Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

MARCAS DE FERRAR - FINALIZAÇÃO

 Depois de quase um ano apresentando partes de meu trabalho de pesquisa sobre ferros de marcar/signos do sertão e de outras geografias, finalizo com a bibliografia geral utilizada, referências via web e uma amostragem de outros ferros de marcar boi, de minha coleção particular. Fotos de Sílvia Nonata.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. O Sertanejo. São Paulo: Edigraf, 1961.

A Magia dos Simbolos, O Círculo, in Homem Mito & Magia. São Paulo: Ed. Três, 1974, vol. I, p. 140/141.

 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 10.

BARROSO, Gustavo. Terra de Sol – Natureza e Costumes do Norte. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003. 

BOGGIANI, Guido. Os Caduveos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p.229.

CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1984, p. 106.

 

Diccionario dos Synonymos  Poetico e de Epithetos da Lingua Portuguesa por J.I. Roquete e José da Fonseca - Librarias Aillaud e Bertrand, Paris-Lisboa, Paris, 30 de janeiro de 1848.

 

DOYLE, Conan, O Vale do Terror. São Paulo: Melhoramentos, 1982.

 

GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

 

GOMES, Laurentino. Escravidão – volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

 

JULIO, Silvio. Terra e Povo do Ceará. 2ª ed. Rio de Janeiro, Revista Continente Editorial Ltda, 1978.

 

KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Vol. 1. 12ª ed. Rio-São Paulo-Fortaleza: ABC Editora, 2003.

 

LOPES, Edward, Fundamentos da Linguística Contemporânea. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 17.

 

LOPES, Esmeraldo. Caatingueiros e Caatinga: a agonia de uma cultura. Maceió: Gráfica Grafiptel, 2012. 534p.il.

 

LOTMAN, Iúri M., "Sobre o Problema da Tipologia da Cultura" in Semiótica Russa, São Paulo: Perspectiva, 79, p.32

 

PEIRCE, C.Sanders, Semiótica. S. Paulo: Perspectiva, 1977, p. 46.

 

PIGNATARI, Décio, Semiótica da Arte e da Arquitetura. São Paulo: Cultrix, 1981, p.90.

 

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 120ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 9.

 

ROSA, J. Guimarães, A Hora e a Vez de Augusto Matraga in Sagarana. Rio: José 0lympio, 1976, p.335.

 

SUASSUNA, Ariano, Romance D'A PEDRA DO REINO e Príncipe do Sangue do Vai-E-Volta. Rio: José 0lympio,76, p.294.

 

Manuscrito:

Livro de Registro de "ferros, marcas e signaes" da Villa de Petrolina, dos anos de 1872 e 1873. Obs.: Encontrei esse livro na Biblioteca Municipal da agora cidade de Petrolina no início dos anos 80. Foi levado de lá e não devolvido. Uma cópia xerográfica ainda pode ser consultada no Museu do Sertão de Petrolina, PE.

 

DOCUMENTOS DE ACESSO ELETRÔNICO (via Internet)

 

https://teologiabrasileira.com.br/o-numero-da-besta-um-estudo-introdutorio-em-apocalipse-13-16-18 - (Acesso em 26/01/23)

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nebamun_Supervising_Estate_Activities,_Tomb_of_Nebamun_MET_DT11772_detail-7.jpg . Nota: Detentor dos direitos autorais da ilustração: https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/   (Acesso em agosto 2022) 

https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4854-21-outubro-1942-414867-publicacaooriginal-1-pe.html (Acesso em 25/01/23)

https://victorgurjao.jusbrasil.com.br/artigos/207694906/posse-conceito-teorias-fundamentais-e-classificacao (Acesso em 25/01/23)

https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/camaras-municipais-1.htm (Acesso em agosto 2022)

https://medium.com/@Gil.Dicelli/sertao-a-ferro-e-fogo-  

Também disponível em: http://especiais.opovo.com.br/sertaoaferroefogo.  (Acesso em setembro 2022)

https://www.hypeness.com.br/2021/11/documentos-comprovam-que-suastica-nazista-era-usada-para-marcar-gado-no-para/ (Acesso em 16/06/22)

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cattle_brands_in_MItchell_County,_TX_IMG_4547.JPG (Acesso em agosto 2022)

 http://www2.agricultura.rs.gov.br/uploads/1274814225MARCA_DE_REBANHO.pdf -  (Acesso em 19/01/23)

https://medium.com/@Gil.Dicelli/sertao-a-ferro-e-fogo-fa306342c22e. (Acesso em 20/01/23)

 

https://www.mfrural.com.br/detalhe/1122/marcadores-de-gado-em-aco-inoxidavel (Acesso em janeiro 2023)

https://slowfoodbrasil.org.br/arca_do_gosto/gado-curraleiro-pe-duro/ (Acesso em 24/1/23)

A estética armorial dos ferros-de-marcar na obra de Ariano Suassuna e Manuel Dantas, de Daniella Carneiro Libânio de Almada in https://www.pluralpluriel.org/index.php/revue/article/view/131   nº 17 – 2017 - Acesso em 21/07/2022 

Sob os signos das boiadas: as marcas de ferrar gado que povoam o sertão paraibano - Dissertação da autoria de Daniella Lira Nogueira Paes –  http://portal.iphan.gov.br – Acesso em 30/5/22

 Vídeos:

·         https://www.youtube.com/watch?v=khm0c70-RFU - Marcadores personalizados em aço inox - Marca para Gado e Cavalo personalizadas em aço inox Ferrador   (Acesso em janeiro 2023)


ANEXO

Ferros de marcar boi – Região do vale do São Francisco

Parte da coleção de Elisabet G. Moreira  -   Fotos de Sílvia Nonata

 















Observação: ferros de pequenos proprietários, já sem uso. Sem identificação do proprietário.  Usados no final do século XIX e primeira metade do século XX.

 








A
  

 


domingo, 22 de outubro de 2023

SIGNOS EM TRANSIÇÃO

Conquanto não seja tarefa das mais simples, a "leitura" das relações intersígnicas dos ferros de marcar o gado levou-me a um dos possíveis sentidos do processo aí utilizado.

No decorrer desse trabalho, apresentado aos poucos nesse blog, vimos observando um processo dinâmico e geracional na leitura dos ferros de marcar/marcas de ferrar, signos em transição. Tomando como base uma das definições de Charles Sanders Peirce:

 

"Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo."  (PEIRCE, 1977)

 

A semiose se dá numa relação triádica, indo além das "duas faces de uma folha de papel" na proposição semiológica de forma e conteúdo de Saussure. Segundo Peirce, a natureza do interpretante depende do modo de representação do objeto no signo. Assim, o signo vai concentrar dimensões de um mesmo objeto e desenvolver seus interpretantes que são por ele determinados e, ao mesmo tempo, autodeterminantes por serem, igualmente, signos.

Desse modo, o objeto imediato está contido no próprio modo de sua apresentação no signo, e entra em correlação dinâmica para agir como força propulsora na mente que interpreta e gera os três tipos de interpretantes do signo:

1 - Interpretante em nível de primeiridade (interpretante imediato): provoca na mente interpretadora apenas a captação sensível de sua qualidade, que é um signo;

2 - Interpretante em nível de secundidade (interpretante dinâmico): provoca uma reação ativa da mente interpretadora;

3 - Interpretante em nível de terceiridade (interpretante final): provoca na mente interpretadora o reconhecimento das normas estabelecidas pelo uso comum e desenvolvidas sob a forma de leis que caracterizam convenções e hábitos.

Portanto, a descrição dos sistemas sígnicos, se dá, em síntese, também de acordo com três pontos de vista:

"(a) do ponto de vista das relações intersígnicas,ou seja, do ponto de vista das relações que um signo qualquer mantém para com os demais signos pertencentes ao mesmo enunciado. Seria o estudo da função sintática.

(b) do ponto de vista das relações de um signo para com o seu objeto, ou melhor, relação do signo enquanto veículo de informação para com o seu denotatum. Seria o estudo da função semântica;

(c) do ponto de vista das relacões do signo para com os seus usuários, quer dizer, relação do signo com o remetente e o destinatário. Seria o estudo da função pragmática." (Lopes, 1976)

Embora controvertida, até mesmo nos adeptos das teorias de Peirce e Morris, essa tripartição é que tem orientado, de modo geral, os estudos nesse campo. Evidentemente que estudos mais atualizados complementam o que aqui se coloca como ponto de partida. Não é intenção, nem poderia, esgotar assunto tão complexo.

Parece-me que autores interpretadores dessa teoria se esquecem, muitas vezes, da dinâmica desse processo e das relações entre esses pontos de vista. Num triângulo, afinal, temos também uma linha em geração contínua a partir de determinado ponto, no caso o próprio signo. Daí o perigo da estratificação ou hierarquização desses mesmos ângulos. Procedimentos mentais também dificilmente se esquematizam com rigidez.

Peirce e Morris deixaram uma classificação dos signos que nos ajuda a entender a complexidade da representação sígnica. Índices ou sinais não convencionais são chamados signos naturais porque o relacionamento no processo de comunicação não se dá entre pessoas, mas entre um índice da Natureza e o receptor-interpretador desse sinal. Um exemplo corriqueiro é dado quando o céu fica carregado de nuvens escuras e interpretamos como chuva iminente.

Entre os signos culturais ou artificiais, temos o símbolo, parcialmente motivado, como é o caso da cruz, símbolo do Cristianismo porque está associado ao martírio de Cristo numa cruz. Outros signos artificiais são as tabuletas, apitos, fórmulas e, é claro, os signos linguísticos ou verbais, cuja arbitrariedade é talvez o fator que melhor os caracteriza. A palavra cão (canis, cane, chien, dog...) não é o cão, mas é o nome comum dado ao animal, ou seja, o signo linguístico.

Finalmente o ícone ou imagem, tido como um sinal não-sígnico por incluir uma relação necessária entre a parte que expressa formalmente o conteúdo, o significante, e o conteúdo expressado ou significado. Uma fotografia é um ícone. No sistema da língua as onomatopeias são consideradas elementos icônicos.

É verdade que isso demanda muito mais abrangência e particularização, porém a intenção desse trabalho é outra.

Voltemos, portanto, a nosso ferro de marcar boi, animal e gente. Em fevereiro desse ano, como o título "Marcas de Ferrar (Parte I)" iniciei a publicação dessa pesquisa, nesse blog, ilustrando-a com esse ferro de marcar da primeira metade do século passado, índice motivador desse estudo. Um estudo que, esclareça-se mais uma vez, foi iniciado ainda na década de 80.

                                                                                     (Foto de Sílvia Nonata)

                                                                                         https://betcomtmudo.blogspot.com/2023/02/

Mesmo com base numa tradição secular, o ferro de marcar não deixa de ser um signo utilitário. Utiliza um material que, embora num sistema de produção artesanal, requer seu operário: ferro e ferreiro, mas com uma ética especial, de valores e normas que não se enquadram no mero consumismo de nossos dias. E uma complexidade não menos fascinante.

Sem classificar ainda nosso signo, vejamos o funcionamento do processo, segundo a teoria vista:

·         Signo: o visual, o desenho, a forma "ferrada" no animal;

·        Objeto: a fazenda ou a propriedade a que pertence o ferro, iniciais do dono, marca do dono;

·      Interpretante: efeito que gera o significado do objeto, mais reações a esse processo.

Em nível de primeiridade, o receptor configura as formas desse signo: letras em simetria ou um desenho especialmente criado. 

Em nível de secundidade, a relação semântica, "símbolo" da posse: identifico o dono do animal marcado com esse ferro.

Em nível de terceiridade: segundo minha cultura e interesses, posso ver apenas iniciais, um desenho rústico ou um belo exemplo de artesanato ou a marca simbólica da violência, da posse num sistema de posses, misto de misticismo, superstição, respeito.

Evidentemente que, em nível de primeiridade, da comparação de formas, do pensamento analógico, icônico por similaridade, temos sincronia e, em nível de terceiridade, de pensamento relacional, simbólico, temos diacronia. Embora sejam conceitos distintos, sincronia tem o objetivo, na linguística, de estudar a língua num momento específico e a diacronia o estudo da língua através do tempo. Ambas em inter-relação na dinâmica mesmo da cultura, pois se conjugam intimamente. 

Utilizando as palavras de Décio Pignatari, posso concluir:

 

"É por esta razão que um ícone, repetido e organizado, se transforma em signagem, em sistema de signos; é por esta razão que uma signagem ou um elemento dela, isolada do sistema, reverte ao ícone, a uma possibilidade."  (PIGNATARI, 1981)

 

0 ferro de marcar, que normalmente teria como função apenas identificar a rês ou animal de patrão em outrora campos abertos, não cercados, cerca-se, no entanto, de uma rede de interpretações sígnicas, muito maior que sua intenção primitiva.


Lembrando da canção Disparada, de Geraldo Vandré, de 1966, no auge dos protestos políticos contra a violência da ditadura militar no refrão:

“Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente”

Na dinâmica da língua encontramos a expressão “Tá ferrado”, isto é, marcado, frito, fudido, lascado, expressão da gíria que remete subliminarmente a essa prática, principalmente quando aplicada ao ser humano. Inclusive, temos exemplos nos BO policiais de extrema violência, quando maridos ou companheiros “ferram” mulheres como “castigo” por suposta desobediência, deixando sua marca pessoal para sempre, de macho dominante.


Metalinguagem, o interpretante continua gerando significações. Afinal, a própria significação tem como recurso a língua natural que lhe serve de fundo. 0 ferreiro, executor e muitas vezes artista-criador, interage com o dono do ferro, criador usuário. 0 receptor, o vaqueiro, o ladrão de gado, os vizinhos, ou o pesquisador, ou você, recebemos dessa marca agora invertida mais que uma leitura metonímica: uma rede de inter-relações e de expectativas.

Na memória coletiva e cultural temos um sistema de signos que modeliza o mundo sertanejo sob a perspectiva de sua dinâmica social e fundiária: um sistema, sobretudo, de posse e de não posse. Um símbolo de Poder, “a ferro e fogo” como se enfatizou, mas que se desdobra em outras possibilidades e linguagens.


Pierre Bourdieu, na seção “As produções simbólicas como instrumentos de dominação” em seu livro O Poder Simbólico, sintetiza:

 

“A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções.”[1]

 

Os símbolos são parte desse modo de representação da realidade e, consequentemente, do mundo de que faz parte, pelo qual a cultura e seus valores se expressam e se reafirmam através dos sistemas simbólicos.


Com certa surpresa, pude constatar que a prática da ferra persiste, inclusive nas imediações da represa de Sobradinho, entre Bahia e Pernambuco. Na segunda década do século XXI, um vaqueiro ainda pode ser contratado para achar o boi que vaga solto nas roças de sequeiro, gente de pouco criatório ou sem uma roça própria, de um extrato social diferente dos grandes proprietários.

O próprio gado, quando criado solto, revela seu estado animal, em que os bichos certamente se reconhecem em cruzamentos livres. Aliás, há uma referência preconceituosa a esse gado chamado de “pé duro”, sem raça definida. Um “pé duro”, isto é, de cascos fortes, resistente ao maltrato do meio ambiente na caatinga, das secas periódicas, no chamado regime de fundo de pasto pelos sertanejos, mas ainda com valor no mercado periférico, doméstico, e dos que pouco têm ou podem adquirir.[2]


Na verdade, milhares de povos adotaram as orientações e mentalidade do poder romano espalhado pelo Ocidente e, sobretudo das tradições ibéricas, durante o período colonial após a tomada das Américas. Não há como conter a história de uma violenta conquista construída e validada socialmente por suas instituições. A marca do proprietário sempre simbolizou a insígnia do poder, da propriedade privada, do respeito exigido e esperado, do sucesso pessoal e, adrede, suas benesses sociais e políticas.

 

 

 

          Petrolina, 2023 (refeito a partir do original de 1982)

Elisabet Gonçalves Moreira



Observação: Para finalizar esse estudo, vou publicar a Bibliografia utilizada, assim como as referências. Agradeço observações e comentários.



[1] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 10.



    

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

MARCAS DE FERRAR: FERRAÇÃO EM ATOS E REGISTROS


Destaco algumas referências bibliográficas, geralmente regionais, que tratam deste assunto. Indico em especial o trabalho primoroso sobre a região do Vale do São Francisco de Esmeraldo Lopes e o livro “Caatingueiros e Caatinga A agonia de uma cultura” (Maceió, Gráfica Grafipel, 2012. 543p.il.).

A descrição da ferração dos animais, feita por Esmeraldo Lopes, é particularmente exemplar, pelo estilo e pelos detalhes, marcando também a memória visual e olfativa. Ademais, isso era uma prática comum e aceita no cotidiano do sistema econômico e social, sem julgamentos ou posturas do mundo “civilizado” de agora. Sempre se destaca a honradez e respeito às marcas das famílias, tornando o furto de animais uma vergonha para o ladrão, quando desmascarado.

 

“A ferração dos jumentos, dos cavalares, providenciada quando os bichos já em corpo feito; ferração de gado ao entrar na fase de garrote. No dia de ferração os bichos a serem ferrados no curral. Uma fogueira pequena acesa, os ferros com a marca da família, do proprietário dentro da família, postos nela, sufocados por bandejas de bosta seca de gado, para esquentamento ligeiro. Os garrotes, marrãos de jumento, os poltros crescidos caindo no laço, sendo derrubados para a imobilização. E lá vindo o ferrador, com o ferro em brasa na mão, fazendo mira. O bicho estrebuchando, o ferro fazendo chiiii, e a fumaça subindo, cheirando a cabelo a carne queimada, ao som de um berro afogado. Colocar estrume fresco de vaca em cima do ferimento da queimadura: a prevenção contra bicheira. Com as ovelhas, assim também, na obra de carimbação.” (LOPES, 2012, p. 135/6).

 

Nos animais há, inclusive, um cuidado para não estragar o couro, que, após o abate, será aproveitado em diversos usos, desde a indumentária do vaqueiro, até a forração de móveis e utensílios. Portanto, as leis e normas oficializadas mais tarde só referendaram uma prática usual de interesse do mercado e do comércio.


Câmara Cascudo descreve no geral:

 

“Nenhuma festa tinha as finalidades práticas das “apartações” do Nordeste. Criado em comum nos campos indivisos, o gado, em junho, sendo o inverno cedo, era tocado para grandes currais, escolhendo-se a fazenda maior e de mais espaçoso pátio de toda ribeira. Dezenas e dezenas de vaqueiros passavam semanas reunindo a gadaria esparsa pelas serras e tabuleiros, com episódios empolgantes de correrias vertiginosas. Era também a hora dos negócios. Comprava-se, vendia-se, trocava-se. Guardadas as reses, separava-se um certo número para a “vaquejada”. Puxar gado, correr ao boi, eram sinônimos. A “apartação” consistia na identificação do gado de cada patrão dos vaqueiros presentes. Marcados pelo “ferro” na anca, o “sinal” recortado na orelha, a “letra” da ribeira, o animal era reconhecido e entregue ao vaqueiro.” (CASCUDO, 1984, p. 106)

 

Ribeira é o nome que se dá às terras baixas das margens de um rio. No texto de Cascudo, assim como no contexto deste trabalho, designa o espaço rural que abrange algumas fazendas de criação de gado, dependentes de um curso de água comum. Inclusive, a história do povoamento do interior dos sertões está diretamente relacionada com a expansão extensiva da criação de gado.

 

  Não há bibliografia sobre o assunto que não use ou apenas cite o livro Terra de Sol – Natureza e costumes do Norte de Gustavo Barroso (1888-1959), publicado em 1912. Um livro cuja linguagem e subjetividade do autor não resistem ao incômodo do escancarado racismo e preconceitos vários, ainda que possa ter influenciado outros autores, inclusive Ariano Suassuna, pelo fato de ter descrito o sertão cearense, incluindo aí os ferros de marcar o gado. Escolhi duas observações que concernem à minha análise em decurso:

            “Os matutos têm um conhecimento profundo dessas marcas de gado. São elas o assunto predileto de suas palestras; e, enquanto conversam, desenham-nas no chão com um graveto ou com a ponta fina da “parnaíba” afiada. Distinguem-nas ao longe. Jamais se enganam. Conhecem os ferros da ribeira toda de cor e salteado. E quando aparece um animal de marca desconhecida, logo a riscam na porta da casa ou nos troncos insulados das várzeas para roteiro dos que procuram gados sumidos de fazendas distantes.” (BARROSO, p. 210)

            Portanto, os ferros assinalam outras finalidades, um código de reconhecimento e um trabalho especializado para ser feito.

            “O ferro é de grande utilidade para saberem notícias dos animais tresmalhados; e o primeiro trabalho de um vaqueiro ao “pedir um campo” em fazenda estranha, isto é, pedir auxílio ou licença para procurar a rês sumida, é apear-se e riscar no chão o respectivo ferro, dizendo a letra da freguesia e sinal da fazenda.” (p. 213)

            O que inferir desse ato primeiro de uma escrita sígnica? De um singular paradigma indiciário, na análise de desenhos, rastros, pistas, é que se geram as ações de um processo aguardado – e autorizado - pelo sistema vigente. Portanto, o sinal dado pelo ferro de marcar está inserido numa rede de informações como veículo intercomunicativo, projetando-se na orientação do próprio fazer, do tipo de trabalho a que se dedicam os vaqueiros – ou se sujeitam - nesse modo de vida.

            Diferente do registro manuscrito do Livro de Ferros da Vila de Petrolina, de 1872/73, temos aqui a foto do registro nº 1, de 1942, feito no município de Limoeiro, no estado do Ceará. Formal e burocrático, pela ficha, vemos que o registro fez parte de um processo, iniciado com o pedido em 1939, publicado no D.O. (Diário Oficial) em 1940 e só registrado dois anos depois. Quanto ao desenho da marca, achei incipiente, lembrando um graveto (duas retas). Sabe-se, no entanto, que há registros das marcas de gado, em municípios de outros estados, 

Foto Cláudio Ribeiro – Diário do Povo – 2014 [1]

            Para comparação, encontrei esta foto de outro registro na cidade de Campos, no estado do Rio de Janeiro, mais elaborado na escrita, no preenchimento do registro e no desenho. Datado de setembro de 1932, há conotações instigantes nas referências nominais como “indústria pastoril” e “systema “Ordem e Progresso”. O ano de 32, marcado pela ditadura de Vargas e o “Estado Novo”, também ficou marcado pela Revolução Constitucionalista e ano da fundação oficial da Ação Integralista Brasileira, de cunho ideológico eminentemente fascista, por Plínio Salgado. Entre o Sudeste e o Nordeste, há diferenças significativas nesse momento histórico... mesmo uma década depois. A leitura deste documento, num país conservador de origem agrária, referenda a dominação até pelo emblema Ordem e Progresso, como na bandeira brasileira.[2]


            O ferro ali desenhado, simétrico, pode lembrar o esboço de uma cabeça humana ou, mais de acordo com a proposta do “systema”, de cunho nacionalista, a ordem e o progresso.

            Fico então sabendo que o Ceará tem o decreto nº 523, de 29 de março de 1939, que regula o registro de marcas de gado no Estado. O então interventor federal, Francisco de Menezes Pimentel, ordenou, no artigo 1º: “A propriedade sobre o gado bovino, equino, asinino e muar é comprovada, no território do Estado do Ceará, por meio de marca a fogo” (grifos meus).

            Embora o método de marcar tenha evoluído, ainda é necessário o registro. Segundo o depoimento de Geraldinha Barroso dos Santos, do Setor de Registro de Marcas de Ferrar Gado, da Secretaria do Desenvolvimento Agrário daquele estado, desde o início da legislação, foram criadas 34.696 marcas, lembrando que a reportagem de onde tirei as informações é de 2014. Por mês, chegam a apresentar de 30 a 40 novas marcas, e há uma taxa de serviço a ser paga.

            Uma reportagem especial com o sugestivo título de “Sertão a ferro e fogo – Marcas de gado e gente”, de Gil Dicelli, no Diário do Povo, de Fortaleza, CE, traz várias abordagens sobre o assunto, com diversas autorias. Também fala das vaquejadas, hoje um tipo de “esporte”, num lugar especial, com prêmios e shows, em que os atuais vaqueiros em nada se parecem com a ancestralidade da pega do boi na caatinga. Em Petrolina, há um parque de vaquejadas bem estruturado, com um calendário de eventos. Dimitri Túlio, um dos articulistas da reportagem citada, sintetiza:

            “Semelhante a tempos bem longe, os aldeões se reúnem num canto para assistir aos clãs mais abastados, ostentantes de cavalos potentes e marcas de ferrar como assinatura, disputarem qual família tem a melhor cepa de vaqueiros contemporâneos”.

Se você tiver interesse em ferrar seu rebanho, assista ao pequeno filme disponível no Youtube; mais didático impossível:

    

            https://www.youtube.com/watch?v=khm0c70-RFU


A natureza e o entorno dos tempos mudaram a dinâmica do poder e de suas posses, seja nas profundezas de um Brasil pouco conhecido, seja na periferia de espetáculos, da própria arte em suas variadas linguagens e adaptações mercantis

 

 



[1]Diário do Povo – 2014 – Gil Dicelli - Sertão - A Ferro e Fogo | O POVO - Reportagem especial do O POVO sobre a marca de ferrar boi, uma herança avoenga - especiais.opovo.com.br  (Acesso em 20/01/23) 

Créditos (complementando a nota 1: O especial “Sertão a Ferro e fogo – Marcas de Gado e Gente” foi ganhador do Prêmio BNB de Jornalismo, na categoria de Fotografia Nacional (2015) e na categoria Reportagem Nacional, com textos de Ana Mary C. Cavalcante, Cláudio Ribeiro, Demitir Túlio, Émerson Maranhão e edição de Fátima Sudário. Além disso, ganhou o Prêmio ESSO de Jornalismo na categoria “Criação Gráfica”, com projeto assinado por Gil Dicelli.


sábado, 2 de setembro de 2023

MARCAS DE FERRAR - SISTEMAS DE SIGNOS EM LEITURAS (II)

 

Antes de iniciar mais um "capítulo" de minha pesquisa, vou dar uma dica (astuce, como dizem os franceses) "descoberta" ao acaso, nesses trabalhos de clicar teclados e páginas específicas. No caso, este meu blog, ativo desde novembro de 2015 (portanto, neste setembro de 23, 8 anos ! num total de 88 postagens !!) descobri que posso ver a listagem dessas publicações acessando "Tecnologia do Blogger" que fica no final da página do celular ou do computador. Daí é mais fácil localizar postagens específicas e abri-las. Não sei se você sabe disso ou se tem outra "astuce" para o procedimento...

     Na última postagem falei dos ferros de marcar com o símbolo da cruz suástica, usados aqui no Brasil, e anunciava a continuação desse estudo, registrando que até mesmo algumas etnias indígenas delas fizeram uso, como é o caso dos Guaicurus, indígenas cavaleiros do Mato Grosso do Sul e de seus remanescentes, os Kadiwéus, estudados por idôneos antropólogos. Desde o italiano Guido Boggiani (1861-1902), francês/belga Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e o brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997).Todos eles destacaram a estética de suas marcas, bem como seu uso em animais e objetos, como uma maneira de reconhecer uma propriedade individual.

    Vou retomar algumas informações das postagens Aventuras na Selva (Partes I e II), datadas de 26 de julho de 2022 e 29 de agosto de 2022, revendo olhares.

     O que me encanta nos desenhos desses insólitos ferros de marcar  é uma alusão figurativista impressionante aliada a uma geometria impecável. O próprio Boggiani reconheceu esta possível semelhança.[1]

  Para comparação, algumas marcas de ferrar dos Kadiwéu, redesenhadas por Boggiani, tendo observado ele que, sobre alguns objetos estão reunidas em quantidade, como se fossem caracteres de uma escrita.


     Analisando, em nota de rodapé, página 228 do livro citado em referência 1, Boggiani diz que a “marca do Capitãozinho é a primeira à esquerda, no alto; aquela que se segue é a da sua mulher.” Sem dúvidas, esse indivíduo era uma referência importante na aldeia, não só pelo nomeado título, mesmo no diminutivo, mas porque levantou diante de sua casa um “altíssimo mastro sobre o qual se hasteou uma bela bandeira branca com as insígnias do Capitãozinho. Esta insígnia não é mais que a marca que, a fogo, estampa nos animais de sua propriedade todo proprietário caduveo. É uma espécie de sigla de reconhecimento”.

   Destaco o casal, simbolizado nessas marcas, insígnias, siglas. Lembrando uma figura humana, a marca do homem tem detalhes simétricos e um x central, enquanto a marca da mulher se curva na haste principal, num desenho mais simples e apresentando hastes que lembram pernas e braços quase um movimento. Há um equilíbrio estético admirável nas proporções e na visualidade do formato.

Pelo inusitado, também transcrevo aqui a forma que os Caduveos (assim grafado por Boggiani) marcam seus animais.

“Os Caduveos não têm, para marcar os seus animais, marcas de ferro como são usadas em toda a América do Sul pelos Estancieiros; mas usam simples barras de ferro de cinco ou seis milímetros de espessura, ligeiramente encurvadas numa das extremidades, e com elas esquentadas ao fogo vão desenhando a mão livre as suas insígnias sobre o couro dos animais. É uma operação longa e difícil e especialmente fastidiosa para os pobres animais submetidos àquela tortura. Vi hoje mesmo o Capitãozinho marcar um potro de sua mulher por esse sistema. 

Primeiro usavam fazer as marcas muito grandes; agora, porém, aprenderam a não estragar o couro dos animais e reduziram os sinais a justas proporções.” (p. 228/229)

No estado do Texas, nos Estados Unidos, também pude observar o uso de ferros de marcar o gado na tradição dos cowboys. Hoje, como aqui, os novos ferros são de inox. O método tradicional de esquentar o ferro na brasa foi substituído por usos mais modernos, como o aquecimento a gás, aquecido por eletricidade ou, ainda, um ferro resfriado por gelo seco, outro tipo de marcação, por congelamento. Gado, cavalos, são comumente marcados hoje pela mesma razão que eram nos tempos antigos, para provar a propriedade.


Marcas de gado usadas no condado de Mitchell, no oeste do Texas, são exibidas em mural público.[2]   

O ritual da marcação do gado ou ferra aparece também em publicações, romances, HQs, filmes de faroeste, fazendo parte de um cenário bastante popular, como algo típico e singular, demonstrando a bravura dos cowboys, similaridade com nossos vaqueiros.

No Brasil, há até mesmo a cidade de nome "Pau-dos-ferros" no Rio Grande do Norte, desde o século XIX. O topônimo é referência às árvores que circundavam o rio Apodi, principalmente a oiticica que, pela sua grande dimensão, oferecia sombra e consequentemente um local para repouso dos vaqueiros que por ali passavam. Eles marcavam também seu ferro no tronco dessas árvores, a fim de permitir a identificação dos animais extraviados, dando origem inclusive ao povoamento da região, com pontos de comércio e venda de gado.

Na dinâmica das transformações históricas, o mundo moderno também foi adaptando os ferros de marcar a outros usos. Mas a finalidade sempre foi, em essência, uma marca indicando autoria ou procedência, espécie de carimbo para identificar também a origem de produtos variados, como arreios de couro, de extração de madeira e afins.

E associar o artista que se interessa em partir dessas referências visuais e desdobrar sentidos em criações contemporâneas. O Movimento Armorial, na esteira das criações de Ariano Suassuna, sem dúvidas, é a referência mais conhecida. As artes gráficas têm no design dos ferros, em seu formato e simbologia um parâmetro criativo. Já observei sanduíches e até sobremesas “ferrados” com o logotipo do estabelecimento, um aspecto mais particularizado com o produto.

Quando adquiri meu primeiro “fusquinha”, nos anos 70, o vendedor esclareceu o significado da marca. Com apenas duas letras – um V por cima de um W – rodeadas por um círculo, um logotipo inconfundível.

Em alemão “volks” (povo) e “wagen” (vagão, veículo), que significa carro do povo ou popular. E assim por diante, sabemos o quão importante para o mundo moderno são esses logotipos que caracterizam empresas, negócios e objetos de consumo em geral. Há um lado emocional agregado muitas vezes para caracterizar a fidelidade do cliente.

Nesse caso, até o apelido “fusquinha”, o v em f, transformou-se numa referência afetiva para o carro popular inconfundível, objeto de desejo da maioria dos brasileiros, numa época de instalação e desenvolvimento da indústria automotiva nacional.

Agora, um ferro de marcar contemporâneo, em aço inoxidável, que você pode encomendar e comprar pela internet. Sem dúvidas bem-acabado, prático.[3]

                                                   

 Dizem que a queimadura com este tipo de ferro é menos dolorosa para o animal. As iniciais no centro estão circundadas por uma alegoria emblemática, o Ouroboros, ainda que estilizada. Há vários significados para essa representação da serpente que engole o próprio rabo, presente em diferentes culturas e tendo interpretações distintas. A base do significado do Ouroboros consiste na ideia da criação eterna e contínua. Talvez seja essa a função do que nos respalda humanamente.



[1] BOGGIANI, Guido. Os Caduveos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975,   p.229.


🔉Na próxima postagem, continuo a colocar mais aspectos pertinentes a essa pesquisa. Falarei especificamente do ritual da Ferração do gado em nosso país e seus registros oficiais, referências que alargam a visão sobre esse assunto... Acompanhando... Obrigada.