Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

terça-feira, 29 de março de 2022

A MEDIDA DO TESTEMUNHO E A MEDIDA DO POÉTICO

 

Análise do conto Medição Individual de Varlam Chalámov

(in Contos de Kolimá 1, São Paulo: Editora 34, 2018, p. 46/49)

Elisabet Gonçalves Moreira

Desde que tive acesso a uma parte da literatura de Varlam Chalámov (1907-1982), textos em prosa reunidos em seis volumes, com o nome de Contos de Kolimá, me vi desafiada por outra perspectiva da assim chamada “literatura de testemunho” e seu impacto contemporâneo. Traduzidos diretamente do russo, relatos, contos, ensaios, até mesmo dois poemas, cujo foco denuncia a vida (e a morte) nos Gulags, campos de trabalhos forçados na ex-Soviética União, região de Kolimá, no extremo leste da Sibéria, onde Chalámov foi prisioneiro por dezessete anos. 

GULAG: Sigla em russo para "Administração Central dos Campos" na ex-União Soviética. Reduzidos após a morte de Stalin, em 1953, duraram até os anos 90. 

Os extremos, sejam geográficos, condições climáticas, exaustão e sobretudo a fome, levam ao paroxismo o extermínio ali praticado durante a repressão stalinista. Au delàs da questão ideológica do regime, Chalámov trabalha as idiossincrasias morais que aniquilam qualquer humanidade possível. Corpos e mentes em desacordo, desapiedados e indiferentes à ignomínia.

Particularizando, foi no primeiro volume que me deparei com um conto, sim, posso classificá-lo nesse gênero, que, de certa forma, mostrou aquele que, para mim, revela um procedimento exemplar de sua poética. “Medição Individual” é tomado aqui como parâmetro de um testemunho em que realidade e arte se conjugam.

Sem fazer uma paráfrase, o leitor deste trabalho também poderá ir e vir no texto do autor, complementando referências e lacunas.

MEDIÇÃO INDIVIDUAL

                              VARLAM CHALÁMOV

No final da tarde, enrolando a trena, o encarregado disse que a medição de Dugáiev no dia seguinte seria individual. O chefe da brigada, que estava de pé ali ao lado e pedira emprestada ao encarregado “uma dezena de centímetros cúbicos até depois de amanhã”, calou-se de repente e fixou os olhos na estrela vespertina cintilante, na crista da sopka nua. Baránov, parceiro de Dugáiev, que ajudara o encarregado a medir o trabalho feito, pegou a pá e pôs-se a limpar a galeria de mina que há muito já fora limpa.

Dugáiev tinha 23 anos de idade e tudo o que via e ouvia aqui mais o surpreendia do que assustava.

A brigada reuniu-se para a contagem, entregou as ferramentas e voltou ao pavilhão numa formação irregular. O dia difícil terminara. No refeitório, sem se sentar, Dugáiev tomou a porção de sopa de cereal rala e fria pela borda da tigela. O pão distribuído de manhã para o dia todo há muito fora comido. Vontade de fumar. Olhou ao redor, imaginando de quem podia pechinchar uma guimba. Na beira da janela, Baránov juntava num papel os fiapos de makhorka da bolsa de tabaco revirada. Juntou-os zelosamente, enrolou um cigarro fininho e estendeu-o a Dugáiev.

- Fume e devolva – propôs ele.

Dugáiev ficou surpreso, ele e Baránov não eram amigos. Aliás, com fome, frio e sono, não se fazia amizade nenhuma, e Dugáiev, apesar de jovem, compreendia toda a falsidade do provérbio sobre amigos temperados na infelicidade e na desgraça. Para que a amizade fosse amizade era preciso uma base sólida, formada quando as condições e a vida ainda não tivessem atingido aquela última fronteira, além da qual já não há nada de humano no ser humano, a não ser desconfiança, maldade e mentira. Dugáiev lembrava bem o provérbio nortista dos três mandamentos do detento: não confie, não tema e não peça...

Dugáiev absorveu avidamente a fumaça doce da makhorka e sua cabeça girou.

- Estou ficando fraco – disse ele.

Baránov não disse nada.

Dugáiev voltou ao pavilhão, deitou-se e fechou os olhos. Nos últimos tempos, dormia mal, a fome não o deixava dormir direito. Os sonhos eram especialmente martirizantes; bisnagas de pão, sopas grossas fumegantes... A sonolência demorou a chegar, mas, apesar disso, meia hora antes do toque de alvorada, Dugáiev já abria os olhos.

A brigada chegou ao trabalho. Foi cada um para a sua galeria.

- Você, espere aqui – disse o chefe da brigada a Dugáiev. – O encarregado é que vai dizer.

Dugáiev sentou-se no chão. Já estava tão esgotado que enfrentava com total indiferença qualquer mudança no destino.

Os primeiros carrinhos de mão caíram com estrondo sobre o passadouro de madeira, as pás bateram nas pedras, rangendo.

- Venha cá – disse o encarregado a Dugáiev. – Seu lugar é aqui.

Ele mediu a cubatura da galeria e colocou uma marca: um pedaço de quartzo.

- Até aqui – disse ele. – O tabueiro vai estender as tábuas até o caminho principal. Aí você leva até lá, como todo mundo. Tome: pá, picareta, pé de cabra, carrinho de mão. Ande.

Dugáiev começou o trabalho, obediente.

“Melhor assim”, pensou ele. Nenhum dos companheiros ia ficar resmungando que ele trabalhava mal. Ex-lavradores não eram obrigados a entender, nem podiam saber que Dugáiev era novato, que tinha ido para a universidade logo depois do colégio e trocara o banco universitário por essa galeria de mina. Cada um por si. Não eram obrigados a entender e não entendiam que há muito tempo ele estava esgotado e faminto e que não sabia roubar: no Norte, um talento importante era a habilidade de roubar, em todas as suas formas, começando pelo pão do companheiro e terminando pelos milhares de pedidos oficiais de prêmios à chefia por resultados inexistentes, não alcançados. Não era da conta de ninguém se Dugáiev não conseguia aguentar um dia de trabalho de dezesseis horas.

Dugáiev empurrava o carrinho, escavava e carregava; de novo empurrava o carrinho, escavava e carregava.

Depois do intervalo do almoço, o encarregado chegou, examinou o que Dugáiev tinha feito e saiu calado... Dugáiev voltou a escavar e a carregar. Ainda faltava muito até a marca de quartzo.

No final da tarde, o encarregado apareceu de novo e esticou a trena. Mediu o que Dugáiev fizera.

- Vinte e cinco por cento – disse ele e olhou para Dugáiev. – Vinte e cinco por cento. Está ouvindo?

- Estou – disse Dugáiev.

Surpreendia-lhe essa cifra. O trabalho era pesado, a pá pegava tão pouca pedra, era tão difícil escavar. A cifra, vinte e cinco por cento da cota, parecia muito grande a Dugáiev. As batatas da perna doíam sem parar por causa do peso do carrinho de mão; as mãos, os ombros, a cabeça doíam insuportavelmente. A sensação de fome há muito o abandonara. Dugáiev comia porque via os outros comendo; algo lhe dizia: é preciso comer. Mas ele não tinha vontade de comer.

- Bem, é isso – disse o encarregado, afastando-se. – Desejo boa sorte.

De noite, mandaram Dugáiev ao agente de polícia. Ele respondeu quatro perguntas: nome, sobrenome, artigo, pena. Quatro perguntas que faziam ao detento trinta vezes ao dia. Depois Dugáiev for dormir. No dia seguinte, trabalhou de novo com a brigada, ainda como parceiro de Baránov, mas, passados, dois dias, à noite, os soldados levaram-no por detrás da estrebaria, passando pela trilha do bosque até o local, onde, quase cortando um pequeno desfiladeiro, ficava uma cerca alta, de arame farpado, estendida até em cima, e de onde, à noite, ouvia-se um farfalhar longínquo de tratores. E, tendo compreendido o que ia acontecer, Dugáiev lamentou ter trabalhado em vão, ter padecido em vão no trabalho aquele dia, aquele último dia.

(1955)


 






À esquerda: Trabalhos forçados em Kolimá na Sibéria  À direita: o escritor  Varlam Chalámov, na prisão, em 1937.


Qual foi o objetivo de minha análise? Demonstrar, neste texto de Chalámov, o procedimento construtivo em que realidade e arte se conjugam. A medida do poético e da consciência do horror vivido e recriado como expressão escrita.

 “No final da tarde, enrolando a trena, o encarregado disse que a medição de Dugáiev no dia seguinte seria individual.”

O que significa o anúncio dessa medição individual, destacada desde o título?

É, a partir daí que, imediatamente, nos situamos no núcleo motivador da narrativa, para acompanharmos os acontecimentos em que o destino de Dugáiev é decidido no desenrolar de uma trena. Neste início, de imediato, justificam-se o leitmotiv, o título e a sequência da narrativa. Uma rede de significados é construída a partir desta referência.

A despersonalização de Dugáiev já está neste nome, sem prenome e patronímico. Um entre tantos... ou, como tantos outros. Condenados do sistema, não existe futuro. Subentende-se um desafio que Dugáiev jamais poderá cumprir como meta de produção. Todo o tempo, ele parece tão anestesiado pelo sofrimento que nada o assusta mais.

Ao redor do personagem Dugáiev, aparecem os coadjuvantes com suas tarefas de fiscalização e punição que fazem o sistema funcionar. Temos o “encarregado”, cumpridor de ordens e de metas e, na sequência do primeiro parágrafo, vão aparecer mais dois personagens da cena inicial.

O chefe da brigada – que não precisa ser nomeado – seu cargo e importância já bastam, e Baránov, o parceiro de Dugáiev. Destaca-se a indiferença do chefe, seu silêncio repentino e a atitude inusitada e reveladora da esperteza de Baránov a limpar a galeria da mina que já fora limpa. Eles todos sabem, sem dúvidas, o que aguarda Dugáiev, menos o próprio.

Ficaremos sabendo que Dugáiev não é um lavrador ou um blatar, o bandido comum, referência em outros contos de V. Chalámov. O fato de ser jovem, 23 anos, estudante, pode até justificar certa ingenuidade e fraqueza para a realidade dos trabalhos forçados, demonstrar sua inexperiência e ter agravada sua punição. E até atrair nossa simpatia, enquanto leitores.

Ressalto nesta frase inicial duas referências a um tempo cronológico: o que acontece no final da tarde e o que acontecerá amanhã. Um tempo também medido, delimitado, criando antecipadamente uma situação narrativa e um suspense.

Sabe-se que, no sistema penal, é justamente no controle do tempo e garantindo sua utilização que se assegura o poder sobre o outro e o que ele representa; conserva-se o domínio nessa duração, na pena imposta aos condenados. No caso deste conto, abrevia-se não só o tempo como a narrativa.

Uma dinâmica quase cinematográfica nos leva a imaginar o cenário, seus atores e sutis contrapontos para o caminhar do inevitável. Há um narrador onisciente sim, mas isso não é documentário, é literatura. Há um segundo plano onde o leitor atento perceberá (ou não?) o desenrolar anunciado pela trama, seus personagens, atitudes e silêncios. E é justamente nesse plano que tudo adquire significação.

Há suspense até na estrutura dos parágrafos, intercalando um pequeno parágrafo ou uma fala, depois de uma narração em que certos detalhes do local e das condições físicas e necessidades de Dugáiev, como comer e fumar, são mostradas através de frases curtas, incisivas.

Apesar da tensão implícita na condução da narrativa, percebe-se uma sequência de normalidade onde tudo é previsível, pois, afinal, aquilo é o cotidiano nos campos de Kolimá.  Uma voz narrativa vai refletir sobre a falsidade onde não se tem, nem se pode ter, qualquer amizade neste lugar - o Norte - e nestas condições, a invariante da fome, do frio e dos trabalhos forçados.

“...aquela última fronteira, além da qual já não há nada de humano no ser humano, a não ser desconfiança, maldade e mentira.”

A desconfiança na capacidade de trabalho de Dugáiev já fora “delatada” implicitamente. No Gulag demonstra-se a verdade de “cada um por si.”  O mais são mentiras que todo detento deve bem saber.

Afinal “Não era da conta de ninguém se Dugáiev não conseguia aguentar um dia de trabalho de dezesseis horas.” Isso é o que o personagem parece concluir, pela voz do narrador. Um contraponto com a fiscalização dos trabalhos dos detentos e as metas a serem atingidas por esses escravos de um regime que, além de condenados, os quer “produtivos”. Tolerância zero, como dizemos hoje.

Dentro da estrutura desses aparatos da repressão, de sua hierarquia, não consigo deixar de pensar na referida maldade, não como uma abstração, mas como ela é organizada, disciplinada. Na expressão “banalidade do mal”, Hannah Arendt admiravelmente deduziu, no julgamento de Eichmann, o nazista genocida, um homem comum, aquele que se julga inocente, pois apenas cumpre – e muito bem – as ordens superiores.  Realmente é difícil aceitar que burocratas assassinos possam ser também dedicados e sensíveis cidadãos.

Nesse conto, ainda no primeiro parágrafo, o chefe da brigada, autoritário nas exigências e que implicam no destino sem saída de Dugáiev, “...calou-se de repente e fixou os olhos na estrela vespertina cintilante...”  Nesse silêncio explícito e olhar para o alto, no contraponto do que ele já sabe, podemos inferir algum traço de humanidade? Na verdade, ele apenas cumpre o seu dever, como um chefe eficiente.

E Dugáiev, o novato nas lavras, aquele “que tinha ido para a universidade ... e trocara o banco universitário por essa galeria de mina”, o sujeito punido, não trocara coisa nenhuma, já que, ironicamente, fora condenado a trabalhos forçados sem direitos e futuro.

Sabe-se que grande parte dos presos no Gulag eram presos políticos, geralmente opositores do regime ou aqueles que, mesmo fazendo parte do governo, muitas vezes caíam em desgraça por um motivo ou outro, sendo perseguidos, silenciados e punidos.

No caso desse conto em análise, nem sequer sabemos qual foi a “culpa”, o motivo da prisão de Dugáiev; supomos uma oposição qualquer, como estudante, ao regime da época stalinista, provavelmente o temível artigo 58, que podia abarcar qualquer denúncia e que levou à prisão enorme contingente de pessoas, os “inimigos do povo”, incluindo grande número de inocentes.

A simpatia pelo jovem também nos faz perguntar: seria ele um inocente, uma vítima? A literatura de Chalámov não deixa escapar nem o prisioneiro, nem qualquer intervenção. “Cada um por si”, já fora explicitado.

Certo que o escritor, em alguns ensaios, no volume 4 dos Contos de Kolimá, tenha feito um apanhado geral dos tipos presos nestes campos de trabalhos forçados, distinguindo o bandido contumaz - assassinos, ladrões, estupradores: os blatares - dos outros condenados. Sua organização e violência o levou não só a descrever os blatares, mas fazer um discurso moralista e condenatório de sua perversidade sem limites. Aí sim temos o posicionamento e o testemunho desnudado, em detalhes.

Entretanto, o escritor nunca deixa de ser um escritor. Nesse sentido, literariamente, há contos admiráveis das ações desses bandidos em outras obras, de sua total indiferença a possíveis sentimentos de benevolência e a submissão de outros prisioneiros, muitas vezes para sua autopreservação, ou derrocada moral naquele ambiente sub-humano.

“Tão difícil escavar”, admite o novato Dugáiev, sem experiência o corpo todo dói, sequer a fome o atormenta mais. Prisioneiros sacrificados pelo castigo da fome, na letargia da subnutrição, sabemos que o personagem já não tem alternativa. Discurso indireto, o autor mergulha no corpo e mente do personagem. Inclusive são “martirizantes” os sonhos do personagem, eloquentes nas imagens de alimentos simples, como bisnagas de pão e sopas grossas.

Somente uma testemunha dessa tortura, como foi Chalámov, possa dela falar com tamanha força. Aqui, no Nordeste, há uma expressão popular, usada em situações difíceis, de filas longas, metáfora de uma miséria crônica: “comprida como um dia de fome”.

Voltando à narrativa, então tudo se completa: o personagem escava, trabalha, mas a medição individual deu apenas vinte e cinco por cento do que lhe havia sido imposto. Irônico, o encarregado ainda lhe deseja boa sorte. O que, evidentemente, Dugáiev jamais terá.

Nem há um clímax descrito para o final ou a execução; isso já vinha se desenrolando, só Dugáiev não desconfiava. Tantos índices e marcas que o jovem não percebera. A violência é, pois, simbolicamente demonstrada.

No último parágrafo, a sequência de fatos e ações tem ritmo mais lento e detalhado. A presença do agente de polícia e o interrogatório parecem não constituir uma anormalidade. Dugáiev dorme, ainda trabalha em parceria com Baránov, dois dias se passam. Mas à noite, levado pelos soldados, o cenário improvável, deslocado do cotidiano, não deixa dúvidas sobre a execução. Dugáiev, assim como o leitor, finalmente compreendem o que “ia acontecer”.

Quase epifania, essa compreensão constitui um corte, o momento fundamental da narrativa. Não dá para sair ileso de um testemunho literário como esse. E, sobretudo, entender, também, dolorosamente, assim como o personagem, que tudo fora “em vão”, que fora seu último dia.

“E, tendo compreendido o que ia acontecer, Dugáiev lamentou ter trabalhado em vão, ter padecido em vão no trabalho aquele dia, aquele último dia.”

 

Sem ceder ao melodramático, Varlan Chalámov, testemunha e sobrevivente dessa realidade, destrói em sua narrativa qualquer possibilidade de romantização do horror vivido. Isso, ele mesmo fez questão de deixar claro. No fragmento do ensaio “Sobre a prosa” defende uma literatura forte, vivida, nunca “de fora”. Situações extremas, repletas de significação. Também  nos tornamos testemunhas.

 

 

Petrolina, 2 de março de 2022.

terça-feira, 1 de março de 2022

CARNAVAL SEM CARNAVAL


Dinara me pergunta: Você gosta e brinca carnaval?

Não consigo responder diretamente... De qual carnaval? Ela envia uma avalanche de postagens, como fã e entusiasta do carnaval da cidade do Recife, onde mora, de lembranças do frevo, de compositores e maestros, de tantos blocos e fantasias.

Nunca ao vivo, vi. Nunca desci (ou subi) as ladeiras de Olinda na folia, mas gostaria de ter tido essa chance, de ter participado dessa diversidade de festas, de ritmos e ter me despojado de muita repressão e pudor. Circunstâncias pessoais e familiares, até mesmo de contexto histórico, não me deixaram “cair na folia”.

Em minha infância, antes de morar em São Paulo, numa pequena cidade do interior, minha mãe não me deixava brincar carnaval, nem pensar nisso eu podia! Para ela, filha de imigrante italiano, absurdamente católica, o Carnaval era a festa do diabo. Quem participasse, era um pecador sem salvação.

Principalmente para mim isso foi um trauma... sim, porque todas as minhas amiguinhas participavam, iam aos bailinhos infantis, com fantasias, confetes, serpentinas e... lança-perfume. Era a moda das marchinhas, que se cantava com entusiasmo. Havia desfile alegórico e ainda pude assistir alguns, mas nem pensar em brincar.

Fui buscar esta foto no meu álbum. Minhas amiguinhas fantasiadas. A mãe de Nilzinha chegou a implorar para minha mãe deixar que eu participasse... como eu chorei! Hoje penso também que ela talvez não tenha deixado por uma questão de dinheiro para a fantasia, mas mesmo sem fantasia nunca pude brincar carnaval. Aliás, eu era proibida de usar shorts ou calça comprida! Só quando moça, trabalhando, comprei minha primeira calça comprida, uma rancheira, o jeans daqueles tempos.

Mas há uma passagem especial, do carnaval de 1969, quando, jovem e estudante em São Paulo, viajei, com alguns amigos, para o Rio de Janeiro. Fui expectadora, uma única vez, de um desfile das escolas de samba quando não existia Sambódromo, ainda na Avenida Presidente Vargas.

O Salgueiro arrasou, com o samba enredo Bahia de Todos os Deuses, cantado por Elza Soares.  As cores vermelho e branco, o ritmo, tudo tão empolgante!

“Terra abençoada pelos deuses
E o petróleo a jorrar
Nega baiana
Tabuleiro de quindim
Todo dia ela está
Na igreja do Bonfim, oi
Na ladeira tem, tem capoeira
Zum, zum, zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum, zum, zum
Capoeira mata um”

O fato de ter ficado a noite sem dormir e o calor impiedoso, quase me fizeram sucumbir... sempre fui muito frágil fisicamente para aguentar este tipo de “repuxo”. Mas, à noite, não pude deixar de ir ao famoso baile gay do Scala. Que experiência! O que vi jamais sairá de minha memória!

Fiquei num canto com um amigo que não foi dançar, mas percebia seu olhar mais do que curioso. Hoje, até me lembro que não havia lésbicas ou gêneros afins, somente homens. 

Pois bem, quem eu vi lá? Um homem lindo, engenheiro na empresa onde eu trabalhava em São Paulo, aos beijos e abraços com outros homens. Ele fingiu não me ver - ou não me reconheceu mesmo - e eu também “fiquei na minha”. Quem iria supor que eu também estaria lá, no Rio, e num baile gay... Na empresa ele era altivo e sério, paquerado por todas as moças, um dos poucos solteiros. Quando voltei para o trabalho, nunca disse nada e ele também continuou a não me reconhecer.

São Paulo, capital, no final dos anos 60 e início da década de 70, não era uma cidade carnavalesca, bem o sabemos. Pode ser que hoje isso esteja diferente, mas não havia um carnaval onde pudéssemos, inclusive, nos sentir seguros. Havia uma ditadura militar em pleno exercício. Ademais, eu não tinha nem tempo nem condições para brincar o carnaval, casada, estudando e com filho pequeno.

Morando depois em Petrolina, também não tive ocasião de brincar carnaval. Era uma forasteira, sem vínculos com a festa que, por sinal, era bem restrita.  Minhas filhas, quando jovens, foram se divertir do outro lado do rio, em Juazeiro da Bahia, nos tempos das bandas do Axé, muito mais animadas. Mas, esse tipo de festa não fazia gosto para mim, nem para meu marido.

Ainda teve um ano que fomos para Salvador, depois de muita insistência minha. E foi um desastre... não dava para acompanhar trio elétrico, era tudo muito longe, as crianças eram pequenas, não havia amigos ou parentes para nos dar um suporte. Recife, muito menos.

Estou me justificando muito, mas para mim isto funciona também como uma explicação. Hoje, aos 75 anos, é bom repensar, já que não dá para reviver o que não foi vivido. Nem o será, na festa proibida onde a máscara não é fantasia...

Não brinco, não brinquei... nem na ala das baianas, nem no Bloco da Saudade.

 

Petrolina, 1 de março de 2022