Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

É possível existir crítica literária num curso de Letras?

 


Há alguns dias assisti a um filme, Capitão Fantástico, de 2016. Em síntese, é a história de uma família, cujo pai vivia isolado com seus filhos, adolescentes e crianças, ensinando-lhes, longe da tecnologia, uma sobrevivência que ele achava essencial. Mas aconteceu uma cena e um diálogo que me chamaram a atenção e abro nossa discussão aqui. 

 O pai, ele mesmo, intelectual, indicava leituras, geralmente os clássicos, que eram discutidos em comum. A certo instante, o pai pergunta para a filha sobre o livro Lolita de Nabokov e a menina respondeu que o livro era interessante. O pai deu-lhe uma bronca. “Interessante não significa nada, diga por que é interessante...” Fiquei pensando no livro Lolita, tão criticado, pois as referências quase sempre ficam focadas na dualidade sexual do homem mais velho e uma adolescente, nos aspectos morais, sem questionar o foco narrativo e outros procedimentos literários. Interessante não? 

Essa nossa superficialidade nas respostas, acredito, é também uma forma sutil de nos eximirmos de comprometimentos, sejam pessoais, sociais e políticos. Imagine um professor em sala de aula “ensinando Literatura”. Existe realmente essa possibilidade? 

Certa vez uma de minhas filhas, cursando o segundo grau, me perguntou e mostrou o poema de Carlos Drummond de Andrade. Isso é poesia? Isso é literatura? A professora de Teoria Literária estava sendo testada dentro de casa... Ela ouviu atenta minha justificativa, mas me olhava de soslaio. 

 No meio do caminho 
No meio do caminho tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. 

Nunca me esquecerei desse acontecimento 
na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
no meio do caminho tinha uma pedra. 

“Alguma poesia” havia ali, as pedras que encontramos dia a dia nos levam a um posicionamento teórico, mas também de juízo, de gosto, de leituras em diálogos múltiplos. Ah, se isso fosse ensinado desde sempre, talvez houvesse mais olhares diferenciados sobre o que é a poesia. Desafios da própria educação. 

Não existe resposta fácil, nem receita pronta, bem o sabemos. A história da literatura, das teorias e formulações mostram a variada gama de aspectos e leituras possíveis. O cânone literário, as obras clássicas já respondem por si. Será mesmo? Por que não questionamos mais? 

E que dizer da literatura contemporânea, da imensa variedade de modos e linguagens, do autor local, ansioso por ser reconhecido, ou de nossos alunos produtores de textos? Vivemos num mundo essencialmente digital, onde as produções são acessadas de imediato, comentários e clics de gostei ou curti. E os pdf viraram uma praga, facilitam por um lado, como a grande enciclopédia (lembram-se da Barsa ou da Caldas Aulete?) mas levam a um entorpecimento da pesquisa e do questionamento. Assunto para outro possível debate. 

A gente recebe elogios, mas já fui muito criticada por meus posicionamentos; um ex aluno chegou a me escrever uma carta dizendo que eu tinha “acabado com sua vida” pois seu maior sonho era ser poeta. Esse aluno havia plagiado textos e eu, ainda bem, reconheci. Confesso que fiquei chateada, mas ao mesmo tempo fiquei pensando em como gostamos de aplausos, aprovação. A situação do professor, como orientador, fica ainda mais delicada. É preciso, sim, criticar, mas sem destruir. Talvez um discurso polido ajude... ou não? Vale a pena incentivar quem não tem o talento ou é apenas um principiante querendo uma opinião e podendo melhorar mais tarde? 

Isso me lembra meu mestre, Boris Schnaiderman, escritor e tradutor, que, num encontro informal, ao abrir a correspondência que lhe chegara, nela havia um livro de poesia. Rapidamente ele folheou e, enquanto lia alguns versos, abanava a cabeça e comentou. “Não, isso não é poesia. E não devemos fazer concessão à poesia”. Essa frase categórica muito me marcou e já a usei inclusive... para desgosto de muitos. 

Em visita a Boris Schnaiderman em São Paulo, 2005.

Quando cheguei a Petrolina, em 1976, fui convidada, quase de imediato, para dar aulas na FFPP, Faculdade de Formação de Professores de Petrolina, então uma faculdade isolada, sem ligação com a hoje respeitada UPE, Universidade de Pernambuco. Formada em Letras pela USP, Universidade de São Paulo, devo ter causado mesmo uma grande expectativa. Durante anos somente um professor da área de Biologia tinha pós graduação e eu finalmente obtivera o título de Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada também pela USP. Hoje, vejo tantos mestres e doutores na cidade, quanta diferença! 

Em decorrência disto, há outro fato que gosto de recordar. Antônio de Santana Padilha, um dos escritores da cidade, com a maior obra publicada, também era meu vizinho na pequena Petrolina do início dos anos 80. Ele foi até minha casa, levou suas obras, mesmo algumas inéditas, e me pediu para que eu as lesse e desse uma opinião sincera, pois até agora só ouvia elogios. Outra frase que me impactou, “aqui grassa o elogio fácil”. Por ter usado essa frase em outras situações, me “apedrejaram” metaforicamente. 

Quem conhece meu trabalho, principalmente a Antologia “Poética Ribeirinha”, sabe que reunir e comentar autores locais não é nada simples. Sim, fiz algumas concessões... Inclusive essa antologia merece uma crítica mais atualizada. Já fizeram, mas não vou entrar em detalhes neste momento. 

Então, é possível existir crítica literária num curso de graduação em Letras? 

Isso implica várias diretrizes. Acho que é possível sim, mas numa experimentação gradativa de leitura, análise, comparação e interpretação de textos. Sem leituras completas, de mergulho na obra literária, não vejo solução. 

Existe uma metodologia para facilitar a vida do professor universitário neste sentido? Não, não existe metodologia possível. O conhecimento é dinâmico e está sempre nos desafiando... Apesar de que há muita pseudo teoria para tudo; retomam-se ideias de outros, dão lhe novos nomes e ai de você se não souber ou citar o teórico do momento. Ainda que isso não funcione na sala de aula comum, acontece de roldão nos meios universitários de tantos pós, docs e pós docs... Até levei um susto quando ouvi falar, há algum tempo, de Bauman, Slavoj Žižek e outros que me esqueci. Muita coisa se liquefaz, certamente. 

Já estou delimitando um tipo de professor, universitário, que tem como aluno o futuro professor do ensino fundamental. Um futuro “amarrado” a seguir manuais, regras, parâmetros curriculares, todas essas limitações que nos deixam sem o prazer essencial de compartilharmos aquilo de que mais gostamos na literatura, o entusiasmo, o sentir, o emocionar. Tudo acaba em cumprir o programa, as ementas, uma castração sem saída muitas vezes. Mas é possível driblar isso com nosso próprio exemplo. 

E eu tenho até uma boa biblioteca, leio muito, sempre estudando. Não só na área de Letras, mas de história, de antropologia, de política. Impossível saber de tudo. Há muitos anos li uma crônica que me fez muito bem e amenizou a ansiedade. “O leitor moderno é o mais incompleto da história”. Publicada em fevereiro de 1991. 

“Pois, se bastavam ao grego antigo a “Ilíada” e a “Odisseia”, aos judeus a “Torá” e seus comentários, aos cristãos a “Bíblia” e obras devocionais, ao iluminista a “Enciclopédia” e os clássicos, ao homem culto oitocentista um conjunto restrito de obras-primas e seus complementos, o verdadeiro leitor moderno está proibido de se esquivar do interesse por tudo que já foi ou está sendo escrito. 

Além do fato trivial de que se escreve mais e mais, a cada dia um arqueólogo descobre um novo papiro antigo no deserto ou decifra os caracteres de uma língua extinta, um sinólogo traduz outro clássico para um idioma acessível, especialistas reavaliam culturas distantes ou esquecidas, bibliotecários localizam um manuscrito perdido, a KGB abre mais um arquivo, críticos literários de verdade recolocam em circulação um autor injustamente excluído dos cânones. Em outras palavras, o leitor verdadeiramente moderno está condenado a ser o mais incompleto de toda a história.” (grifo meu) (http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_09fev1991.htm) 

Nesta incompletude, nesta limitação do saber, ter consciência de nossa ignorância, não é um “defeito”, mas a base para o abandono da opinião (doxa) e a busca pelo conhecimento verdadeiro (epistéme), objetivo da filosofia, enfim, de todo o saber. Na literatura não pretendo “desconstruir” um texto, ao contrário, construir uma percepção aprofundada de sua essência artística, de subterfúgios, de silêncios. Um jogo em desafio. 

Não quero, neste pequeno artigo, buscar citações e referências... um depoimento mais que tudo. Talvez a indicação de uma práxis, se isso for viável. Mas um posicionamento fica entranhado. 

O formalismo russo, da primeira metade do século XX, que chegou a nós, nos anos 70 e 80, muito me influenciou. Fui aluna e orientanda de Boris Schnaiderman, como já disse, e discutíamos em sala de aula autores ainda nem traduzidos aqui. Por exemplo, Bakhtin e Jakobson, que li ainda em francês. Do formalismo, veio seu derivado, o estruturalismo em diversas nuances. A base de uma crítica literária está ali, reitero. Vejo muita desinformação e até mesmo preconceito em relação a estes estudos. 

Por exemplo, um aluno da Uneb, estudioso, sem dúvidas brilhante, fez uma monografia sobre o Clube Drummoniano de Poesia do qual participei e fez história na região, nos anos 80. No segundo número da revista do Clube, eu havia publicado uma análise de um texto do poeta Murilo Mendes, que fizera parte de minha dissertação de mestrado. Sinceramente, eu gosto daquela análise e das descobertas, verdadeiras iluminações, que acontecem quando o texto também nos desafia. Senti ironia do aluno ao comentar, não a análise em si, mas o “método”, certo “estruturalismo dos anos 70”. 

Aliás, no prefácio do romance Pedro e Lina, de Antônio de Santana Padilha, também fiz uma análise na mesma linha. Reconheço que pode haver excessos em qualquer estudo onde se privilegie o método – ou uma linha teórica - e não a obra em si. Há alguns livros e estudos de críticos famosos que analisaram obras reconhecidamente “menores”, mas que se adaptavam à metodologia demonstrada. A complexidade das grandes obras não é exercício para amadores ou para pontos de vista de fora para dentro. E essas obras estarão sempre a nos desafiar, inesgotáveis. 

Crítica a partir do próprio texto, portanto, uma análise imanente, detalhada em sua linguagem e não mais a crítica impressionista ou a crítica trazida de outros parâmetros, como a história ou a sociologia. Essa atitude é o princípio. Inclusive tenho me dedicado bastante à Semiótica, à leitura sígnica, explícita ou no subtexto. Já havia me envolvido com a Linguística e elas andam a par. E, lição fundamental, diálogos possíveis, tudo tem significado na representação que perfaz o texto literário, artístico. Nada mais é compartimentado, encerrado numa visão única, em certo momento. Sem ser arrogante, claro que já sabemos disso, da pluralidade significativa de um texto artístico. Aplicamos? 

A propósito, certa vez discuti com meu orientador sobre a importância da biografia do autor na literatura. Isso me parecia secundário, tão enfronhada estava na linguagem do texto, mas vemos que, mesmo partindo da essência textual, a obra sofre as influências da vida de seu autor, de seu momento histórico, de sua localização geográfica etc. etc. Como não perceber isso no aprofundamento crítico de um Machado de Assis? Hoje “reconfigurado” como negro em suas fotos, um senhor tão distinto, certamente uma releitura de seus textos terá outra aproximação. A ironia machadiana está além de sua pose... 

Ultimamente tenho lido e relido muitos autores russos. Anton Tchekhov e Dostoiévski, entre outros, têm me mostrado essa aproximação com mais propriedade. Poderia dar exemplos, mas não é o caso agora. Aliás, eu acho que os professores de literatura (e fiz isso) devem trabalhar autores da literatura universal, fazer comparações e referências que motivem a procura por outras obras. Lembro-me que, no IF Sertão, em aulas para o segundo grau, lemos Os meninos da rua Paulo, do escritor húngaro Ferenc Molnár, comparamos com o filme e foram feitos trabalhos em várias linguagens a partir dessa leitura, com o auxílio também dos outros professores da área. Foi um sucesso. Na Faculdade, levei muitos autores locais para falarem de suas obras, analisamos algumas e a alegria por esse reconhecimento também me contagiou. Enfim, ter coragem de abrir o leque de leituras, além das ementas e programas. O ganho é muito maior do que se possa imaginar. Talvez eu esteja dizendo o que todos sabem e praticam, mas este texto é também um relato de posicionamento. 

Somente mais um detalhe. Quantas vezes acontece de nos surpreendemos com a visão dos alunos, seja em sua falta de motivação, seja em suas opiniões sinceras... claro que um aluno de graduação dificilmente faria uma análise acadêmica para publicação numa revista especializada, mas é capaz, sim, de dizer coisas que muitas vezes não percebemos, cristalizados que estamos em determinados parâmetros. E essas “sacudidas” são bastante salutares para não sermos “donos da verdade”. 

Reconheço, no entanto  – e isso me incomoda - que dominam textos fracos, muitos clichês e mediocridade... seja na produção literária, seja numa pretendida crítica. Grassa ainda o elogio fácil ou a falta de coragem para o que realmente deve ser dito, então se aplainam as arestas, e, lugar comum, tudo fica bem, menos a literatura e sua verdade. 

 ...oooOooo... 

Maiakóvski tem um poema Hino ao crítico do qual transcrevo aqui a última estrofe para complementar questionamentos. Afinal, temos mesmo uma missão? Ser crítico literário é crível? Muito sarcasmo para quem não é autor, não é poeta... 

“Escritores, há muitos. Juntem um milhar. 
E ergamos em Nice um asilo para os críticos. 
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar 
A nossa roupa branca nos artigos?” (tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman) 


 Uma indicação de última hora ocorreu-me: o livro Na sala de aula, de Antônio Cândido (S.Paulo: Ática, 1984). Fui sua aluna e assisti à aula em que ele analisou o poema O rondó dos cavalinhos de Manuel Bandeira e, no livro, a análise tem o título de Carrossel. Alguns privilégios tive que, minha memória, nestes últimos anos, tem surgido com outros significados. 

7 comentários:

  1. BET
    Gostei muito do que li acima. Algo muito interessante para conversar vis a vis. Você formou-se em "Letras". O meu curso foi de Letras Anglo Germânicas. Leitura: Ontem recebi quatro livros. Precisarei de uma lonnnnga pandemia para dar conta deles. "O Grande Livro dos Mistérios Antigos", de Peter James e Nick Thorpe tem 703 páginas. Que tal? Espero que - apesar dos atuais pesares - você esteja muito bem! Liliana

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  2. Querida Liliana, temos muito em comum... Sim, vamos lendo e trocando palavras, mesmo virtuais, um prazer, não um pesar... E, boas leituras! Imagino que esse livro dos mistérios antigos seja mesmo intrigante! Abraço da Bet

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  3. Querida Bet, me curvo ao ler seus escritos. Ajoelhar-me ao reverenciá- Los significa o quanto aprendo . Que as novas gerações possam ler mais e compreender para assim valorizar a riqueza que é o universo da literatura. Gratidão por me oportunizar reconhecer minhas fragilidades neste campo me convidando inclusive a te ler mais. Abraço de Sida.

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  4. Não tão desconhecida amiga... Sida que manda um abraço e uma opinião que parece vassalagem! Agradeço, mas não é isso, é o olhar crítico e estudioso que propago; sim, as novas gerações precisam ir além das mídias eletrônicas. Obrigada. Espero vc mais vezes por aqui. Abraço retribuído

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  5. Bet, achei interessante a sua ponderação. Observo que a crítica literária contemporânea está muito superficial.

    Nas críticas de jornais e revistas (não acadêmicas), o cenário é ainda mais grave. Observo que os colunistas são muitas vezes amigos dos escritores ou tradutores e a análise fica muito enviesada. Ao mesmo tempo, com as redes sociais, um bom marketing pode deixar um livro razoável com status de excelente. Sem falar nos prêmios literários e seus jurados...

    Obrigada pelas reflexões!

    Beijos,

    Solange Cunha

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  6. OLá Solange Cunha, obrigada pelo retorno. Concordo com vc, aliás, existe crítica???

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  7. Sobre o título, acho que não se trata de possibilidade, mas sim, de necessidade. Considero imprescindível tentar se desenvolver a perspectiva analítica do olhar sobre a literatura. Isso porque, como lembrou Solange A, o compadrio vem imperando, por conta do corporativismo, quando não o clientelismo, pelas relações capitalistas.

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