Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sábado, 21 de maio de 2022

MÉTODOS E SEGREDOS DA PESQUISA: DECIFRANDO PISTAS E INTERPRETANTES

 

(Foto de Sílvia Nonata)

                             Um ferro de marcar boi.

Estranhei. Onde as iniciais do dono, semelhança que perfaz a referência lógica, usual e visual?  Esclarecendo: meu interesse por coisas da região onde habito, às margens do rio São Francisco, entre Pernambuco e Bahia, sempre me motivaram. E esse ferro de marcar boi faz parte do acervo histórico e cultural destas margens.

A partir desse estranhamento, como um desafio, o pesquisador – assim me coloco - quer ir além da “mera curiosidade”. E as associações, as coincidências, as leituras vão se projetando, tecendo um produto mais elaborado, uma reflexão, ensaio ou artigo.

Como um detetive, vamos não atrás de um assassino, mas do conhecimento. Estudos relacionados à Semiótica sugerem leituras em interação, pois “A compreensão da cultura como informação determina alguns métodos de pesquisa. Ela permite examinar tanto etapas isoladas da cultura como todo o conjunto de fatos histórico-culturais na qualidade de uma espécie de texto aberto, e aplicar em seu estudo métodos gerais da Semiótica e da Linguística Estrutural”. (LOTMAN, 1979)

Assim, pretendo mostrar alguns exemplos pessoais de como este “texto” nos é dado a ler, se realmente queremos com ele interagir. Espero também associar aqui que o segredo é o desafio e o método é a chave.

Dizem por aí que o vaqueiro cura o boi no rastro... Foi no rastro de pistas e indícios que caminhei e caminho, porque também sei do inacabamento de leituras e interpretações.

Modelos epistemológicos rígidos não conseguem dar conta de certa subjetividade inerente ao processo de pesquisa, seja pela imersão “apaixonada” do pesquisador, seja pelas limitações de uma atitude hipotética-dedutiva ou indutiva tão somente.

Mesmo que a observação e a dedução constituam basicamente o método do detetive, é preciso ressaltar também, que há, muitas vezes, um “elemento sorte” na dedução. As melhores hipóteses para desvendar um crime são obtidas em pormenores, na verdade “em indícios imperceptíveis para a maioria.” (GINZBURG, 1989)

No “caso” dos ferros de marcar boi, primeiramente as investigações foram feitas in loco: vaqueiros, fazendeiros, ferreiros, gente honesta e boa a dar informações. E ferros, muitos ferros, que compõem uma pequena coleção.  Consegui encontrar até uma raridade: o Livro de Registro de “ferros, marcas e signaes” da Villa de Petrolina, dos anos de 1872 e 1873, hoje desaparecido da Biblioteca Municipal do município de Petrolina.

Mas foi a ponte com a literatura que me levou a outros índices de deciframento nesta investigação, cruzando com os dados já recolhidos.  Nós, pesquisadores, devemos ser um atento leitor de signos, uma vez que decifrar o enigma é sair à busca de rastros, é gostar deste percurso e ter o prazer da descoberta.

Ariano Suassuna, no seu romance A PEDRA DO REINO, refere-se ao desenho dos ferros dentro de uma “Heráldica sertaneja” e sua simbologia, repleta de mistérios e elementos mágicos. Segue-se o fragmento de um diálogo esclarecedor:

“...é que, na espádua esquerda de Dom Pedro Sebastião, tinham ferrado, a fogo, um ferro desconhecido e que não é nenhum dos ferros familiares de ferrar boi do Sertão da Paraíba” (...)

- Você ainda se lembra como era o ferro?

- Me lembro como se fosse hoje, Excelência! Era uma espécie de lua, ou melhor, para ser mais fiel à nobre Arte da Heráldica, um crescente, com as pontas viradas para cima e encimado por uma cruz.

(...)- E não havia nenhum sinal do fogo onde esquentaram o ferro?

- Nenhum, Excelência! Eu já não expliquei que no aposento elevado da torre da capela, não havia nada, a não ser o sino?”   

Essa pista, esse sino, representa e simboliza o signo, também adivinha, que invocara Pedro Quaderna um pouco antes: “Para o meu enigma, portanto, só um Decifrador brasileiro e de gênio!” (SUASSUNA, p. 293)

(Observação: desenho feito no Paint para este trabalho, a partir da descrição no livro)

Meia lua e cruz, símbolos muçulmano e cristão, que remetem às batalhas das cruzadas. Um mundo medieval no sertão onde as antigas novelas de cavalaria fazem parte do imaginário de Suassuna. Necessário pensar todo o contexto da obra e podemos “decifrar” este enigma.

Também Guimarães Rosa em A Hora e a Vez de Augusto Matraga “ferra” o seu personagem-título:

“E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca de gado do Major – que soia ser um triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto, medonhos.” (GUIMARÃES ROSA, p. 335/6)

E, coincidentemente, surge na lembrança, um detetive referência: Sherlock Holmes. Sim, em O Vale do Terror, de Conan Doyle, o primeiro morto da história também tem o seu antebraço ferrado com o mesmo sinal usado por Guimarães Rosa. E outras vítimas também aparecem com a marca, ao longo da história.

“O braço direito do morto apresentava-se, até a altura do cotovelo, fora da manga do roupão, no centro do antebraço, um desenho de cor castanha, um triângulo dentro de um círculo, que se salientava vivamente na pele clara. (...) Não é tatuagem, afirmou o médico. (...) O homem foi marcado, há algum tempo, a fogo, como se usa para fazer com o gado.” (CONAN DOYLE, p. 38)

E, lá como cá, embora com as devidas diferenças, a marca era o símbolo de uma associação de criminosos – espécie de Máfia – que no início só fazia o bem, mas que se degenerou.

Pesquisando o significado místico: círculo com triângulo em seu interior simboliza o ternário divino, ou o princípio espiritual dentro do todo, do universo (que é o círculo). Sabe-se que Guimarães Rosa era um estudioso e conhecedor de magia e mitos e, no texto, o ferro assinala mais que a marca do pecado, simboliza a queda e a salvação de Nhô Augusto, sua hora e sua vez.

E por isso não estranhei quando, entrevistando gente mais antiga, falou-se de costumes como o de ferrar somente na lua nova ou cheia para garantir a reprodução do gado. E cruz para livrar da peste.

Em O Signo de Três (ECO & SEBEOK, 1991), uma antologia de 10 ensaios de diferentes autores, onde também se inclui o texto citado de Ginzburg, impressionaram-me as referências e observações entre os métodos dos detetives Sherlock Holmes de Conan Doyle e Dupin de Edgar A. Poe, comparados com os estudos semióticos de Charles S. Peirce. Por isso, ressalto um aspecto fundamental nesta compreensão.

 “Um signo, ou representamen é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo”. (PEIRCE, 1977)

 A semiose se dá numa relação triádica, gerando um processo dinâmico e ilimitado de significações, de interpretantes.

O ferro de marcar boi que, em nível primário de leitura, seria apenas um signo, o visual do desenho ou a forma “ferrada”, com a função de identificar a rês ou o animal do patrão em outrora campos abertos, não cercados, cerca-se, no entanto, de uma rede de interpretações sígnicas, muito maior que sua intenção primitiva. Uma “leitura” das relações intersígnicas dos ferros de marcar boi desnuda também, metonimicamente, o processo econômico, social e cultural, típico de nossa estrutura fundiária, onde a posse tem que ser assinalada e delimitada. Um símbolo de Poder.

A propósito, uma velhinha, ao ver o ferro que tanto estranhei, por sua simplicidade, comentou: “essa é a marca de quem tem pouco mais ô nada”. E o dono do ferro era um pobre vaqueiro que tinha somente poucas cabeças de gado...

Assim é que, na malha de signos constitutivos de uma pesquisa, sobretudo na área de humanidades, temos um enigma (ou vários) a ser revelado num continuum de possibilidades interpretativas, sem reduzi-lo apenas ao aspecto descritivo. O método, mesmo que empírico, leva a descobertas e ao conhecimento como substrato prazeroso de nossas escolhas por índices esclarecedores. 

Além disso, o pesquisador acaba também por preencher  lacunas, muitas vezes resgatando do esquecimento aquilo que foi posto de lado pela história. Não é à toa que a pesquisa como um trabalho investigativo se torna um jogo, um exercício lúdico de descobertas,

Referências

DOYLE, Conan. O Vale do Terror. São Paulo: Melhoramentos, 1982.

ECO, Umberto & SEBEOK, Thomas A. O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 1991.

GINZBURG, Carlo. SINAIS Raízes de um paradigma indiciário in Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

LOTMAN, Iúri M. Sobre o Problema da Tipologia da Cultura in Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979.

PEIRCE, C. Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.

ROSA, J. Guimarães. A hora e a vez de Augusto Matraga in Sagarana. Rio: José Olympio, 1976.

SUASSUNA, Ariano. Romance d´A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-E-Volta. Rio: José Olympio, 1976.

Nota: Este texto foi publicado na revista Contexto nº 7 – Petrolina: julho/dezembro 2013, p. 90-92.

 

 

terça-feira, 10 de maio de 2022

CONTO E ENSAIO VERSOS...

 

ATO CONTÍNUO

A menina gostava de ler. Sabia que isso era importante. Quem lia mais, sabia de tudo. E podia impressionar qualquer um.

Onde ler? Para não ser incomodada com o barulho irritante da casa viva, dos irmãos correndo, da mãe sempre a chamando para fazer isso ou aquilo, Corina lia embaixo da cama. Naquele espaço sombreado, sem calor, viajava nas aventuras, beijava nos amores, sentia emoções e comichões que não lhe eram permitidas.

Transportava-se para seu personagem do dia. Um homem relativamente idoso, moreno claro, que lia também. Sem precisar se esconder, lia às claras, mesmo sendo noite, com um abajur em foco sobre o livro encadernado. Sentado confortavelmente numa poltrona que, mesmo reformada, tinha uma aparência de antigo mobiliário. Seus pés repousavam num pufe, parte da poltrona.

A sala de uma pequena biblioteca doméstica estava atulhada de livros nas estantes de alumínio, bem acessíveis no mercado, além de tralhas espalhadas aqui e ali. Um telescópio que nunca foi usado, alguns remédios, caixas com material de pesca, uma placa comemorativa, antigas fitas cassete de cursos de língua que esperavam, há décadas, uma aprendizagem além do primeiro módulo.

Mas ali ele se sentia seguro, sem nada que lhe incomodasse. Corina sabia disso, antevendo um futuro no próximo século. Não era bem o que ela queria, sonhando com um herói de romance, mas a vida lhe ofereceu um leitor. Sem mais ilusões, ele lia um dos muitos diagnósticos da realidade econômica e social, onde teorias da conspiração manipulavam a história.

Corina achegou-se por detrás, procurando seu livro de contos para uma referência, estantes laterais naquele mundo especial de enlevo e prioridades. Não havia muito o que falar entre os dois, só ler. Ela estava exausta de tanta solidão a dois. Nada era mais possível. A vida havia escoado e tudo eram apenas lembranças registradas nos álbuns fotográficos enfileirados na parte inferior da estante mais larga.

Naquele momento ela viu que poderia mudar o destino, se ambos quisessem. Ele não quis. Continuava a ler, como sempre. Não havia nada que pudesse mudar o roteiro.

Então Corina voltou para debaixo da cama.

 Petrolina, junho 2019


                     Há um balanço dos domingos de manhã

                    Amassam-se os sonhos nos volantes conferidos da loteria

                    Quinas, senas, seis jogos diversos

                    Diversos tentos, tento versos

                    O grande prêmio que nunca chega

                    Jogo adiado... jogando.

(16/05/21)

                                               Cultivo antúrios.

                                              De preferência vermelhos.

                                              Há antúrios miniaturas.

                                              Encolheram.

                                              Como os espaços e tempos do hoje

                                              Mas um pênis ereto se eleva prenhe além do verde

                                              Que penso ao vê-los em desafios cotidianos??

21/02/22)