Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A corista de Tchekhov



 Das muitas coragens neste blog, assumindo uma tradução literária... A tensão crescente neste texto, sua ironia, o revelar da hipocrisia burguesa, tudo o que torna tão admirável Tchekhov em seus contos! Sempre uma leitura preciosa...

 

Traduzido por Elisabet G. Oliveira *
A CORISTA – Anton Tchekhov
 
                Certa vez, quando ela ainda era mais jovem, mais bonita e cantava melhor, estava em sua casa de campo Nicolai Petróvitch Kolpakóv. O calor e a falta de ar eram insuportáveis. Kolpakóv acabara de jantar, tomara uma garrafa de vinho do Porto bastante ordinário e se sentia sem ânimo e indisposto. Ambos, enfastiados, esperavam que passasse o calor, para passear.
                Inesperadamente, alguém tocou na porta de entrada. Kolpakóv, que estava sem a sobrecasaca, olhou interrogador para Pacha.
                - Na certa é o carteiro, ou pode ser uma amiga, disse a cantora.
                Kolpakóv não se acanharia de uma amiga ou do carteiro, mas, por via das dúvidas, apanhou sua roupa e passou para o cômodo vizinho. Pacha correu imediatamente a abrir a porta. Diante dela não se encontrava nem o carteiro, nem uma amiga, mas uma jovem desconhecida, uma bonita mulher.
                A desconhecida estava pálida e respirava com dificuldade, como se tivesse subido uma alta escada.
                - O que a senhora deseja? – perguntou Pacha.
                A mulher não respondeu logo. Deu um passo à frente, examinou a sala devagar e sentou-se, como se não pudesse ficar de pé, de tão cansada ou indisposta. Em seguida, moveu os lábios durante muito tempo, mas não conseguia pronunciar nada.
                - Meu marido está aqui? – perguntou ela afinal, e ergueu para Pacha seus grandes olhos chorosos.
                - Que marido? – sussurrou Pacha, e, de repente, se assustou de tal maneira que suas mãos e pés esfriaram. – Qual marido? – repetiu ela.
                - Meu marido... Nicolai Petróvitch Kolpakóv.
                - Não... não, eu... eu não conheço nenhum marido.
                Ficaram um minuto em silêncio. A desconhecida, por várias vezes, levou o lenço aos lábios pálidos e, para vencer o tremor íntimo, continha a respiração. Pacha estava parada, diante dela, imóvel, e a contemplava com perplexidade e receio.
                - Então, você me diz que ele não está aqui? Perguntou a dama, já com a voz firme e um sorriso estranho.
                - Eu... eu não sei de quem a senhora pergunta.
                - Você é má, vil, infame... – sussurrou a desconhecida com ódio e repugnância. – Sim, sim... você é má. Estou muito, mas muito contente porque finalmente posso dizer-lhe isto!
                Pacha sentiu que ela causava a esta dama de vestido negro, olhos zangados, brancos e finos dedos, a impressão de algo asqueroso e indecente, e se sentiu envergonhada de suas faces cheias e vermelhas e de sua franja na testa. Parecia-lhe que se fosse magra, menos empoada e sem franjas, não seria tão terrível nem vergonhoso ficar diante desta dama desconhecida e misteriosa.
                - Onde está meu marido? – continuou a senhora. – Aliás, esteja ele aqui ou não, para mim tanto faz, mas devo lhe dizer que descobriram um desfalque e Nicolai Petróvitch está sendo procurado... Querem prendê-lo. Veja só o que você fez!
                A dama levantou-se e, muito perturbada, passeou pela sala. Pacha olhava para ela e, de medo, não entendia nada.
                - Hoje mesmo vão encontrá-lo e prendê-lo, - disse a dama, e soluçou; e, neste som, ouviam-se ofensa e despeito. – Eu sei quem é culpado disto. Malvada, infame! Escute mulher ruim!... Eu sou impotente, você é mais forte do que eu, mas Deus tudo vê! Ele a castigará por cada uma das minhas lágrimas, por cada noite de insônia! Chegará o dia em que você vai se lembrar de mim!
                A dama passeava pela sala estalando os dedos, enquanto Pacha ainda olhava para ela perplexa, sem entender e esperando algo terrível.
                - Mas, eu não sei de nada! – falou, e de repente começou a chorar.
                - Você mente! – gritou a dama olhando para ela com rancor. – Eu sei de tudo! Há muito tempo já a conheço! Sei que no último mês ele veio a sua casa todos os dias!
                - Sim. E daí? À minha casa vêm muitas visitas, mas nunca obriguei ninguém a vir.
                - Eu lhe digo, descobriu-se um desfalque! Ele esbanjou dinheiro alheio! Por uma... como você, por sua causa ele se decidiu por um crime... Escute, disse a dama decidida. – Você vive para quê? Você vive para fazer mal, mas não se pode pensar que não lhe tenha sobrado sequer um pouco de sentimento humano! Ele tem esposa, filhos... Se o condenam e o deportam, então eu e as crianças morremos de fome... Compreenda isto! No entanto, há uma possibilidade de salvar a ele e a nós da miséria e da desonra. Se eu, hoje, devolver os 900 rublos, o deixarão tranquilo. Somente 900 rublos!
                - Como, 900 rublos? – perguntou Pacha em voz baixa. Eu... eu não sei... Eu não peguei...
                - Eu não lhe peço os 900 rublos... você não tem dinheiro, e eu não preciso de seu dinheiro. Não é isto que peço... Os homens geralmente costumam presentear com jóias mulheres como você. Devolva-me, pois, somente as jóias com que meu marido a presenteou.
                - Mas ele não me deu nenhuma jóia! – gritou Pacha. Finalmente começava a entender.
                - Onde está então o dinheiro? Ele esbanjou o dinheiro que era dele, o meu e o dos outros... Eu lhe peço! Estava indignada e lhe disse muitas coisas desagradáveis, mas lhe peço desculpas. Você deve me odiar, eu sei, mas se for capaz de sentir compaixão, rogo-lhe, devolva-me as jóias!
                - Eu as daria com prazer, - disse Pacha e encolheu os ombros. – Mas, juro que ele não me deu nada. Acredite. Aliás, é verdade, - e a cantora perturbou-se – ele me deu duas jóias. Pois não, posso devolvê-las se quiser...
                Pacha abriu uma das gavetas do toucador e tirou dali um bracelete de ouro barato e um delgado anelzinho de rubi.
                - Pois não! – disse ela.
                A mulher ruborizou-se, e seu rosto tremeu. Ofendera-se.
                - O que você me dá? – disse ela. – Não peço esmola, mas aquilo que não lhe pertence... o que você recebeu de meu marido... desse homem fraco e infeliz... Na quinta-feira, quando eu a vi com meu marido no porto, vi que você usava broches e braceletes caros. Por que então me engana?... Pela última vez, eu lhe peço: vai me dar as jóias ou não?
                - Como a senhora é estranha... – disse Pacha. Ela já começava a se ofender. – Asseguro-lhe que, além deste bracelete e anelzinho, nada mais recebi de seu marido. Ele me trazia somente docinhos de marzipã.
                - Docinhos de marzipã... – sorriu com ironia a desconhecida. – Em casa, as crianças não têm o que comer, mas, aqui, docinhos de marzipã. Decididamente, você se nega a devolver as jóias?
                Pacha não respondeu. A dama sentou-se, pensava em alguma coisa.
                - O que fazer agora? – ela deixou escapar.  Se eu não conseguir os 900 rublos, ele estará perdido e eu com as crianças também. Mato-a ou ajoelho-me diante dela?
                Levou o lenço ao rosto e rompeu em soluços.
                - Eu lhe peço! – falou. – Você arruinou e perdeu meu marido, salve-o... Você não tem pena dele, mas, e as crianças... as crianças... Por acaso as crianças têm culpa?
                Pacha imaginou as crianças pequenas, paradas na rua, chorando de fome, e também rompeu em soluços.
                - O que posso fazer? – disse ela. – A senhora diz que eu arruinei Nicolai Petróvitch, mas eu lhe asseguro, não tenho nada dele... Em nosso coro, todas nós vivemos com dificuldades, a pão e água.
                - Eu peço as jóias! Me dê as jóias! Choro... me humilho... Se desejar, me ajoelho a seus pés. Por favor!
                Pacha soltou um gritinho de susto e agitou as mãos. Sentia que essa dama, pálida e bela, se ajoelharia com certeza diante dela, justamente por orgulho.
                - Bem, eu lhe devolvo as jóias! – disse Pacha. – Pois não. No entanto, não foi de Nicolai Petróvitch que as recebi... Foi de outros...
                Pacha abriu a gaveta superior da cômoda, tirou dali um brochinho de brilhantes, um colar de coral, alguns anéis e um bracelete e entregou tudo à dama.
                - Fique com elas se quiser, somente não recebi nada de seu marido. Tome, fique rica! – disse Pacha, ofendida com a ameaça daquela senhora de se ajoelhar na frente dela. – Se a senhora é sua esposa legítima, então, que o segurasse junto a si. Eu não o chamei à minha casa, ele veio sozinho...
                A dama, em meio às lágrimas, examinou as jóias e disse:
                - Isso não é tudo... Estas jóias custam menos de 500 rublos.
                Pacha, com um gesto brusco, atirou fora da cômoda um relógio de ouro, uma cigarreira, abotoaduras, dizendo:
                - E não me ficou mais nada... Reviste, se quiser.
                A intrusa suspirou, tremeram-lhe as mãos quando embrulhou as jóias no lenço e saiu.
                Abriu-se a porta do quarto vizinho e Kolpakóv entrou. Estava pálido e sacudia nervosamente a cabeça, como se, naquele instante, houvesse engolido algo muito amargo. Em seus olhos brilhavam lágrimas.
                - Que jóias você me trouxe? – atacou-o Pacha. – Quando, permita-me perguntar-lhe?
                - Jóias... Jóias... Isto não tem importância! – disse Kolpakóv e sacudiu a cabeça. – Deus meu! Ela chorou aqui, humilhou-se...
                - Eu estou perguntando: que jóias você me trouxe? – gritou Pacha.
                - Deus meu, ela tão orgulhosa, tão pura... quis até ajoelhar-se em frente... em frente de você. E eu a obriguei a fazer isto!...
                Agarrou a cabeça e gemeu:
                - Não, eu nunca me perdoarei por isto! Não me perdoarei! Afaste-se de mim... – gritou ele com repugnância, afastando Pacha de si com as mãos trêmulas. – Ela quis ficar de joelhos e... na frente de quem? Diante de você! Deus meu!
                Vestiu-se rapidamente e saiu.
                Pacha deitou-se e começou a chorar alto. Já sentia pena e mágoa de suas jóias que, sem pensar, entregara. Lembrou-se como, certa vez, três anos antes, sem saber por que, um comerciante lhe batera, e chorou ainda mais alto.


* Tradução feita para avaliação na disciplina Russo IV no curso de Letras da USP – Universidade de São Paulo – em 1968. Elisabet G. Oliveira é o nome de solteira de Elisabet Gonçalves Moreira. A tradução foi um cotejo entre uma tradução do espanhol e o original russo. Boris Schnaiderman, professor, corrigiu e fez o seguinte comentário “Tradução muito boa.” Digitada em outubro de 2014, pela autora da tradução, agora Elisabet Gonçalves Moreira.
 

 

2 comentários:

  1. Esta sua tradução está primorosa, Elisabet. Gostei muito de sua tradução. Anton Tchekhov, esse camarada que sempre buscava conhecer o contexto e ambientação em que os seus personagens iam transitar antes mesmo de escrever a primeira linha de seus textos. Li certa vez em um texto de Boris Schnaidermann, que, segundo este último, Tchekhov buscava conhecer melhor seus personagens, tanto a vida das Pessoas quanto a vida dos animais na natureza, porque ele tinha medo de cometer alguma tolice... Elisabet, quem conhece, reconhece!? Penso que não! Pois acho que há nela coisas ainda a ser desvendadas..."Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!)"...Pouca gente com esse tipo de percepção hoje em dia: pensar num receptor imaginário e ao mesmo tempo convidá-lo para o diálogo. Um ser de escrita o tempo todo se refazendo não com respostas, mas com muitas e muitas perguntas a partir de suas múltiplas subjetivações. Fique com meu abraço e toda a minha admiração. m.t.

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