o visual gráfico. Aliás, ele se “explica” nas três dezenas de páginas introdutórias, se justifica, se afirma... Dilemas existenciais sim, mas, sobretudo, coerência e ética em seu mister de poesia.

 

Observem essa foto das páginas 56 e 57, como exemplo preliminar desse cuidado gráfico e assim destacar a visualidade no branco da página, um índice de leitura.

 

“Vertigens e vestígios” (página 56), simbolicamente metáforas do sertão em “chamas” e em “chuva”. “Vale-tudo” (página 57) um libelo de xingamentos contra o poeta “fedido”, crítico feroz desses que arrotam poesia como se poetas fossem... Não sei se esse “desabafo” foi contra alguém específico, mas ele “perde a paciência” ... entendemos!




 Já este “Pão-de-Açúcar” está óbvio no formato...



Aqui destaco dois versos porque neles reconhecemos o olhar do poeta “Leveza bruta de paisagem que aos atentos se revela inteira/sem que se revelem aos não eleitos, os seus claros encantos...” E assim possamos acompanhar seu discurso poético.

Entretanto, Virgílio faz um alerta nesses versos, que até me fizeram repensar a participação em mesa acadêmica, aceita porque validada pelo apreço ao poeta local.

 

“O livro de minha vida pode ser aberto

  Lido e relido; revolvido e reavaliado

  É dentro dele que eu estou guardado

  E, dentro dele, secretamente liberto

 

  Levo e lavro a minha vida assim

   E devo ter vivido, naturalmente

    Meus momentos controversos

 

Mas, se quiserem mesmo saber de mim

   Dissequem meus versos”


                                   (in “Vida, minha vida”, página 479, do livro Vaga-lumear)

 

Que anatomia teriam os versos onde o poeta pede para dissecá-los? Provocações metalinguísticas perpassam seus poemas. Fica o desafio... sua extensa produção, num poeta vivo e atuante, tão próximo de nós, precisa ser mais divulgada, trabalhada, fruída.

 

Então, em minha especialidade, vou tentar “dissecar” um poema de Virgílio, escolha difícil, mas que me tocou como poesia em primeiro plano. Nos vários sonetos em que se expõe, este me segurou e prendeu...

 

Sem fuga

 

Da faca não foge o fio

Nem foge o rio do leito

O amor não foge do peito

Nem a vergonha do brio

 

A tristeza do sombrio

A inveja do despeito

A frieza do suspeito

Nem a vileza do ardil

 

O eco não foge do grito

Nem a aflição do aflito

Nem o martírio da cruz

 

Crápula não foge do escuso

Nem equívoco de confuso

E nem o lume da luz

 

    (página 232 de Vaga-Lumear)

 

 

E tem música, como me avisou Virgílio, em tempo... https://www.youtube.com/watch?v=YCezR0Td8ZM


Um soneto bem construído, 2 quartetos e 2 tercetos, redondilha maior, ou seja, versos de 7 sílabas poéticas, rimas no esquema abba nos quartetos; ccd eed nos tercetos, com efeitos sonoros de aliterações que intensificam o ritmo poético da versificação.

 

A negação, explicitada e repetida pelo advérbio não, afirma o que nega, um paradoxo que estranha o discurso poético e nos prende a ele. Isso é poesia, isso é literatura. Se “Da faca não foge o fio”, significa, óbvio, que o fio faz parte da faca... Ah, e nesse caso, a gente lembra de João Cabral de Melo Neto, quando diz “uma faca só lâmina” ...

As aliterações reforçam o ritmo nesses sons de fe (faca foge fio). Essa não fuga que foi alardeada desde o título, também negativa, sem fuga.

Já no segundo verso aparece outra palavra que aumenta o significado da negação: nem, que se repete sete vezes no poema. Nesse caso, analisando morfologicamente, a palavra nem funciona no contexto como uma conjunção aditiva se observarmos sua correlação de sentido com o não explicitado. “Da faca não foge o fio/nem foge o rio do leito”.  E no último verso, temos explicitamente a conjunção aditiva e acompanhando nem “E nem o lume da luz”.

Interessante notar que o verbo fugir, na sua forma do presente do indicativo foge, está implícita logo após o nem. Reiterado nos três primeiros versos, ele se “oculta” nos outros, com exceção do nono e do 13º. Há certa ambiguidade morfológica e sintática que evidenciam procedimentos e desafios para o leitor atento.

Além disso, o poeta trabalha símbolos e imagens em uma sequência de constatações da nossa realidade, de causas e consequências que nos constituem humanamente, incluindo aí nossas vilezas. Sem a possibilidade de fuga, o poeta encerra com “Crápula não foge do escuso/Nem equívoco de confuso/e nem o lume da luz.”

Aqui aparecem duas palavras que chamam a atenção, pela pronúncia e pela colocação: “crápula” e “equívoco”. Nas relações feitas durante o poema há um tom filosófico de condenação nessas atitudes antiéticas, uma postura ideológica do caráter de um indivíduo do qual não há fuga. Mas o último verso se ilumina. Sempre haverá um discernimento luminoso. Talvez a esperança que não se apagará.

Virgílio Siqueira, finalizando: o sertão é seu lugar definido, mas o mundo o atrai em paisagens e pessoas... um Dom Quixote metafórico no que lhe toca de injustiça e de impotência social. Sem falar de sua sensualidade desmedida, cinco sentidos visíveis, musicalizados, intertextos e referências em labirintos e vozes que ressoam...

 

“Na lasca do mundo, no oco do nada e do nunca” (destacado na página 513) tomei como título desse trabalho. A escolha das palavras pelo poeta se faz na caracterização quase niilista do seu fazer e do seu lugar, mas que se combinam nessa referência de um espaço muito maior da sua poesia.

Para sempre, obrigada Virgílio.

Elisabet Gonçalves Moreira

Petrolina, novembro de 2023.

https://www.instagram.com/virgiliobsiqueira/