Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quarta-feira, 19 de maio de 2021

NACIONALIDADE TCHUVACHE: UM POETA E SEU(S) TRADUTOR(ES) (Parte II)

 

Boris Schnaiderman foi admirador e amigo pessoal do poeta Guenádi Aigui, divulgando sua poesia no Brasil. Para mim e para alguns leitores deste blog a descoberta de um grande poeta, desafios de leituras, reflexões e o prazer desse alcance. Seguimos.

Em abril de 2011 foi lançado o livro Guenádi Aigui – Silêncio e Clamor, traduzido por Boris Schnaiderman, agora com a parceria de Jerusa Pires Ferreira, publicado pela editora Perspectiva, de São Paulo.


Poeta tchuvache: Guenádi Aigui (1934-2006)

(Ah, pelas referências na Parte I, dedico a Anélia Pietrani)


Assim publicado na Poesia Russa Moderna Nova Antologia (São Paulo: Brasiliense, 1985)

Talvez agora ler, em voz alta, um poema de Guenádi Aigui. E depois, seu “autorretrato”, um depoimento tocante sobre o fazer poético e a vida, indissociáveis. O que conhecemos da literatura e seus artistas?

Silêncio 
1

no clarão
da angústia desfeita em pó
conheço o desnecessário como os pobres conhecem a
roupa última
e os velhos trastes
e sei que este desnecessário
é o que o país precisa de mim
confiável como um acordo secreto
o calar-se como vida
e para toda a minha vida

2

no entanto, o calar-se é doação, e para mim mesmo: o
silêncio

3

acostumar-me a tal silêncio
que seja como o coração que não se ouve bater
como a vida
que pareça um de seus lugares
e nisso eu sou – como a Poesia é
e eu sei
que meu trabalho é árduo e existe para si mesmo
como no cemitério da cidade
a insônia do vigia

1954–1956

(Tradução: Boris Schnaiderman)


Fragmentos  do autorretrato de Guenádi Aigui. Memórias da vida em desafios e conflitos, sobretudo na então União Soviética, mas o poeta crê em seu ofício e nele se consagra. Um caso exemplar para refletirmos no agora e em nossas circunstâncias.

Sobre mim mesmo
sucintamente

Nasci na Tchuváchia, num povoado com florestas sem fim, ao redor. Parte da minha infância (1939-1941) decorreu na Carélia, de onde a nossa família, durante a guerra, foi enviada de retorno à pátria. As impressões da Carélia encontraram expressão, bem recentemente, no ciclo dos meus versos sobre a infância.

Aigui é o sobrenome de nossa gente, conservado desde os tempos do paganismo, em tradução ele quer dizer "aquele mesmo".
Em meus primeiros versos escrevi muito sobre meu pai, o culto infantil e juvenil do pai se expressou também no meu primeiro livro de versos.

Dezenas de lembranças vivas estão ligadas a meu pai. A par dos relatos de minha mãe, elas testemunharam ter sido ele um homem extremamente sociável e expansivo, amigo das improvisações e das mistificações inocentes. Ele concluiu uma faculdade operária tchuvache e ensinava língua russa e literatura numa escola. Sua sociabilidade não entrava em conflito com seu nomadismo: não conseguia trabalhar no mesmo povoado mais de dois ou três anos; deste modo, a minha primeira infância decorreu em diferentes povoados tchuvaches, tártaros e morduínos. Somente depois da morte de meu pai eu soube que, na juventude, ele se empolgara com a criação poética. Vários de seus poemas entraram em coletâneas tchuvaches.

 (...)
lembrava-me de como meu pai cantarolava com frequência aqueles versos de Púschkin: "A tempestade cobre o céu de treva [ ... ]" lembro-me também de que, ficando em casa sozinho, eu tinha medo do retrato de Gógol, pendurado acima do armário de livros.
(...)

Meu pai foi morto em combate em 1943, nas proximidades de Smolénsk.

(...)
Voltando da Carélia, residimos em nosso povoado, no sul da Tchuváchia. Havia ali duzentas casas, deixaram de voltar da guerra para lá perto de trezentos homens. Falando daqueles anos, eu não posso deixar de me referir ao trabalho penoso dos habitantes, à fome de 1946 e aos meus colegas de classe, muitos dos quais não conseguiram concluir o curso secundário.

No povoado havia poucos livros, logo eles estavam todos lidos. Lembro-me de um caso: pedi à direção do kolkhoz brochuras quando estivessem sobrando. Ficou- me na memória uma delas: instruções para o combate ao gorgulho nos depósitos. Era difícil também conseguir livros na sede do distrito, onde eu depois cursei a escola normal. Até o outono de 1958, eu não tinha lido nenhum poeta russo do século xx além de Maiakóvski.

Esses anos e os seguintes ligam-se em minha memória, viva e dramaticamente, até à dor, com a imagem de minha mãe. Sua morte prematura coincidiu com o período em que fui vítima de ataques violentos na imprensa e em manifestações verbais. Minha mãe era meu único amigo, que compreendia plenamente as razões pelas quais eu defendia tenazmente minha concepção do dever de criação.

O seu comportamento no cotidiano lembrava o aperfeiçoamento moral de um artista. A seriedade e o que havia de profundo em seu íntimo, a relação inquieta com tudo o que havia de vulgar e superficial destacavam-na dos demais, que me cercavam desde a infância.

O meu avô materno foi o último sacerdote pagão de nosso povoado, esta atribuição era transmitida por herança. Minha mãe conhecia bem os ritos pagãos, que eram recusados, mas não proibidos pela Igreja. Ela e sua irmã conheciam muitas orações e esconjuras pagãos, minha mãe os lia frequentemente a meu pedido.

(...)

Vou falar sucintamente sobre o período ulterior de minha vida, já mais próximo de nós. Ingressei em 1958 no instituto literário de Moscou.  (...) E, pensando no início de uma autoconsciência séria, eu sempre lembro em primeiro lugar de Mon coeur mis a nu (Meu Coração Desnudado) de Baudelaire e O Nascimento da Tragédia de Nietzsche.

Em 1956, eu conheci B. L. Pasternak, a relação amistosa comigo foi mantida pelo poeta até sua morte. Ao contrário de opiniões expressas frequentemente, tenho certeza de que a poética de Pasternak não exerceu influência sobre mim. E sobre a influência de sua personalidade, extraordinariamente forte e inesquecível, eu só poderia falar depois de me preparar como criador. A estrutura dos meus versos da juventude está ligada com a produção da mocidade de Maiakóvski.

Para caracterizar meus versos desse período, vou transcrever um trecho do prefácio que escrevi para eles mais tarde:

"Nos últimos anos, pensando na criação poética em termos de desenvolvimento dos recursos poéticos, adivinhando a diferença entre os que constroem e os que refletem, eu não procurei voltar aos meus primeiros versos. Refletiram-se neles aqueles traços de juventude que, numa idade mais madura, começam a parecer perniciosos para a arte. Acrescentou-se algo pessoal ao romantismo inerente aos versos juvenis: o trabalho com o verso aparecia para mim, antes de tudo, como a obtenção de material poético. O olhar de fora sobre a língua russa, que me ajudou nos primeiros tempos, tinha que desaparecer.
Eu escrevo em russo desde 1960. O primeiro leitor que aprovou os meus textos foi Nazim Hikmet, que já me havia aconselhado, assim como Pasternak, a escrever nessa língua".

(Escrito em russo para a revista tcheca Svet Sovetu)

O Povo como Templo

e as almas que nem velas se acendem uma a outra

Aldeia de Romáchkovo
6 de janeiro de 2002, véspera de Natal

ah, vai mais um,
porque fiquei de fato arrebatado:

Jardim-Tristeza

é
(talvez)
o vento
que inclina – tão leve
(para a morte)
o coração

1994

(Tradução: Jerusa Pires Ferreira

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