Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 30 de maio de 2019

O destino da agulha

Na literatura - talvez como na vida - aprendi que a narrativa de um conto deve caminhar para o clímax e um final abrupto para lhe dar mais suspense. E fazer o leitor refletir nas possibilidades de interpretação, do que vai lhe marcar na memória dessa mesma leitura. 
A literatura policial, os modernos roteiristas de cinema e tv sabem disso. Aliás, nada de novo se lembrarmos de Poe, de Machado, de Horácio Quiroga (ah, "O almofadão de plumas") na narrativa tradicional. 
Mas ainda quero escrever um conto como Tchekhov o fazia... na quebra dessa perspectiva...
Pois bem, o conto abaixo é ficção mas baseado num fato real que ouvi há tempos e nunca me saiu da memória: a mãe e o filho acompanhando aterrorizados o momento em que uma agulha seria espetada no coração... (quebrei o suspense?!) 
Acompanhe a história.


O destino da agulha

Madalena costurava e costurava...

Grávida de um homem casado, precisava se amparar e amparar o fruto de seu ventre. 
Concebido com muito pecado, todos apontavam-lhe o dedo da culpa. 
Feia, solteirona, morando com a mãe idosa e doente, poucas alegrias tinham.

Os olhares do senhor dono da bodega atiçaram-lhe desejos nunca adormecidos. 
Deu-se com vontade numa noite de estreia. 
Não houve reprise.

O barrigão aumentava a cada dia. Inquieta com a possibilidade a chegar, comprou um berço e o colocou ao lado da máquina de costura. Servia para guardar tecidos das freguesas e até figurinos enquanto aguardava a hora. 

A hora chegou. Entregar um vestido para a madame que ia ser madrinha de casamento. Mas o bebê também quis a luz.
Desnorteada, entre alinhavos e alfinetes, colocou o vestido no berço. E no chão da pequena sala onde trabalhava desde sempre, seu bebê nasceu.  Madalena fez de tudo para não manchar o vestido, conseguiu aos trancos tirar o vestido e ali colocou a criança recém nascida.

Do resto tomou de conta. Limpou, lavou, tudo como deve ser. E voltou à máquina de costura. 

Desde sempre, seus pés, mãos, tesouras, agulhas, linhas, tecidos, faziam parte de sua rotina.

O menino que nascera era bem feinho. Mas Madalena o achava lindo. Cantava para ele, sorria, às vezes até se atrasava com as entregas das costuras, entregue ao sentimento prazeroso de sua maternidade, que lhe preenchia, agora, a solidão desde sempre.

No entanto, o menino chorava muito, muito mesmo. Ainda no berço, ela viu um pequeno furo vermelho nas costas da criança, mas achou que pudesse ser alguma picada de inseto. 

Por mais que ela tratasse bem seu filhote, sempre limpinho, dando-lhe o leite necessário, essa criança chorava sem parar, como se uma dor terrível tivesse. Seria dor de ouvido, dor de dente, dor de cólica, tudo era aventado, remédio dado, benzeção e nada resolvido.

De todo modo a criança foi crescendo. Ficou apático, um menino mirrado para a idade. Sentia dores, cada vez num lugar incerto. Chorava muito, nem gostava de brincar, pois aquela dor não passava.

Madalena sentiu sua provação, sua culpa, máxima culpa. Pediu perdão, fez promessas, andou de joelhos na igreja, mas o menino realmente tinha algo que ninguém sabia dizer.

O menino ficou moço. Aos 18 anos teve que se apresentar para o serviço militar.

E aí descobriram. Exames médicos. Radiografia do pulmão.

Bingo! Ali estava a causa: uma agulha de costura em seu peito. Impossível de ser extraída.

O terror se anunciava. Madalena se lembrou do vestido inacabado no berço da criança.

Nesses anos todos, a agulha ficara instalada no corpo do pequeno.  Alfinetando culpas e dores. Em circulação, entrou na corrente sanguínea sem pedir licença. No balanço de sístoles e diástoles, estava se aproximando do destino final de sua viagem.

Madalena e o filho puderam então acompanhar a morte anunciada.
  
Dia após dia, poderia ser o dia. 

Então chegou...




Bordado feito à mão por esta blogueira, com base em desenho Pinterest










8 comentários:

  1. Caramba Net, adorei cada linha deste bordado mas confesso que fiquei com uma agulha no peito pela forma abrupta com que acabou...queria mais rs

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    1. Querido JG, obrigada. Vc é muito especial. Esta semana lembrei de vc e da CLAE. Tenho um pequeno livro pronto para dar a luz, mas a costura ficou por aqui mesmo, numa gráfica rápida. A gente conversa mais...
      Abraço
      Bet (Net...)

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  2. Bet* ( ao inferno com os corretores automáticos)

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  3. Chegou o dia? Da morte, da cura?
    Fantástico final! Adorei, Bete!
    Beijo no coração.

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    1. Obrigada desconhecido(a)...

      ai meu Deus quem me manda beijo no coração???
      Gostaria que se identificasse. Aí mandaria um beijo no seu coração também...

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  4. Com uma agulha cravada no peito de modo abrupto o leitor também processa a via crucis da morte anunciada...Costura leituras, sentidos, esperas...Sem fôlego.

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    1. Obrigada Auxiliadora por sua leitura sempre arguta... Respire!

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