Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

terça-feira, 27 de junho de 2023

LIVRO DE REGISTRO DE "FERROS, MARCAS E SIGNAES" DA VILLA DE PETROLINA, DOS ANOS DE 1872 E 1873 (PARTE II)

         Na última postagem, eu terminava, perguntando:

Quantas narrativas estão inferidas nesses registros? Por que, justamente dois anos, apenas 1872 e 1873, houve necessidade de se fazer esse registro? 

Um esclarecimento e uma hipótese: foi em 1870, dois anos antes da abertura do Livro, em 18 de maio, a Lei 921 que oficializou como Vila de Petrolina a antiga povoação “Passagem de Juazeiro”, na margem esquerda do Rio São Francisco, pertencente a Santa Maria da Boa Vista. Portanto, vejo que a autonomia e a evolução que a localidade estava alcançando necessitava desse registro, uma forma de legitimar a posse das terras e a condição de proprietários das fazendas constantes de seu entorno através do registro dos ferros. Inclusive, há de se perguntar se todas estão ali contempladas. Ficará sempre uma dúvida.[1]

Na abertura do Livro de Registro oficial define-se seu propósito, que transcrevo, atualizando ortografia.


“Tem este livro de servir, na Secretaria da Câmara Municipal da Vila de Petrolina para nele serem registrados os ferros, marcas e sinais, com que os criadores deste Município, usam destinguir seus gados e animais, e vai todo por mim numerado e rubricado, com a rubrica de que uso, que é Chris.ano.R.C.Brao, lavrando no fim o termo de encerramento.

Vila de Petrolina na Rua da Câmara Municipal, 1º de Abril de 1872.

José Chrispiniano Rois Coelho Brandão

Pro Presidente da Câmara Municipal.”


O que me chama a atenção na Abertura do Livro são verbos e seus sujeitos nas expressões: “Tem este livro de servir” e “os criadores...usão destinguir seus gados e animaes.”

 “Servir para” representa o uso a que se destina ou em que se emprega uma cousa. O livro não só serve para o registro, neste local determinado, como o fato de que os criadores o usam ou o usarão para destinguir ou distinguir seus gados e animais. Essa variante “destinguir” era usada desde o século XV, nesse sentido:


“Distinguir, diferençar, discernir – marcar – dividir, separar – assignalar, realçar.” Transcrito do “Diccionario dos Synonymos  Poetico e de Epithetos da Lingua Portuguesa por J.I. Roquete e José da Fonseca (Librarias Aillaud e Bertrand, Paris-Lisboa, Paris, 30 de janeiro de 1848). Lidando com conceitos do século XIX, achei conveniente procurar neste antigo dicionário. Um dicionário que foi de meu pai, uma relíquia para mim e que cuido com zelo.


Encontrei não exatamente a grafia destinguir, mas distinguir, com um encadeamento de significados que certamente corroboram seu uso no texto e em sua especificidade. Sim, também marcar, dividir, assinalar. Observe na foto, no texto do registro 192: “Registro dos ferros e signaes em que D. Maria Joana de Oliveira moradora na Villa de Joaneiro, distingue seus gados e animaes da fazenda Massangano nesse Termo.” Dona Maria Joana não tem filhos ou herdeiros ali declarados, somente ela.


O registro e os ferros dos criadores, situados em suas fazendas no entorno da Villa de Petrolina, assinalam, marcam, dividem seus signos de posse e de garantias legais. Portanto, na “escrita” dessa visualidade e de sua decodificação, há substratos além do significante, uma cadeia de significados na dinâmica de um mundo rural, pré-capitalista em formação.


Vejamos mais alguns ferros em sua “anatomia” formal. Visualmente, nos ferros, a simetria é perfeita, obra do artesão consciente. E há desenhos estranhos, icônicos, simbólicos, artísticos, nas outras páginas e registros

Desenho de ferros copiados do Livro dos Ferros 

Como num espelho, as imagens se invertem e mudam de dono. Direita e Esquerda têm muita importância. Retas, curvas, essa geometria primitiva concretiza na percepção ótica o abstrato de sua representação. Cada um desses ferros e seu formato dá um singular trabalho de análise, além de um estudo para a história da região, outrora da nação Cariri, de diversas etnias das margens do grande Opará (rio mar), batizado de rio São Francisco. Histórias de gente descendo do litoral ou de bandeiras adentrando em conquistas, de lutas e de sobrevivência, de mestiçagem, da evolução dos antigos currais de gado e a vizinhança da caatinga em secas periódicas.

O indivíduo não precisava saber ler e escrever – como a maioria de vaqueiros – mas sabia decodificar uma marca de gado, seja do dono, da propriedade ou da ribeira, nos campos abertos de outrora. Esse registro na carne do boi, legitima, pois, uma marca indelével de poder e posse.

Uma “leitura” das relações intersígnicas dos ferros de marcar boi desnuda também o processo econômico, social e cultural, típico de nossa estrutura fundiária, onde a posse tem que ser assinalada e delimitada. A propósito, uma velhinha, ao ver o ferro inicial, fotografado neste trabalho, por sua simplicidade, comentou: “essa é a marca de quem tem pouco mais ô nada.” E o dono do ferro tinha somente poucas cabeças de gado...


(Continua... aguarde).



[1] Do livro Petrolina no tempo, no espaço, na vez, de Antonio de Santana Padilha (Recife, FIAM/Centro de Estudos de História Municipal, 1982). Outras informações retiradas deste livro: desde o século XVIII, entre 1750-1799, defronte da localidade Juazeiro, na Província da Bahia, já é conhecida a “Passagem de Juazeiro”, na margem esquerda do rio São Francisco. Em 1860 é terminada a primeira Igreja, pertencendo ainda a Santa Maria da Boa Vista. A Passagem torna-se povoado e recebe o nome de Petrolina. Em 7 de junho de 1862, a Lei 530, da Assembleia Provincial, torna Petrolina “Freguesia”. A Lei 921, de 18 de maio de 1870, oficializa a povoação como Vila e em 1874, a Lei 1544, de 5 de junho, traz a condição judicial de Comarca, que se instala em 1881. Em 25 de abril de 1893, constitui-se município autônomo, desligado oficialmente do município de Santa Maria da Boa Vista. Finalmente, a Lei 130 dá a Petrolina a categoria de Cidade, instalada em 21 de setembro de 1895.  (Páginas 21/23)

terça-feira, 13 de junho de 2023

LIVRO DE REGISTRO DE "FERROS, MARCAS E SIGNAES" DA VILLA DE PETROLINA, DOS ANOS DE 1872 E 1873

 

Por acaso, nos anos 80, encontrei uma raridade: o Livro de Registro de "ferros, marcas e signaes" da Villa de Petrolina, de 1872 e 1873, na Biblioteca Municipal da agora cidade de Petrolina, em Pernambuco. Hoje, infelizmente, este livro, um magnífico exemplar histórico, está em “lugar incerto e não sabido.” Alguém se apoderou dele e não o devolve, embora seja possível consultar o livro numa cópia tipo xerox, muito manchada, no Museu do Sertão da cidade. Também disponho de uma cópia que não dá a verdadeira dimensão de sua importância, do que revela e daquilo que deixa subentendido.

De todo modo, fica a questão: por que é necessário um registro? E que tipo de registro, no caso específico dos animais e propriedades? Carlo Ginzburg bem resume um projeto de “controle generalizado e sutil sobre a sociedade.” (GINZBURG, 1989, p. 173) Numa sociedade de gado solto, ainda em expansão, o registro dos ferros, devidamente identificados, foi necessário e útil. Era uma garantia legal, como há ainda hoje, mais restrita e sob outras circunstâncias e orientações, a depender do município ou do estado.


Do livro do Registro dos ferros, marcas e signaes, retirei um exemplo. O de número 31, inserido nas páginas 15/16. Tentei manter a visualização da página, fazendo uma montagem, mas a qualidade não ficou boa (cópia de cópia!). Entretanto dá para se observar o manuscrito e os desenhos dos ferros. Para maior legibilidade, fiz, a seguir, uma transcrição do texto e cópia destes ferros.


Imagem em preto e branco

Descrição gerada automaticamente
“Nº 31- Registro de ferro e signal de gados e animaes de Antonio Rodrigues de Bomfim e seus   filhos moradores na fazenda Malhadinha deste Termo,



            A consulta ao original ocorreu em 1980 e não havia recursos de computador para digitalizar e/ou escanear. Com o desaparecimento do livro, nesta reelaboração do trabalho, usou-se um programa digital para os desenhos dos ferros, aqui inseridos.

Analisando: a forma básica do pai, no desenho alegórico de um coração, mas “deitado”, com a ponta para a direita, continua nos ferros dos filhos, que varia nos detalhes segundo a ordem. Veja-se que o filho mais velho tem uma meia-fulô” exatamente do outro lado. Fica explícita a herança dos papéis patriarcal e do primogênito. A partir de Maria, única filha mulher, a ponta deste coração horizontalizado é estendida, abrindo-se em dois. Aqui, pode-se ler, sutilmente, o papel reprodutor da mulher, ainda que possa ter sido involuntário. No restante dos ferros, a variante desta ponta tem outras direções, nunca repetidas, individualizando, portanto, as marcas e os filhos.

            Não é de admirar o formato de um coração nos ferros sertanejos de marcar o gado. Afinal, o coração se traduz numa alegoria de sentimentos afetivos e religiosos. Símbolo do amor, se firmou na história ocidental. Uma leitura subjacente diz que a durabilidade do desenho do coração se deve à sua forma: o fato de duas metades formarem uma figura apenas traduz na perfeição a ideia platônica do amor e da busca pela alma gêmea. Ou, mais inconscientemente, o seu sucesso tenha a ver com um viés erótico na evocação sutil que o formato faz aos peitos e nádegas do corpo humano. De todo modo, uma intersecção de formatos e significados.

            Também pode-se usar a marca de família e os números para os filhos, pela ordem de nascimento: 1 – 2 - 3 - 4, o que é mais raro em ferros antigos, como esses do século XIX.

Sobre os “signaes”: incisões nas orelhas do “gado miúdo”, outra forma rudimentar de assinalar caprinos e ovinos, não é motivo agora, neste trabalho, de maior estudo. Na referência, o signal é o mesmo para o pai e todos os filhos, dado que o valor do gado bovino, sem dúvida, é mais alto e de longo prazo. Um “pater familia” é reiterado, como usuário e detentor da posse primitiva. Assim se constituíram muitas famílias “tradicionais”, herança cultural, desdobrando-se em outras posses, tanto no parentesco, como em arranjos familiares envolvendo escravos, agregados e situações atípicas na dinâmica da vida e do cotidiano.


Posso justificar isso, porque, nesse mesmo livro de registro dos ferros, encontrei esse formato do desenho inicial de um coração, de Antonio Rodrigues de Bonfim, em outros registros cujos sobrenomes tinham Rodrigues, com detalhes e posicionamento para cima ou para baixo, para um lado ou outro, uma profusão de marcas a partir do original. 


Também o registro abarca essencialmente o homem como proprietário da marca e seus filhos, apesar de haver algumas mulheres proprietárias, provavelmente viúvas. O registro 89 é um bom exemplo, uma mulher com oito filhos, seguindo o mesmo padrão familiar. Também o de número 177: “Registro dos ferros e signaes de Pedro Gomes da Silva e de sua agregada a menor Maria Placida da Silva.”

No modelo da família patriarcal em que o pai, o senhor, exerce seu poder sobre sua família e sobre as outras pessoas que vivem em seus domínios, há essa categoria dos agregados que, mesmo não sendo parentes, integra-se ao contexto familiar, embora com limites e com um distanciamento baseado no respeito e no reconhecimento informal desse aceite.


Uma gama de situações envolve essa possibilidade. Desde aquelas dos engenhos de açúcar, no litoral, aos interiores coloniais, outros tipos de famílias se multiplicaram, de viúvos e viúvas, de mães e filhos que viviam sem companheiros nem pais, dos filhos ilegítimos fora do casamento, de escravos, de homens forros ou livres, até mesmo de trabalhadores itinerantes. O compadrio sempre foi uma prática tradicional em que o pertencimento a uma família poderosa se transforma em troca de favores e de proteção.


Quantas narrativas estão inferidas nesses registros? Por que, justamente dois anos, apenas 1872 e 1873, houve necessidade de se fazer esse registro? Uma história de um todo e de suas particularidades significativas em continuação.




(Continua... Aguarde)