Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Um caso reaberto


Elisabet Gonçalves Moreira

Queria ter a concisão e o talento de Tchékhov para reabrir este caso, tido como “Um Caso Encerrado” por meu ex-professor Boris Schnaiderman[1]. Sim, porque o texto de Boris no livro “O mundo coberto de jovens” funciona como um conto de Tchékhov, dado que, naquela noite em que a repressão policial bateu na nossa sala de aula, na Universidade de São Paulo, em 1969, estávamos analisando um conto de Tchékhov.  E ele estava impregnado do poder da literatura que a reviveu ao narrar o fato.

Éramos então poucos alunos do curso de Russo e tínhamos aula à noite numa sala pequena, em torno de uma mesa, no prédio de História e Geografia. A recordação dessa noite foi tão forte que Boris Shnaiderman inicia seu texto remetendo àquela aula que ficou também em minha memória, porque ali estava e fui testemunha.

“Uma das lembranças mais gratas da minha atuação como professor de Língua e Literatura Russas da Universidade de São Paulo liga-se a momentos que passei estudando com os alunos o conto “Brincadeirinha”[2], de Tchékhov. (...) Eu ia pensando nesses e em outros exemplos, parado, giz na mão, diante da lousa com o trecho escrito em russo. Mas, quando estava tão embevecido com meus exemplos literários e os alunos também (estávamos, pois, naquele momento ótimo da transmissão de um texto), ouvi alguém bater à porta, nos fundos do prédio de História, na Cidade Universitária, onde tínhamos aquelas aulas, e que permanecia sempre fechada.
Contrariado por esta interrupção, pedi a um dos alunos que abrisse aquela porta. Apareceram, então, dois indivíduos de paletó e gravata, cada um com um revólver grande na cintura.”

Pediram nossos documentos de identidade, mas o Boris, irritado, fez, como ele mesmo diz, “um discurso violento” e foi levado preso, depois que chamaram outros policiais, incluindo um com uma vistosa metralhadora.

Mas de que me lembro com nitidez foi a ousadia do Boris – e ele não se lembrou disso – ao se dirigir para os policiais que entraram que “respeitassem a autonomia universitária”,  como se isso fosse possível. Ele estava mesmo zangado pois balançou o dedo na cara do policial. Claro que a coisa não poderia acabar bem... O cara da metralhadora pegou a carteira de identidade e disse ironicamente “Só podia ser russo”... embora o professor fosse naturalizado brasileiro. Naqueles tempos de ditadura militar russo era um palavrão, sinônimo de comunista e perigoso para o sistema.
No ponto de vista do relato de Boris, acompanhamos a cena com suspense. E suspense vivemos nós, alunos assustados naqueles tempos de terror.

Levaram o nosso professor e nos deram ordens para ficarmos encostados à parede, com os braços erguidos. Fizeram uma revista, tocando em nossos corpos, mais do que deveriam. Éramos poucos, não me lembro bem, mas não chegávamos a dez pessoas, a maioria moças. Como eu, então com 23 anos.

Disseram que não saíssemos dali. Não podíamos ver o que acontecia, pois a sala era pequena. Mas dispararam um tiro.  Havia duas grandes rampas de acesso ao andar superior do prédio e realmente isso impedia a visão. Pronto, pensamos, mataram o Boris...

E aí aconteceu um fato: ainda com as mãos na parede, sentimos um cheiro esquisito. Uma das moças havia urinado nas calças ou talvez até se sujado. Então soube que isso, sim, era possível, “cagar de medo”.

Mas o medo foi dando lugar ao que havia de ser feito. Havia silêncio, já era tarde, depois de 10 da noite, e saímos da sala. Preocupados, soubemos que o Boris estava vivo e fora levado para o Dops, o temível Departamento de Ordem Política e Social, perto da Estação da Luz.

Então decidimos, nosso pequeno grupo, ir até a casa de Boris para avisar Regina, sua esposa. Já não havia mais ônibus neste horário e fomos bem apertados num fusquinha de uma das colegas até o bairro de Santa Cecília. Lembro-me que eu estava com o coração aos pulos, com as emoções daquelas últimas horas. Porque o medo continuava, sabíamos que podiam torturar e matar no Dops, notícias de todos os dias, mesmo a boca pequena.

Subimos até o apartamento do professor. Regina nos atendeu e, às vezes, agora, tenho até vontade de rir, porque a reação dela foi exatamente o oposto do que se esperava. Ela ficou muito brava, disse coisas que “esse Boris não tem jeito”. Míriam e Carlos, seus filhos, apareceram sonolentos. Mas Regina disse que ia avisar algumas pessoas, incluindo Dom Paulo Evaristo Arns e, se me lembro bem, Gofredo da Silva Teles, advogado. Nomes que tiveram lugar na denúncia das arbitrariedades policiais e repressivas da época.

Um pouco mais tranquilos, voltamos para nossas casas.
O resto daquela noite, o Boris nos relata, assim como Aurora Fornoni Bernardini, também amiga, em seu Discurso de Saudação na Outorga do Título de Professor Emérito a Boris Schnairderman, pela Universidade de São Paulo, em 2001, que eu guardo, entre muitos outros materiais e livros que o Boris me enviou, morando eu em Petrolina, desde 1976. Boris voltou para casa “são e salvo” como soubemos depois, após sua prisão.

“Em todo caso, assim se encerrava mais um capítulo de minha relação com as autoridades constituídas.” Parágrafo final de seu relato.






[1] Depoimento/conto/causo no livro Um mundo coberto de jovens/organização Benjamin Abdala Júnior. São Paulo: Com-Arte, 2016. “Um Caso Encerrado” de Boris Schnaiderman, p. 41-47.
[2] Este conto pode ser lido on line com o nome Brincadeira, sem indicar a tradução. http://www.baratosdaribeiro.com.br/clubedaleitura/2009/01/15/%E2%80%9Ca-brincadeira%E2%80%9D-de-tchekov/
Impresso em livro:
Kaschtanka E Outras Histórias De Tchekhov – tradução de Boris Schnaiderman e Tatiana Belinky.
São Paulo: Boa Companhia, 2014.

Na foto abaixo, Boris (1917-2016) e eu, em setembro de 2010, em seu apartamento em São Paulo. 41 anos depois deste fato. Uma amizade que atravessou décadas. Um carinho e lembranças que reabrem memórias...

                                         

2 comentários:

  1. Elisabet
    Li seu belo texto Um Caso Reaberto e gostei de “ver” a Literatura deixando inseguros os “homens da segurança”.
    Hélio de Araújo

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    1. Obrigada Hélio... acho que precisamos, nestes tempos de fascismo, relembrar o que passamos e podemos passar...

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