Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

AMARRAS DO IMAGINÁRIO: O CADARÇO CÓSMICO

 


"Em verdade vos digo:  Tudo o que ligardes sobre a terra será ligado também no céu, e tudo o que desatardes sobre a terra, será desatado também no céu.”

                                                                                       (Bíblia, Mateus: 18:18)

“O homem é amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu.”  

                                                                               Max Weber (citado por GEERTZ, Clifford)

Ao ler Mircea Eliade, Imagens e Símbolos (São Paulo: Martins Fontes, 1996) e ter sido convocada a apresentar o capítulo III “O “Deus Amarrador” e o Simbolismo dos Nós”[1] para um grupo de pesquisa de estudos do Imaginário, do qual faço parte, me senti motivada a pesquisar o assunto, em mais relações e significados que transitam pelo imaginário coletivo.

A referência a um “deus amarrador”, Varuna, na mitologia védica indiana, imediatamente me trouxe também a lembrança da “Nossa Senhora Desatadora de Nós”, que ouvira há algum tempo e me chamara a atenção pelo inusitado. Sabemos que existem centenas de nomes e atribuições à mãe de Jesus, dentro da teologia cristã, mas essa titulação é realmente insólita, assim me parece. No entanto, o texto de Eliade mostrou o quão pertinente ela pode ser, reproduzida como um arquétipo, um paradigma que atravessa a história, como imagem e símbolo.

Não pretendo fazer um resumo pari passu do capítulo de Eliade, mas, a partir da imagem desse “deus amarrador” ou “ligador”, construir um paralelo entre essas duas referências e sua simbologia, que não deixa de ser também uma visão semiótica na leitura desses signos, passível, é claro, de observações, complementações e discordâncias.

No mito do “Deus Amarrador”, Varuna, Eliade mostra que, dentre as atribuições desse deus soberano (Terrível) está a magia, por meio da qual ele combate os deuses guerreiros. Desse modo, Varuna consegue equilibrar o mundo. Como? Armas que se revelam, muitas vezes, sob a forma de um laço, do nó, seja ele concreto ou figurado. O deus guerreiro é Indra, ao contrário de Varuna, que salva as vítimas “amarradas” por Varuna, “desamarrando-as.” (Eliade, p. 90)

Estudos mostram que grande parte das culturas politeístas tem um deus considerado amarrador, que amarra, captura e imobiliza seus inimigos. Mas, geralmente, há também um deus “desamarrador”. Diversas culturas ligam as “amarras” a divindades nem sempre boas, demoníacas muitas vezes. Na ambivalência mítica, não há como deixar de relacionar Jesus, filho de Deus, e seu contraponto, o demônio, na eterna luta entre o Bem e o Mal. No evangelho bíblico de Marcos 5, 1-20, ele “liberta”, “solta” o endemoninhado ao exorcizá-lo, desprendendo-o das correntes e grilhões de Satanás.

Para entendermos o imaginário que se depreende não só desse mito, suas imagens e símbolos, precisamos acompanhar o rescaldo extraordinário do ser humano em suas inquietações espirituais. Apresento preliminarmente essas duas imagens, selecionadas no Google, para uma primeira - e ligeira – comparação visual.

                           

                       VARUNA - SENHOR DOS NÓS                            NOSSA SENHORA DESATADORA DE NÓS

Varuna é o “deus amarrador”. Um deus cósmico, original. Nessa escultura (sem data) no templo Rajarani em Orissa, Índia, vemos o fio (corda) que passa pelos seus dedos da mão esquerda, envolve seu corpo e fica atado no que parece um tronco de árvore. Sem dúvidas um deus majestoso, ladeado por belos ornamentos, característicos da arte indiana. A “corda” lembra uma serpente. Uma figura de mulher, diminuta, a seus pés, do lado esquerdo, segura o que parece ser uma concha, símbolo das águas e da fertilidade. Pode-se inferir sua posição de inferioridade e a devoção ao deus.

Nossa Senhora Desatadora de Nós se origina dessa pintura do artista alemão Johann Schmidtner, cujo original é de 1700. A pintura encontra-se na capela de St. Peter, em Augsburgo, na Alemanha. Uma Madona, representada como a invariante da Imaculada Conceição, cercada de anjos, iluminada pela pomba, signo visual do Espírito Santo, tem em suas mãos uma comprida fita branca cheia de nós, à esquerda, entregue por um anjo, e lisa, à direita, numa alegoria de que desatou esses nós. Observe a expressão facial desse anjo, como se nos dissesse: “Está vendo? Ela desatou os nós”. Sob seus pés está uma meia lua e uma serpente. Em sua cabeça tem 12 estrelas, lembrando o texto de Apocalipse 12.1 “Uma mulher vestida de sol, e a lua debaixo de seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça.” Uma rainha do céu e da terra. Nessa fita alegórica está evidente a polaridade “amarrador/desamarrador”.

Na pesquisa, fico sabendo que a inspiração para a criação do nome da “Nossa Senhora Desatadora de Nós” foi a frase de Santo Irineu, bispo de Lyon, no Século III: "Eva atou o nó da desgraça para o gênero humano; Maria por sua obediência o desatou". A oposição entre essas duas mulheres míticascomo muitas outras da própria Bíblia, putas e santas, estrutura a base ideológica da inferioridade da mulher, especialmente o aspecto subliminar de sua sexualidade. Somente Maria é a Virgem santificada. Ainda lembrar que a cobra, sob os pés da Madona, remete à história de Adão e Eva, ao pecado original, culpa e castigo, e ao simbolismo da serpente-princípio-do-mal, conexão que significa a origem de todos os males pela estreita relação entre a vida e o pecado. 

No quadro original, na parte debaixo da figura da Madona, há um anjo, um homem e um cachorro dirigindo-se a uma igreja. Li que este simbolismo parece ser uma referência ao livro de Tobias (6,13). No livro, Tobias enfrenta uma longa e penosa viagem procurando a cura de seu pai que ficara cego. Na viagem, ele conhece Sara que já tinha sido casada sete vezes, mas sempre na noite de núpcias, seus maridos morriam por causa de um demônio.

Através da oração, do jejum, da ajuda do Arcanjo Rafael e do poder de Deus, Tobias liberta Sara dessa maldição e casa-se com ela. Depois volta à casa de seu pai com um remédio que o Anjo Rafael lhe mandara fazer e o pai fica curado. Isto significa que para que dois corações venham a se encontrar, é preciso desatar primeiro os nós. E assim é a mensagem fundamental de Nossa Senhora Desatadora dos Nós para os cristãos.

Nesse desenho estilizado de Varuna, podemos observar melhor os detalhes de sua imagem e simbologia.  Sentado na postura de lótus (Padmasana) considerada um asana (ou postura) bastante avançada, preferida para meditação e para se entoar mantras. Uma postura que “permite” que você suba ao céu e ao mesmo tempo permaneça plantado no chão. O triângulo formado por ela simboliza conhecimento, vontade e ação, os fundamentos de uma prática da Yoga.

O deus se apresenta com fitas, laços e nós que envolvem seu colo e passam pela sua mão direita. Inclusive há várias linhas que o envolvem, como se fossem extensões do deus, até mesmo nos cabelos. Na mão esquerda segura uma concha, objeto de estudo do livro de Mircea Eliade, já que Varuna é também um deus lunar e aquático. O deus monta Makara, o monstro quimérico de características reptilianas. Makara é a matriz do caos, o não manifestado; por outro lado, ele gera o tempo no sentido da dissolução, a natureza cíclica. Varuna é, pois, aquele que dirige e põe ao seu serviço o plano material, não o destruindo, mas “domesticando-o”.

Ao atar um nó de forma concreta, física, a uma ideia, concepção, ou pensamento, estabelece-se uma conexão entre o nó (físico) e o pensamento do que se precisa ou se pede (mental). Rituais, sortilégios, superstições, crenças e tantas outras designações abrangem esse caráter mágico do poder da mente, principalmente ligados à doença e à morte.


“Amarre o nó” (2024), meok e acrílico sobre hanji. Moonassi. (Imagem compartilhada com permissão).    https://www.thisiscolossal.com/2024/02/moonassi-murmures/

Amarrar um barbante no dedo com um nó para não se esquecer de algo é (ou foi) um exemplo bastante comum dessa relação mágica e poderosa, assim como os “laços” no casamento para a união dos noivos. Hoje, ostentar pequenos laços coloridos implicam em campanhas de conscientização de saúde ou de cidadania. Múltiplos significados se avolumam em diferentes propósitos ou interpretações.

“Mas é justamente essa imprecisão e essa instabilidade que são interessantes do ponto de vista fenomenológico, pois elas desvendam a tendência das “formas” religiosas a se interpenetrarem e a absorverem umas às outras. Esta perspectiva dialética só pode ajudar a compreender os fenômenos religiosos e arcaicos.” (grifos meus, Eliade, página 98)

Mas não é isso que vai ocorrer com muitos fenômenos atuais como a devoção a “Nossa Senhora Desatadora dos Nós”?

A simbologia do “fio da vida” é de seu destino humano, tecido desde seu nascimento.  “Resulta daí que um simbolismo tão denso exprime duas coisas essenciais: por um lado, que, no Cosmos como na vida humana, tudo está ligado através de uma textura invisível: por outro, que certas divindades são as mestras desses “fios” que, em última análise, constituem uma vasta “amarração” cósmica.” (Eliade, p. 112)

Enfim, este assunto é inesgotável e um desafio para outros estudos. O tema dos laços tem incontáveis variantes, seja na mitologia ou na iconografia, como imagem de enlaçamento ou como forma de arte ornamental sob a figura de nós, entrelaçados, fitas, cordões, redes e outras. No seu sentido mais geral, representam a ideia de ligar, sabendo-se, no entanto, que o fim último do ser humano é libertar-se dessas “amarras”.

 

O nó é, pois, um símbolo complexo que integra vários sentidos importantes, relacionados com a ideia central de conexão fechada. É nele que já reside o domínio das espirais. O signo do infinito ou 8 na horizontal constitui um entrelaçado, um nó, manifestação dessa infinitude e representa o conceito do que seria a eternidade, como algo que não tem um começo nem fim.


A partir de um ponto de vista religioso e místico, o símbolo do infinito pode ser interpretado como a junção do físico com o espiritual, num movimento eterno de nascimento e morte, luz e escuridão. 

“Essa ambivalência do “amarrar” (...) vem provavelmente do fato de que o homem reconhece nesse complexo uma espécie de arquétipo de sua própria situação no mundo.” (Eliade, p. 116, destaque feito pelo autor).

“O que parece mais certo é a tendência de qualquer “forma histórica” a aproximar-se o máximo possível de seu arquétipo, mesmo quando ele se realiza num plano secundário, insignificante: este fenômeno se verifica por toda a parte, ao longo da história religiosa da humanidade.” (Eliade, p. 119)

Inicialmente, a imagem de Nossa Senhora Desatadora de Nós fora criada figurativamente em um quadro, uma pintura, como vimos.  Com o tempo, foi construída uma estátua para ela e as imagens se multiplicaram.

Uma tia que conheci, velhinha e devota de Nossa Senhora Desatadora de Nós, deixou esta pequena imagem como herança para a filha do coração, em Recife, no final do século passado. Embora simples e modesta, a santinha traz os elementos fundamentais de sua decodificação, desde a fita entre os seus dedos, com os “nós” de um lado e sem nós do outro lado, ladeada por dois anjinhos, apoiada sobre “nuvens”, uma meia lua e a cobra, símbolo do pecado, vencida aos seus pés. Pequenos anjos seguram os dois lados de uma fita, querubins que lembram os anjinhos de Rafael (aliás compare com a pintura original), mas que simbolizam o seu papel de mediadores e auxiliares do milagre. Ela se equilibra sobre nuvens (ideia do celestial) e tem a seus pés uma meia lua e uma serpente enodada. A simbologia se confirma, ela tem o poder celestial que “amarra” o demônio na visão da serpente. As cores são importantes indícios de interpretação. O vermelho do vestido com contornos dourados é um símbolo de sua majestade e o azul do manto é o da pureza a ela atribuída, sua virgindade.

Ao lado, inseri outra imagem, visualmente mais bem apresentada, vendida em lojas de artigos religiosos e em vários sites, inclusive no popular Magazine Luiza.


                

De acordo com a explicação religiosa cristã, os “nós” são os problemas e dificuldades do nosso dia a dia. As orações, pedidos e promessas fazem parte desse lado da fé, acreditando que a Santa desate os nós de seus “aperreios”, inclusive os financeiros. No sistema capitalista em que vivemos, de custos e trocas, essa prática é comum, estendendo-se a outros santos católicos, mediadores da fé. Nesse caso, qualquer forma idealizada – variante – tende a se tornar universal, a reencontrar o arquétipo. Hierofania ou teofania, vive pela manifestação do sagrado. A fé que traz significado para a existência.

Para finalizar, trazer ao contexto o título desta apresentação, a ilustração e as epígrafes selecionadas, do ponto de vista geral, simbólico, como o religioso das escrituras bíblicas e a reflexão na própria filosofia. A cultura vista como uma teia de significações trançada pelo próprio homem ou, ainda, como um conjunto de estruturas de sentido. As amarras e tessituras nesse amálgama onde tentamos entender propósitos existenciais e responder ao fundamento de nossas vidas tão precárias.

Elisabet Gonçalves Moreira

Petrolina, fevereiro de 2024.

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS DE CONSULTA

Bíblia Sagrada. São Paulo: Edições Paulinas, 1971.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo, Martins Fontes, 1996.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. p.15

CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.

Documentos eletrônicos, via web:

·         https://pt.wikipedia.org/wiki/Nossa_Senhora_Desatadora_dos_N%C3%B3s

                              Acesso em 23 de outubro de 2023

·         https://cruzterrasanta.com.br/historia-de-nossa-senhora-desatadora-dos-nos/35/102/

                     Acesso em 30 de outubro de 2023.

·         https://www.thisiscolossal.com/2024/02/moonassi-murmures/

               Acesso em 27 de fevereiro de 2024










[1] O livro citado, disponível em pdf, tem o mesmo título, mas em outra tradução, da COLEÇÃO Artes e Letras / Arcádia (Lisboa: Arcádia, 1979). Inclusive o capítulo III denomina-se - O «Deus Ligador» e o Simbolismo dos nós”.


             


2 comentários:

  1. Bet, vc como sempre desatando os nós do imaginário que nos une (ou seriam "separam"?) da realidade. Amei.

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