Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

MARCAS DE FERRAR: FERRAÇÃO EM ATOS E REGISTROS


Destaco algumas referências bibliográficas, geralmente regionais, que tratam deste assunto. Indico em especial o trabalho primoroso sobre a região do Vale do São Francisco de Esmeraldo Lopes e o livro “Caatingueiros e Caatinga A agonia de uma cultura” (Maceió, Gráfica Grafipel, 2012. 543p.il.).

A descrição da ferração dos animais, feita por Esmeraldo Lopes, é particularmente exemplar, pelo estilo e pelos detalhes, marcando também a memória visual e olfativa. Ademais, isso era uma prática comum e aceita no cotidiano do sistema econômico e social, sem julgamentos ou posturas do mundo “civilizado” de agora. Sempre se destaca a honradez e respeito às marcas das famílias, tornando o furto de animais uma vergonha para o ladrão, quando desmascarado.

 

“A ferração dos jumentos, dos cavalares, providenciada quando os bichos já em corpo feito; ferração de gado ao entrar na fase de garrote. No dia de ferração os bichos a serem ferrados no curral. Uma fogueira pequena acesa, os ferros com a marca da família, do proprietário dentro da família, postos nela, sufocados por bandejas de bosta seca de gado, para esquentamento ligeiro. Os garrotes, marrãos de jumento, os poltros crescidos caindo no laço, sendo derrubados para a imobilização. E lá vindo o ferrador, com o ferro em brasa na mão, fazendo mira. O bicho estrebuchando, o ferro fazendo chiiii, e a fumaça subindo, cheirando a cabelo a carne queimada, ao som de um berro afogado. Colocar estrume fresco de vaca em cima do ferimento da queimadura: a prevenção contra bicheira. Com as ovelhas, assim também, na obra de carimbação.” (LOPES, 2012, p. 135/6).

 

Nos animais há, inclusive, um cuidado para não estragar o couro, que, após o abate, será aproveitado em diversos usos, desde a indumentária do vaqueiro, até a forração de móveis e utensílios. Portanto, as leis e normas oficializadas mais tarde só referendaram uma prática usual de interesse do mercado e do comércio.


Câmara Cascudo descreve no geral:

 

“Nenhuma festa tinha as finalidades práticas das “apartações” do Nordeste. Criado em comum nos campos indivisos, o gado, em junho, sendo o inverno cedo, era tocado para grandes currais, escolhendo-se a fazenda maior e de mais espaçoso pátio de toda ribeira. Dezenas e dezenas de vaqueiros passavam semanas reunindo a gadaria esparsa pelas serras e tabuleiros, com episódios empolgantes de correrias vertiginosas. Era também a hora dos negócios. Comprava-se, vendia-se, trocava-se. Guardadas as reses, separava-se um certo número para a “vaquejada”. Puxar gado, correr ao boi, eram sinônimos. A “apartação” consistia na identificação do gado de cada patrão dos vaqueiros presentes. Marcados pelo “ferro” na anca, o “sinal” recortado na orelha, a “letra” da ribeira, o animal era reconhecido e entregue ao vaqueiro.” (CASCUDO, 1984, p. 106)

 

Ribeira é o nome que se dá às terras baixas das margens de um rio. No texto de Cascudo, assim como no contexto deste trabalho, designa o espaço rural que abrange algumas fazendas de criação de gado, dependentes de um curso de água comum. Inclusive, a história do povoamento do interior dos sertões está diretamente relacionada com a expansão extensiva da criação de gado.

 

  Não há bibliografia sobre o assunto que não use ou apenas cite o livro Terra de Sol – Natureza e costumes do Norte de Gustavo Barroso (1888-1959), publicado em 1912. Um livro cuja linguagem e subjetividade do autor não resistem ao incômodo do escancarado racismo e preconceitos vários, ainda que possa ter influenciado outros autores, inclusive Ariano Suassuna, pelo fato de ter descrito o sertão cearense, incluindo aí os ferros de marcar o gado. Escolhi duas observações que concernem à minha análise em decurso:

            “Os matutos têm um conhecimento profundo dessas marcas de gado. São elas o assunto predileto de suas palestras; e, enquanto conversam, desenham-nas no chão com um graveto ou com a ponta fina da “parnaíba” afiada. Distinguem-nas ao longe. Jamais se enganam. Conhecem os ferros da ribeira toda de cor e salteado. E quando aparece um animal de marca desconhecida, logo a riscam na porta da casa ou nos troncos insulados das várzeas para roteiro dos que procuram gados sumidos de fazendas distantes.” (BARROSO, p. 210)

            Portanto, os ferros assinalam outras finalidades, um código de reconhecimento e um trabalho especializado para ser feito.

            “O ferro é de grande utilidade para saberem notícias dos animais tresmalhados; e o primeiro trabalho de um vaqueiro ao “pedir um campo” em fazenda estranha, isto é, pedir auxílio ou licença para procurar a rês sumida, é apear-se e riscar no chão o respectivo ferro, dizendo a letra da freguesia e sinal da fazenda.” (p. 213)

            O que inferir desse ato primeiro de uma escrita sígnica? De um singular paradigma indiciário, na análise de desenhos, rastros, pistas, é que se geram as ações de um processo aguardado – e autorizado - pelo sistema vigente. Portanto, o sinal dado pelo ferro de marcar está inserido numa rede de informações como veículo intercomunicativo, projetando-se na orientação do próprio fazer, do tipo de trabalho a que se dedicam os vaqueiros – ou se sujeitam - nesse modo de vida.

            Diferente do registro manuscrito do Livro de Ferros da Vila de Petrolina, de 1872/73, temos aqui a foto do registro nº 1, de 1942, feito no município de Limoeiro, no estado do Ceará. Formal e burocrático, pela ficha, vemos que o registro fez parte de um processo, iniciado com o pedido em 1939, publicado no D.O. (Diário Oficial) em 1940 e só registrado dois anos depois. Quanto ao desenho da marca, achei incipiente, lembrando um graveto (duas retas). Sabe-se, no entanto, que há registros das marcas de gado, em municípios de outros estados, 

Foto Cláudio Ribeiro – Diário do Povo – 2014 [1]

            Para comparação, encontrei esta foto de outro registro na cidade de Campos, no estado do Rio de Janeiro, mais elaborado na escrita, no preenchimento do registro e no desenho. Datado de setembro de 1932, há conotações instigantes nas referências nominais como “indústria pastoril” e “systema “Ordem e Progresso”. O ano de 32, marcado pela ditadura de Vargas e o “Estado Novo”, também ficou marcado pela Revolução Constitucionalista e ano da fundação oficial da Ação Integralista Brasileira, de cunho ideológico eminentemente fascista, por Plínio Salgado. Entre o Sudeste e o Nordeste, há diferenças significativas nesse momento histórico... mesmo uma década depois. A leitura deste documento, num país conservador de origem agrária, referenda a dominação até pelo emblema Ordem e Progresso, como na bandeira brasileira.[2]


            O ferro ali desenhado, simétrico, pode lembrar o esboço de uma cabeça humana ou, mais de acordo com a proposta do “systema”, de cunho nacionalista, a ordem e o progresso.

            Fico então sabendo que o Ceará tem o decreto nº 523, de 29 de março de 1939, que regula o registro de marcas de gado no Estado. O então interventor federal, Francisco de Menezes Pimentel, ordenou, no artigo 1º: “A propriedade sobre o gado bovino, equino, asinino e muar é comprovada, no território do Estado do Ceará, por meio de marca a fogo” (grifos meus).

            Embora o método de marcar tenha evoluído, ainda é necessário o registro. Segundo o depoimento de Geraldinha Barroso dos Santos, do Setor de Registro de Marcas de Ferrar Gado, da Secretaria do Desenvolvimento Agrário daquele estado, desde o início da legislação, foram criadas 34.696 marcas, lembrando que a reportagem de onde tirei as informações é de 2014. Por mês, chegam a apresentar de 30 a 40 novas marcas, e há uma taxa de serviço a ser paga.

            Uma reportagem especial com o sugestivo título de “Sertão a ferro e fogo – Marcas de gado e gente”, de Gil Dicelli, no Diário do Povo, de Fortaleza, CE, traz várias abordagens sobre o assunto, com diversas autorias. Também fala das vaquejadas, hoje um tipo de “esporte”, num lugar especial, com prêmios e shows, em que os atuais vaqueiros em nada se parecem com a ancestralidade da pega do boi na caatinga. Em Petrolina, há um parque de vaquejadas bem estruturado, com um calendário de eventos. Dimitri Túlio, um dos articulistas da reportagem citada, sintetiza:

            “Semelhante a tempos bem longe, os aldeões se reúnem num canto para assistir aos clãs mais abastados, ostentantes de cavalos potentes e marcas de ferrar como assinatura, disputarem qual família tem a melhor cepa de vaqueiros contemporâneos”.

Se você tiver interesse em ferrar seu rebanho, assista ao pequeno filme disponível no Youtube; mais didático impossível:

    

            https://www.youtube.com/watch?v=khm0c70-RFU


A natureza e o entorno dos tempos mudaram a dinâmica do poder e de suas posses, seja nas profundezas de um Brasil pouco conhecido, seja na periferia de espetáculos, da própria arte em suas variadas linguagens e adaptações mercantis

 

 



[1]Diário do Povo – 2014 – Gil Dicelli - Sertão - A Ferro e Fogo | O POVO - Reportagem especial do O POVO sobre a marca de ferrar boi, uma herança avoenga - especiais.opovo.com.br  (Acesso em 20/01/23) 

Créditos (complementando a nota 1: O especial “Sertão a Ferro e fogo – Marcas de Gado e Gente” foi ganhador do Prêmio BNB de Jornalismo, na categoria de Fotografia Nacional (2015) e na categoria Reportagem Nacional, com textos de Ana Mary C. Cavalcante, Cláudio Ribeiro, Demitir Túlio, Émerson Maranhão e edição de Fátima Sudário. Além disso, ganhou o Prêmio ESSO de Jornalismo na categoria “Criação Gráfica”, com projeto assinado por Gil Dicelli.


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