Elisabet Gonçalves Moreira
“Quando as estrelas nascem e quando morrem, elas emitem radiação UV. Se
víssemos o céu noturno somente com a luz ultravioleta, quase todas as estrelas
iriam desaparecer e só iríamos ver nascimentos e mortes espetaculares. ”
Stephen Hawking
“Eu vos direi
"Amei para entendê-lasPois só quem ama pode ter ouvidos
Capaz de ouvir e entender as estrelas." Olavo Bilac
Neste maio de 2016, um
alvoroço em minha vida, quase uma estrela... Depois de ser apresentada como
crítica literária, um jargão em alguns eventos, também me atrevo – e gosto
muito disso – em fazer crítica de cinema... no caso, a partir do convite de
Chico Egídio, na dinâmica de seu exitoso projeto de cineclube no espaço Janela
353, para fazer a mediação do debate após exibição do filme A HORA DA ESTRELA, de Suzana Amaral. O
desafio antecipava dois pontos básicos: “Mostra Brasil Mulher” no mês de maio,
filmes nacionais de mulheres ou sobre mulheres e o fato de o filme ser uma
produção baseada no livro A HORA DA
ESTRELA, de Clarice Lispector.
Pensei em várias
possibilidades, começando por comparar o livro com o filme, a adaptação para
outra linguagem, pois muitos alunos e professores acreditam que basta ver o
filme para dispensar a leitura do livro. Afinal, em quase duas horas de filme,
com o olhar focado na tela, acompanhando a dinâmica das imagens e diálogos,
fruímos de um ato que pode se tornar mais atraente do que a leitura, porquanto se
daria em outro tipo de uso do tempo e da concentração. Observo que isso
acontece não só por comodismo, mas também porque as propostas curriculares atuais
se tornaram um arremedo do prazer da leitura, impondo leituras obrigatórias para
vestibulares e exames do ensino fundamental, num mundo competitivo e de excesso
de informações. Uma discussão que, didática e pedagogicamente, pode render
bastante.
No entanto, a mediação
para a qual fora convidada, era justamente um debate sobre o filme e não uma aula convencional. Foi
interessante também perguntar no debate sobre quem havia lido o livro e, no
conjunto, apenas três pessoas responderam sim, por causa da obrigatoriedade no
ensino médio. Portanto, esse aspecto livro/filme foi mais citado do que
estudado. Embora eu – e também a crítica em geral – ateste que a cineasta
conseguiu, no filme, a essência da Macabéa, referência fundamental da
narrativa. Os problemas existenciais da personagem imbricam e dialogam na
questão social, de nosso país. Mesmo com diferenças significativas, observamos
a recriação da linguagem cinematográfica, entrecruzando outras mediações em sua
multiplicidade de signos.
Ressalto a fala do
cineasta Jorge Furtado que, inclusive, fez uma adaptação de A Hora da Estrela para a tv. Deixou “registrado... que as narrativas
audiovisuais, por melhores que sejam, não substituem a importância e o prazer
da leitura. Só a leitura produz escritores e só a leitura produz bons
cineastas. O cinema e a televisão criam imagens, a leitura cria imaginação. ”
http://www.casacinepoa.com.br/as-conexões/textos-sobre-cinema/adaptação-literária
-para-cinema-e-televisã
O filme original é de 1985,
dirigido por Suzana Amaral que também assina o roteiro e uma equipe das várias
linguagens que perfazem uma produção cinematográfica. Entretanto, em 2009, foi
feita uma cópia de restauração do original, a que pude assistir em meu
computador, pelo youtube.com e muito me admirei em verificar, nos créditos, uma
outra grande equipe. Então, a pergunta que fica: qual o filme a que assistimos?
Seria a mesma coisa? Neste 2016, o que, em termos técnicos de cinematografia,
isso representa? Infelizmente, em nosso caso, Chico Egídio projetou o filme
original, bastante prejudicado no aspecto visual, depois de 31 anos! Posso
dizer que as modificações feitas no filme melhoraram muito a qualidade e o
prazer do acompanhamento da montagem. Essa possibilidade técnica não é a mesma
que se aplica ao texto de Clarice Lispector, a obra literária em seu trato
finalizado com a palavra escrita. Essas questões podem ser complexas, se
pensarmos em adaptações e restaurações de filmes antigos, mas é importante ficarmos
atentos pois tudo na obra lhe confere significado. Um caso para ser pensado e
completado em outros desafios.
Portanto, vamos a
alguns itens que abriram e foram complementados no debate.
1.
O filme apresenta uma narrativa linear,
começo, meio e fim, com pequenas epifanias que nos levam ao mundo da protagonista,
Macabéa. A diretora e roteirista Suzana Amaral estudou cinema nos Estados
Unidos e declarou que foi só a partir da leitura do livro de Clarice que se deu
conta da situação da classe social proletária no Brasil e fez o filme. Associo
também aqui a referência dolorosa de Clarice, em sua última entrevista para a
TV Cultura, para a “inocência pisada”, a “miséria anônima” de sua personagem.
Neste caso, A HORA DA ESTRELA, o filme, atinge o objetivo geral de mostrar o
Brasil pela mulher, ou a mulher brasileira, aqui representada?
Sim, foi a resposta geral. A questão de gênero, no contraponto
Macabéa em sua ingenuidade passiva e Olímpico, o namorado grosseiro e machista,
é evidente. Esclarecedor foi também o comentário de uma participante, natural
de Cajazeiras, na Paraíba, terra de Marcelia Cartaxo, a atriz que representa
Macabéa, ao afirmar que, ainda hoje, ela conhece muitas Macabéas, sempre
esperando da vida sua “hora da estrela”, sem se dar conta do mundo real e
desmistificador deste sonho pueril e habitado no imaginário de tantas mulheres.
"Te dou um Céu
Cheio de Estrelas
Feitas com caneta bic
Num papel de Pão."
Zeca BaleiroCheio de Estrelas
Feitas com caneta bic
Num papel de Pão."
2. Sigo
dois postulados básicos: o da análise imanente da obra, partindo de seu
funcionamento interno e o de que “nenhuma análise esgota um verdadeiro texto
artístico”, seja um livro ou um filme e como eles dialogam com a realidade e a
representação. Assim, sempre que vejo um filme, observo com atenção o uso das metáforas, onde elas funcionam como
leituras subjetivas e criativas do diretor ou da montagem. E como a ideologia está
aí, presente ou subjacente nestas escolhas. O olhar do receptor é fundamental
nesta interação.
“No que se refere à
criação cinematográfica, as metáforas podem estar inscritas em cada plano por
meio de símbolos de conotações distintas; sendo assim é necessário entender
primeiro seu significado individual para depois compreender o sentido completo
do filme. A metáfora, ao conotar algo diferente daquilo que ela denota,
pertence ao tipo de mecanismos que se usa na literatura e no cinema para levar
ao leitor e ao espectador um nível de significação não primária. Um elemento
pode ser metafórico ou não dependendo do quadro no qual se insere, e, no caso
do cinema, no plano. ”
Estefania Cano Reyes, La metáfora en el
cine.
https://cafecin.wordpress.com/2012/12/01/la-metafora-en-el-cine-por-estefania-cano-reyes/
3. Sobre
o significado dos nomes próprios e seus respectivos personagens. Macabéa, um feminino de Macabeus, do
Antigo Testamento bíblico, que conta a história e libertação dos judeus depois da
conquista de Alexandre, cognominado o Grande; os judeus, numa sequência de
lutas e conquistas, tiveram a liberdade religiosa cerceada, assim como a
heroína do romance e do filme, uma sobrevivente num mundo opressor que limita
sua liberdade de se entender como gente, até mesmo de existir. Seria Macabéa a
metáfora do momento? Olímpico: um nordestino de físico nada
atlético, esperto, o índio guerreiro, sua grossura, seu machismo revoltante (e
que não revolta Macabéa, sempre passiva); Glória,
“galega de farmácia”, qual a sua glória? Observar que ela faz um
contraponto de tipo de mulher, sempre bem pintada e arrumada, com a desajeitada
Macabéa. Mesmo que ela também acabe sempre perdendo em sua vida amorosa.
4. Outros
personagens: a cartomante: ex-prostituta
que sabe tudo da vida, do passado e do futuro, antecipando o final da ingênua
Macabéa que sorri esperançosa (não posso deixar de fazer uma associação
evidente com o conto A cartomante de
Machado de Assis); as colegas de quarto,
vidas da periferia, quais os sonhos e o futuro destas moças? E os homens? Detêm
o poder? Detêm o poder, mas esse não
pertence aos pobres, aos oprimidos, todos perdedores. Basta lembrar o sonho de Olímpico
em ser deputado e o seu discurso, aplaudido somente por uma moradora de rua.
5. Aliás,
analisar Macabéa, nossa estrela, é fundamental. A personagem em si, a atriz que
a interpreta, o papel social como mulher e empregada sem qualificação, na
iminência de perder o emprego, sem ninguém na vida, sem família, sem afetos. O
fato de Macabéa “catar milho” na máquina de escrever é uma metáfora forte, não
só de sua incapacidade neste fazer, mas de sua incapacidade de linguagem, de se
comunicar, de querer “ser gente”, sem consciência de si mesma. O fato de ela
gostar de se distrair aos domingos indo ao metrô, nos subterrâneos da cidade
grande, funcionaria como outra metáfora? Sua invisibilidade se manifestaria
neste gosto esdrúxulo?
6. “Rádio
relógio”: Uma ironia, a nos provocar o riso e a reflexão. Ironia que já está no
livro de Clarice, na audição de uma “cultura inútil”, sem sentido, a não ser
curiosidades e clichês, típicos do saber e do senso comum. Será este o propósito para o povo brasileiro
além do elementar? É disto que ele precisa? Faz sentido a mediocridade, também
a periferia do conhecimento?
“É
na sua produção cultural que um povo se reconhece e, se reconhecendo, pode se
transformar”. Jorge Furtado
7. Seguimos
o filme, não com a palavra como no livro, mas com o “olho da câmera”. Então, o que faz
aquele gato em cena? O gato no escritório, zanzando, o close nele comendo o
rato morto, logo após Glória trair Macabéa para tirar seu namorado. Funciona
como metáfora icônica da traição, da esperteza em que o maior come o menor,
fácil de decodificar neste caso. Gosto muito de pensar nestes detalhes, nada
surge de graça. Partes do todo, da dialética dos significados. Até a salsicha saindo do pão em mais de uma
cena, a parede com recortes de revistas perto da cama de Macabéa... Pensar também no destaque ao canto do
bem-te-vi, quando Olímpico posa para a foto e Macabéa observa. Mais do que
efeitos de montagem, observamos “bem-te-vis” nos (des)encontros deste casal
nada bem visto...
8. A
música, acompanhante incidental da maioria das cenas, torna-se reveladora
quando ópera e quando valsa, funcionando como clichês para os sentimentos de
Macabéa, facilitando esse entendimento.
O cinema ainda é uma arte de diversão, de recepção para o “público em
geral”.
No fim, vence
quem: a ideologia do capitalismo, de seus valores, a “hora da estrela” para
Macabéa é a de sua morte como única possibilidade, após o discurso encorajador
da cartomante para um futuro de final feliz. No livro isso é cruel, morre a
palavra; no filme é uma alegoria... Poético nesse voo final daquela Macabéa que
queria apenas ser gente e feliz. Simbólico, como deve ser a poesia em todas as
artes.
“Somos todos viajantes de uma jornada
cósmica - poeira de estrelas, girando e dançando nos torvelinhos e redemoinhos
do infinito. A vida é eterna. Mas suas expressões são efêmeras, momentâneas,
transitórias” . Deepak Chopra
Observação: as citações entre aspas servem não só como referência, mas, sobretudo, como instigadoras de contrapontos e reflexões.