Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

terça-feira, 15 de setembro de 2020

NOITES BRANCAS de Dostoiévski: alfinetadas narrativas

 

                     

Noites Brancas, conto, novela ou romance, de 1848, de F. M. Dostoiévski, me fez refletir sobre um objeto em certa medida insignificante e que aparece na história com uma função essencial para o desenvolvimento do enredo: um alfinete. Mas, no desenvolver desta análise, surgiram outras conexões e referências. De todo modo, espero, não me estender na sua complexidade, pois há excelentes trabalhos acadêmicos sobre esta obra, cujo gênero literário até mesmo tem sido difícil especificar.

Nástienka, a protagonista feminina da história, mora com a avó idosa, cega, que, para controlá-la, usa um alfinete unindo a saia da neta com a saia dela. Mais do que uma metáfora do controle, esse alfinete e sua menção na história nos ajudam, sem dúvidas, a compreender melhor a personagem, donzela romântica e sonhadora, assim como o sonhador protagonista, narrador da história. Este é um flaneur pelas ruas de São Petersburgo, local da história narrada, tendo ambos se encontrado ao acaso numa ponte, em uma das típicas noites brancas.

 

Essas noites brancas acontecem entre o fim de junho e começo de julho, dias inteiros de claridade, fenômeno devido ao fato de São Petersburgo estar localizada próxima à região do Círculo Polar Ártico.  Evidentemente que isso altera a rotina da cidade e de seus habitantes. No conto, a indicação temporal é um componente narrativo importante, pois é justamente à noite em que se dão os quatro encontros da história e isto tem uma razão de ser, criando uma atmosfera quase irreal, até mesmo fantasmagórica. Uma manhã, no final, apenas complementa o enredo e o destino do sonhador.


Como mulher, além da aparente insignificância de uma alfinete na história, ele se complementa no fato de a personagem de Noites Brancas, Nástienka (diminutivo de Anastácia), única personagem nomeada, já aparecer "diminuída" no formalismo dos nomes russos, em que, invariavelmente, se deve incluir patronímico e nome de família. Uma intimidade se instaura no par protagonista da história, possibilitando confidências e perspectivas em primeira pessoa.


“-Pois chamo-me... Nástienka.

- Nástienka. Só Nástienka?

- Só? Acha que é pouco, criatura insaciável?

- Muito pouco! Oh, não, de maneira nenhuma. Pelo contrário, já é muito, mesmo muito, minha amiga, que desde a primeira noite se tenha tornado logo para mim Nástienka simplesmente.” (p.652)

 

N. (Nástienka) não tem pais, criada desde a infância pela avó, que a educou, mesmo com dificuldades financeiras. Porque foram unidas com um alfinete, a própria N. nos conta.

 

“... você, com certeza, tal como eu, deve ter tido uma avó. A minha é cega e não consente por nada deste mundo que eu me afaste um momento do seu lado; de maneira que já me esqueci quase de falar. Haverá já dois anos fiz-lhe ver que ela não podia impedir que eu lhe pregasse uma partida; que fez ela então? Pegou na aba da minha saia e pregou-a com um alfinete à da sua... e assim passamos agora as duas todo o santo dia, agarradas uma à outra. Ela faz meia, apesar de não ver; e eu tenho de ficar sentada a seu lado, a coser ou a ler um livro... Oh! Às vezes ponho-me a pensar e parece-me estranho que viva assim, já há dois anos, pegada a ela desta maneira...” (p. 651).

 

Esse alfinete, mulher de outra geração que sou, usei em fraldas de algodão nos bebês. Alfinete que é conhecido como “alfinete de segurança” (tradução do inglês safety pin) ou alfinete de fralda, diferente do alfinete de costura. Imagino que esta avó russa usasse algo similar. E pensar que nos anos 60 e 70 do século XX, no modismo das roupas rasgadas, no punk, esses alfinetes foram usados como decoração pessoal... uma polêmica linguagem do inconformismo.

 

Mas o que é esta “maneira” de viver assim? O que este fato representou como visão de mundo para a neta? Talvez isso possa parecer um detalhe menor no todo da história, mas aprendemos que na obra literária nada é por acaso. São procedimentos que fazem parte da trama, gerando interpretações e dialogando em diversos níveis. O estudo da polifonia em Dostoiévski nos mostrou esta característica narrativa que perfaz um de seus aspectos mais criativos e desafiadores.

 

 Além da avó cega, vive na casa também uma criada, surda. Órgãos dos sentidos que incluem a voz de Nástienka, impedida de falar de seus sonhos e desejos. Anula-se a identidade de N. Sem autonomia, o vínculo com a avó é determinante para sua percepção de mundo, sua escolha de um futuro. Além das meias, mesmo cega, essa avó tecelã também exerce papel de casamenteira, pois “vê” nos inquilinos do andar superior de sua casa um provável noivo para a neta, o que seria certamente um alívio para ela.

 

“Nástienka, o inquilino é velho ou novo?... “E que aspecto tem? É pessoa distinta?... Um inquilino pobre e, entretanto, com seu aspecto distinto! Dantes era tudo muito diferente.” (p. 664)

 

Há um parêntese na narrativa da segunda noite com o destaque para “História de Nástienhka” em que ela conta detalhes e causos de sua história. Ficamos sabendo mais sobre a avó, que não é mera coadjuvante, como se pode perceber. A escolha de um marido rico poderia significar uma mudança social importante para estas mulheres, hoje reduzidas a trabalhadoras em condições bem modestas.

 

“Julgo que a minha avó foi rica noutros tempos, porque está sempre a falar dos belos dias que se foram. Foi ela quem me ensinou o francês, embora depois me tivesse arranjado um professor. Aos quinze anos – agora tenho dezessete – deixei de estudar. Foi por essa época que fiz aquela diabrura.”  (p. 662)

 

Nástienka narra um fato engraçado, quando caiu na frente do inquilino ao se levantar, por causa do alfinete, e que a deixou bem envergonhada. Aliás, não só acontece esse episódio cômico, que traz à narrativa um estranhamento singular, outra característica observada na obra de Dostoiévski.  “Olha, não se ria da minha avó. Eu, se me rio, é por causa do cômico da situação. Que havemos de fazer-lhe? A vovó, coitada, é assim... Mas fique sabendo que, apesar de tudo, gosto dela.” (p. 663)


Tanto gosta dela que, nos planos de um possível casamento, pensa em levá-la, assim como as criadas. Também o possível noivo, no caso o sonhador, quer a mesma coisa. Ora, a continuidade da família atual, de sua estrutura, ficará garantida no futuro. Na riqueza ou na pobreza...
 
O fato é que Nástienka não tem somente a saia presa. Sua alma (anima) também está presa neste mundo em que o destino da mulher é colocado nas regras rígidas da moral burguesa e cristã. Sabemos que um inquilino especial se instala na casa, em um quarto no andar superior. Escadas são índices de um alcance proibitivo, mas N. se apaixona por ele. Assim, ele empresta livros “decentes” que a moça lê para a avó. Romances e poemas, sempre com a recomendação da avó: “não te esqueças que toda cautela é pouca.”
 
E, num rompante gentil, o inquilino, através de um estratagema, convida aquelas mulheres entocadas a saírem, irem à opera.  “- O Barbeiro de Sevilha! – exclamou a vovó. – É o mesmo Barbeiro que cantavam noutros tempos?” E a avó confirma que já cantara a parte de Rosina. (p. 666)
 
A referência aos poemas e romances lidos, principalmente às obras de Walter Scott, compõem referências intertextuais que nos ajudam a compreender como se vai construindo o mundo e a personalidade de Nástienka, que confessa, já sonhara até com um príncipe chinês. Mas o melhor, acredito, seja a referência ao Barbeiro de Sevilha, como ópera mesmo. A Commedia Dell Arte se insinua aqui como mais uma ironia nesta desastrada história de amor dos jovens personagens de Noites Brancas. Rosina é disputada por dois pretendentes e, se não for certo exagero meu, essa avó represente uma máscara de Fígaro...

O inquilino vai embora de São Petersburgo. Desesperada, Nástienka arruma sua trouxinha e se oferece para fugir com seu “príncipe” do andar superior. Compreende-se que a personagem, em certo momento, haveria de querer se libertar. A situação financeira o impede de aceitar, mas promete vir, depois de um ano, encontrar-se com a moça apaixonada. Ele se atrasa e quem leu Noites Brancas entende por que Nástienka estava chorando na ponte.

 

Há uma certa ambivalência nos sentimentos dessa mulher apaixonada, que gostaria de ter os dois pretendentes ao mesmo tempo. Mas nada de muito dramático, apenas um inesperado e ardente beijo no sonhador, como despedida. Na sua escolha, ela irá se casar com o amado inquilino que chega finalmente. E Nástienka continuará sendo somente Nástienka, uma romântica mulher que idealiza o amor e sua própria vida.

 

Esta escolha de Nástienka, determinante também para o destino do esperançoso sonhador, já aparece prevista na epígrafe: ele continuará solitário. Apenas lhe restará o vislumbre de um fragmento de realização do sonho para justificar toda uma vida. 


“... Fora ele criado

Para habitar um instante que fosse

Nas vizinhanças do teu coração?”                                                      I.Turguêniev


...Иль был он создан для того,
Чтобы побыть хотя мгновенье.
В соседстве сердца твоего?..

Ив. Тургенев


Esses são os versos finais do poema “Flor”, composto por Turguêniev, ainda no início de sua carreira literária, para o nº 8 da revista Anais da Pátria, de 1843, cinco anos antes de Noites brancas.

 

Não há, pois, esperança de amor ou companhia para esse homem “pequeno” da Rússia czarista, mesmo que sejam tiradas as teias de aranha de seu quarto, símbolo de um sonho passado. Entretanto, retomando a epígrafe, nos deparamos com um ambíguo consolo quando a narrativa termina com esta interrogação: “Meu Deus!  Um momento de felicidade! Sim! Não será isso bastante para preencher uma vida?”

 

Será?

 

______________________

Usei, como referência de leitura Noites Brancas, em FIÓDOR M. DOSTOIÉVSKI, OBRA COMPLETA, Volume I, 1963, Companhia Aguilar Editora; páginas 641-686; tradução de Natália Nunes. Observe-se que nesta edição não consta a epígrafe. Pesquisei a original em russo e citei a tradução que está na edição da Editora 34.


Elisabet Gonçalves Moreira

Petrolina, setembro de 2020

 

 

Indico também assistir ao filme Noites Brancas, de Luchino Visconti, de 1957, uma adaptação cinematográfica que ganhou o prêmio do Festival de Veneza naquele ano. Analisar o filme, em contraponto com a obra de Dostóiévski, é outro trabalho instigante. Aliás, há várias adaptações de Noites Brancas em outras linguagens.

 

https://www.youtube.com/watch?v=-G507SE3K0c


 

Cartaz do filme soviético Noites Brancas, de 1960, usado como ilustração.

 

6 comentários:

  1. Análise composta com o vigor do seu olhar interrogativo. Nada fechado em si mesmo. Nem mesmo na obra. Senti falta de uma contextualização politica e social da Russia no tempo da produção. Que papel desempenhava a mulher naquele cenário ? Contrapontos ou quem sabe identidades com o modelo social vigente. Parabêns pelo olhar... pelo estudo.

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  2. Aparecida, obrigada (já que se identificou...) Questionamentos importantes, mas, na limitação de um texto personalizado para um blog, faltaram essas observações, assim me desculpo. Reconheço que sou muito elíptica no que escrevo...

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  3. Fiquei com muita vontade de ler o livro...Amo ler as suas considerações, Bet.
    Obrigada por compartilhar esse olhar tão orientado aos detalhes...

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    1. Iabi, leia sim... assim como outras obras de sua extensa criação. Obrigada digo eu... um blog sem preocupações acadêmicas, para leitura geral.

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  4. Bet
    Há mais de 30 anos, doei uma porção de livros que ficaram para mim, depois que Papai, muito cedo, partiu para a Eternidade.
    E lá se foi, também o "Noites Brancas". Mas é que passei algum bom tempão fora do Brasil, e não podia estar cuidando das
    prateleiras da Biblioteca que ficou. Que pena! Depois das suas considerações, gostaria de reler Dostoiévisky. Mas... vamos que vamos! Quem sabe ainda dá tempo! Um abraço, Liliana

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    1. Claro que sim Liliana... vale a pena reler Dostoiévski. Indico a tradução feita pela Editora 34, pois as traduções de pdf, pela web, em geral são bem ruins. Geralmente são traduções indiretas, do francês ou inglês. Obrigada sempre por sua atenção. Abraço

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