Bet com t mudo

Minha foto
BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

domingo, 23 de janeiro de 2022

PALAVRA E MEIA


“Literatura é linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”
                         Ezra Pound


Tomando um texto curto para análise, receptora nesse ato de comunicação, adentro no poema Passatempo de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e sua possibilidade de uma leitura crítica. E, bem sei, de antemão, que a própria escolha do texto já aí se situa, não por ser “curto” mas, sim, pela sua extensão poética...

PASSATEMPO

                    O verso não, ou sim o verso?

                    Eis-me perdido no universo

                    do dizer, que, tímido, verso,

                    sabendo embora que o que lavra

                    só encontra meia palavra.

Carlos Drummond de Andrade (in Corpo. S. Paulo: Record, 1984, p. 89)

Ler e reler o texto em primeiro lugar. Sentir. Ouvir sua própria voz. Apreciar a sonoridade, o que o poema traduz, o conjunto em seu primeiro contato. Fazer isso com prazer.

Você pode até pesquisar. Situar a obra. Do livro Corpo, de 1984, quando o poeta contava 82 anos, pouco antes de sua morte. Livro que teve uma reação um tanto negativa da crítica, a cobrar-lhe a poesia social dos anos 30 e 40, o poeta volta-se para uma poesia mais sensual, lírica e irônica ao mesmo tempo, o que nunca deixou de ser.

        Tratando o texto: decodificando-o visualmente, formalmente, atitude necessária para um crítico entender procedimentos e significação. Vejo um título em destaque e apenas cinco versos, distribuídos em duas orações. Releio mais uma vez. Já no primeiro verso temos uma interrogação motivadora (“O verso não, ou sim o verso?”) e uma possibilidade de resposta nos versos seguintes, uma quadra, constituindo uma oração afirmativa completa nos “enjambements” (encadeamentos) de um verso a outro.

        Aqui não se visualiza o verso “livre”; exercito a metrificação. Contagem: oito sílabas poéticas e que, unindo som e significação fica-se em dúvida no último verso, nos limites entre “forçar” oito sílabas ou ficar com sete, já que o poeta diz que “só encontra meia palavra” e não uma palavra inteira...

O jogo formal se amplia: rimas finais, todas paroxítonas, verbos e substantivos em assonâncias e contrastes:

verso/universo/verso/lavra/palavra (a/a/a/b/b)

(substantivo/substantivo/verbo/verbo/substantivo) 

Uma construção melódica de grande sonoridade, desde o próprio título, duas palavras fundidas: o uso de sibilantes; o t e p tão próximos foneticamente e separados pela nasalização do -em-, já a nos inquirir que tipo de passatempo seria este.

Passatempo (passa/tempo) 

        E ele se apresenta como desafio no primeiro verso, na interrogação, mediado pela vírgula, separando o ser ou não ser, isto é, o sim e o não. Metalinguagem explícita, o poeta questiona o verso e sua indecisão e o eu lírico responde a seguir, afirmando sua voz; “Eis-me perdido no universo/do dizer”.

Esse dizer que o deixa perdido, mas “que, tímido, verso”. Percebe-se, pela análise um pouco mais atenta que, no primeiro verso, a palavra verso é um substantivo, repetida duas vezes, quase numa gangorra rítmica do sim e do não; continua a rima em universo, outro substantivo, mas, no terceiro verso, temos esta palavra funcionando, morfologicamente, como um verbo: (eu) verso.

Tensão ou harmonia dos contrários: “O verso não, ou sim o verso?” A grande questão, o que decidir como referencial literário? O não e o sim divididos na metade do verso. Não há separação entre forma e conteúdo, se bem lermos. Estabelece-se um diálogo no próprio texto, entre o autor e o eu poético. O poeta pode até se mostrar indeciso, mas sabe muito bem de sua escolha...

        O verbo versar tem vários significados. No texto, a ambiguidade semântica (já conotada na indecisão do sim e do não do primeiro verso) amplia-se aqui. Tanto pode ser sinônimo de versejar, atividade que o poeta afinal está fazendo, como pode ser também, de acordo com sua origem etimológica, voltar, no sentido do verso, que vai e volta, ou manejar, exercitar.

        Quanto ao adjetivo tímido, destacado entre vírgulas, pode ser interpretado com base na personalidade do escritor. Carlos Drummond era um mineiro retraído, avesso a badalações, considerado um tímido como pessoa, significado que ele pode estar reiterando, mas pode ser também relativo aos seus versos, já que ele se confessa “perdido” neste “universo do dizer”.

O jogo se acentua nessa tentativa de acerto. O poeta agora usa a palavra verso como um verbo, na primeira pessoa do presente. O eu lírico se posiciona: perdido. Achará? Eco em universo, com significado ambíguo em todo o contexto, pois sua abrangência é aberta, mas é também uni. No dizer: a palavra, esse signo verbal carregado na dialética entre significante e significado, entre o sim e o não subliminar.

        Os dois últimos versos, no entanto, são uma afirmação forte, quase que dogmática “sabendo embora que o que lavra/ só encontra meia palavra”. Tradicionalmente, as rimas b são rimas “ricas”, pois lavra está funcionando como verbo e palavra é um substantivo. Neste instante, conhecimentos sobre a biografia do autor ajudam a entender e justificar o uso do verbo lavrar.

Drummond nasceu no estado de Minas Gerais e só saiu de lá depois de adulto. A exploração colonial das minas de ouro marcou a história das “lavras do ouro”. Portanto, lavrar é um verbo forte, repleto de conotações. Nada é gratuito num texto plenamente realizado, tudo tem significados além da estrutura superficial.

        Mesmo “perdido”, o poeta usa um gerúndio (presente contínuo) para afirmar que sabe (Sabendo...) Sabe, tem certeza, que nesse universo, aquele que trabalha (onde está o passatempo?) não encontra tudo acabado, pronto ou perfeito, só “meia palavra”.

Observe-se o uso da adversativa “embora”, conotando os limites deste universo que ele assume - agora é o sim - como um trabalho, mas um não nas suas dificuldades, já que qualquer poeta, percebido pelo pronome oblíquo o (não somente ele) nunca encontrará a palavra inteira. Generalizando todos os que se perdem, como ele, no “universo do dizer”.

        Portanto, este poema, dentro da poesia de Carlos Drummond de Andrade, reitera a impossibilidade do dizer poético, entre aquele que vê o verso como um ofício de garimpagem do verso e das palavras, mas constata ser apenas um passatempo, triste ironia, que não se completa.

        Função poética dominante da linguagem, na concepção jakobsiana, o poeta se vale da referência metalinguística para, de um ponto de vista pessoal e emotivo, mostrar-nos os dilemas, perplexidades e constatações da poesia, seus limites e virtualidades.

        Neste poema vejo, sintetizada, a poética de Drummond, seus questionamentos existenciais e seu labor literário, dúvidas e angústias do fazer. Mesmo que seja um “passatempo”, ironia no que o lúdico se integra nessa “perdição” de não encontrar toda a possibilidade do verso: o signo sempre trará a marca de sua incompletude.

                


Carlos Drummond de Andrade 

(Obs.: esta análise foi feita aos poucos, em sala de aula, em descobertas gradativas... também o sentido pleno do texto não nos é dado de uma vez só, é preciso “curtir”, aguardar, refletir... 23/01/22)

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário