Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

domingo, 7 de julho de 2019

Sobre um pequeno livro e uma proposta: Leituras exemplares (à maneira de Tolstói)


De minha autoria, saiu publicado em tiragem limitada, estilo cartonera, quase manual, o livro 
Leituras exemplares (à maneira de Tolstói).

Por que este título? Por que este livro?

Foi somente após ter ganho os três volumes dos Contos Completos de Liev Tolstói, tradução de Rubens Figueiredo, editado pela CosacNaify em 2015, que vim a conhecer os textos da Nova Cartilha e Livros Russos de Leitura no volume 2.

Tolstói usa e escreve, quase compulsivamente, fábulas, casos, raciocínios, histórias reais, contos, pequenos grandes textos escritos e reescritos para sua cartilha e livros de leitura. Motivada, memórias em desafio, escrevi os primeiros textos. Fui me entusiasmando, foram me incentivando e, por fim, uma iluminação: por que não os reunir em um livro?

Mesmo poucos, esses textos do que chamo “Leituras Exemplares” me representam... sem a pretensão do que a cartilha e os livros de leitura foram para Tolstói e seu projeto educativo.

O conde Liev Nicolaievitch Tolstói (1828-1910) se dedicou pessoalmente a alfabetizar crianças em sua propriedade, Isnaia Poliana, e essa frase me faz refletir ainda mais sobre o processo pedagógico pelo qual se empenhou: “Quem deve aprender a escrever com quem, as crianças camponesas conosco, ou nós com as crianças camponesas?” A atualidade deste questionamento é fundamental e, pensando bem, acho que foi isso que, subliminarmente, me motivou a escrever.

A apresentação dos Contos Completos, feita pelo tradutor, Rubens Figueiredo, é esclarecedora sobre aspectos fundamentais do artista e de sua obra. “A preocupação contínua do escritor com as narrativas orais, de origens antigas, disseminadas entre as populações ágrafas ou analfabetas, foi um componente decisivo em seu esforço para elaborar formas diferentes de narrar. As fábulas, as vidas dos santos, as aventuras de heróis populares, as lendas, as parábolas, em lugar de serem vistas como formas elementares, atrasadas, superadas pelos padrões literários modernos, representam pontos de vista alternativos, de onde os vitoriosos se revelam menos consistentes em suas pretensões.” (página 28, volume 1).

O grande escritor russo, autor de “Guerra e Paz” e “Ana Karenina”, entre outras obras que marcaram o século XIX, tinha em mente que a Arte deve comunicar sentimentos do bem, pois o bem é eterno, ao contrário da beleza que é temporária. Em síntese, um bom artista é aquele que consegue passar uma mensagem complexa da forma mais simples possível. Pode-se não concordar com ele ou com o extremismo de algumas de suas ideias e atitudes, mas sua obra e seu legado o tornam uma das grandes referências da literatura mundial.

A Mulher e a Galinha (Fábula)
Uma galinha botava um ovo por dia. A dona achou que, se desse mais comida, a galinha poria duas vezes mais ovos. Assim fez. Mas a galinha engordou e parou de botar ovos.
(Tolstói, Contos Completos, vol. 2, página 68)

Usei esta pequena fábula, que aparece em Esopo e em outras culturas antigas, reescrita por Tostói, como epígrafe do livro. Mas o importante foi o questionamento feito pela amiga Irene Britto. Aqui, ao deixar sem a moral, Tolstói “abre” a interpretação... “Por que não entender a moral das fábulas e contos sob outra perspectiva em tempos tão plurais?”

Justifico, sob esta perspectiva,  a reescritura de alguns casos e da minha opção ao criar e classificar os textos. Sei que poderia ter escrito mais textos. Às vezes me acodem outras ideias, registro, penso em desenvolver talvez um segundo livro... mas aí também entra a proposta da publicação e de sua recepção. Minha experiência como professora em vários níveis de ensino e a literatura, conjugada com aulas de redação, durante décadas, sem dúvida serviu de arcabouço para os textos que fui criando “à maneira de Tolstói”.

A classificação dos textos, feita por Tolstói, serviu não só para me orientar como me motivar para a redação dos textos, sua diversidade possível. É certo que classificar um texto em determinado tipo ou gênero nem sempre é o mais adequado para o leitor ou para o próprio texto. Por exemplo, uma fábula pode ser um conto ou uma lenda. Uma história tida como real, não é recontada? Qual o critério para uma descrição ou um raciocínio? Ou para escolher episódios da História e contá-los de acordo com seu ponto de vista?

Ademais, Tolstói não separou os textos, agrupando-os por sua classificação. Para mim, isso foi também uma descoberta. A cada página uma leitura diferente, contrastante às vezes, mas reveladora dos significados com que apreendemos a realidade.

Odomaria Bandeira, educadora múltipla, fez várias observações sobre o livro, ainda nos originais. Mas o que mais me tranquilizou foi ela ter sintetizado “Esses textos denotam um modo de pensar, certa filosofia do cotidiano na qual se encontram muitos ensinamentos para quem quiser aprender, inclusive sobre lógica e linguagem; e nos remetem aos fluxos da memória e da tradição oral, a práticas sociais como metodologias do conhecimento e epistemologias que estruturam tipos de pensamento”.



Penso, pois, que este pequeno livro também possa ter um caráter utilitário e pedagógico, leitura para crianças, desafios para professores e alunos, alternativas de escritas, depoimentos. Acreditar que, sobretudo, seja um livro prazeroso, uma leitura marcante em possibilidades significativas.




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Eis a relação dos textos e sua classificação. Penso em publicá-los aos poucos, neste blog, um espaço que me satisfaz em divulgação nestes tempos digitais...

1.       Sotaque da cidade (História real)
2.       Como uma filha festeira denunciou a si mesma (História real)
3.       O céu do sertão (Descrição)
4.       O ribeirinho e o remo de ouro (Fábula)
5.       A flor de cinco pétalas (Raciocínio)
6.       Pau-de-colher (História)
7.       O poder das carrancas (Lenda)
8.       Os cafutins (História oral)
9.       Um causo de João Grilo, o Treloso (História oral)
10.   A mãe do Mato (Conto popular, História oral)
11.   O apanhador de Sonhos (Lenda)
12.   O gato e os filhotes de passarinhos (História real)
13.   Brincadeiras de menina (Conto/reflexão)
14.   O banquete das formigas (Fábula)
15.   Um governo tirânico e genocida (História)
16.   A computação eletrônica e o domínio de seu uso (Raciocínio introdutório)

Notas explicativas

  • Os dois textos que classifiquei como História oral foram um recorte de contos pesquisados oralmente e transcritos para o projeto Contos Populares Brasileiros, Pernambuco, coordenador: Roberto Benjamin. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1994.

  • “A Mãe do Mato” foi ligeiramente adaptado da publicação Contos de Sequeiros e Ribeirinhos: mapeamento de histórias orais. Organização de Cristiane Amador.  Editado pela Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco, Funcultura/Fundarpe, s/d.

  • Somente o último texto “A computação eletrônica e o domínio de seu uso” foi publicado no blog e teve a colaboração de Cecílio Bastos.  Não coloquei referências bibliográficas em textos pesquisados, pois a releitura foi com a intenção de sintetizar, em linguagem tipo artigo, considerações gerais. À maneira de Tolstói...
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Gosto muito de desenhar e fiz algumas ilustrações com lápis preto.  Um viés amador e pessoal em toda a produção.

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Uma seleção ilustrativa do que escrevi... apreciação geral. Observação: se alguém se interessar pela aquisição do livro me escreva. Prazer em divulgar.

Como uma filha festeira denunciou a si mesma
(História real)
Manhãzinha, a mãe acordou e percebeu que alguém entrava em casa, abrindo a porta com chave.

Deu de cara com a filha que havia saído à noite para dormir na casa de uma amiga, numa sexta-feira.

Para não ser surpreendida, vinha com os sapatos na mão, mas a mãe nem retrucou: o cheiro de suor da filha, os olhos embaçados, cabelos em desalinho, nada a esconder.

E sequer soube o lugar onde fora, com quem, se uma festa inocente ou indecente, se amigas ou namorados casuais... perigos que coração de mãe quer proteger e a vida adolescente quer para si em destemor. Melhor acreditar que tudo correu bem, a volta à casa.

Vá tomar um banho, menina!

O ribeirinho e o remo de ouro
(Fábula)
O ribeirinho, ao pescar no meio do rio, deixou cair o remo na água. Sem ter como remar, viu-se perdido na madrugada e no caminho das águas.

Rezou e pediu ao espírito benevolente do rio que lhe devolvesse o remo. Sua vida e o sustento de sua família estavam em risco.

O barco bateu num banco de areia e lá estava um remo brilhando ao sol, como as escamas do dourado. O ribeirinho agradeceu ao espírito do rio e levou o remo para casa.

A partir daquele dia, o ribeirinho pescou com abundância e sem perigos até o fim de sua vida.
Todos os ribeirinhos das correntezas e redondezas ficaram maravilhados com o remo. Mas o compadre invejoso foi até o rio em seu barco, jogou o remo na água. Rezou também e pediu um remo de ouro ao espírito das águas.

O fato é que nunca mais se teve notícias do compadre.

Pau-de-Colher
(História)

Casa Nova, na Bahia, município que faz parte da região do vale do rio São Francisco, fica situado na parte de cima da represa de Sobradinho, inaugurada em 1979, que transformou o rio num grande lago, um dos maiores do mundo.

Pertencendo ao município, existia um lugarejo chamado “Pau-de-Colher”, na caatinga longínqua, mas próxima de vários estados, Bahia, Pernambuco e Piauí. Com o nome do lugar, ficou conhecido o massacre de gente pobre por militares desses estados, em uma grande operação de guerra.  O fato aconteceu muito antes da represa, em 1938, após uma resistência dos que ali viviam em comunidade há alguns anos, com rígidas normas religiosas e de convivência.

Eram liderados por beatos e penitentes, dos quais de destacaram José Senhorinho e Joaquim Bezerra — o “Quinzeiro”. Representantes da mediação entre o mundo do sagrado e os pecados terrenos, atraíam lavradores pobres ou mesmo remediados que abandonavam tudo para ali viver e esperar a salvação eterna. Ascéticos, não bebiam nem fumavam, não comiam carne nem gordura, passavam o dia rezando pela salvação de suas almas, usavam luto pela morte do padre Cícero e tratavam uns aos outros como irmãos.

Cedinho, eram acordados pelo beato, com rezas cantadas em quadrinhas, como esta:

Alevante pecador
Trata do que há de fazer
Vamos cuidar em nossa vida
Antes de morrer

Esse modo de vida chocava a população urbana e perturbava a ordem social em vigor. Onde conseguir trabalhadores e consumidores? Sem dúvidas, as coisas caminhavam para um enfrentamento. A violência acabou se fazendo presente e “caceteiros” foi como ficaram conhecidos os sertanejos participantes da comunidade, pois usavam porretes com uma cruz para abater inimigos ou descrentes.  Boatos se espalharam. Dizia-se que ali, em Pau-de-Colher, havia centenas de cangaceiros se preparando para atacar toda a circunvizinhança e implantar o comunismo.

O comunismo era visto e difundido como a pior praga neste mundo de Deus, contra a verdadeira religião e a favor da tomada dos bens de quem os tinha para serem distribuídos entre todos. No imaginário dizia-se até que comunistas comiam crianças. O Brasil vivia uma ditadura, o chamado Estado Novo, cujo presidente era Getúlio Vargas.

A repressão chegou violenta, com a chegada da polícia militar baiana, depois por soldados piauienses, apoiada por jagunços, mercenários dos coronéis ricos e proprietários de muitas terras. Os caceteiros reagiram e houve mortes dos dois lados.

Para a destruição final, o comandante geral, tenente-coronel Maynard, auxiliado por batalhões do exército, comandou a operação, apoiado pelo coronel Dantas, interventor baiano, por policiais militares do Piauí e pelo capitão Optato Gueiros, de Pernambuco, temido comandante das forças volantes de combate ao cangaço.

Sabe-se que, armados de metralhadoras, os policiais pernambucanos abriram fogo, matando centenas de homens, mulheres e crianças. Depois de 42 horas de batalha, os sobreviventes foram caçados como animais e degolados. Há relatos de mais de 400 mortos. Outros foram presos. Os pais perderam o direito pátrio sobre os filhos, que foram entregues como escravos a famílias da região e da capital baiana. Essa brutalidade injustificável ainda choca na memória dos remanescentes vivos ou de seus descendentes.

Pau-de-Colher deve ser considerado não como fato isolado, mas uma confluência de acontecimentos semelhantes, um processo contínuo de perseguições a movimentos populares, de cunho religioso em sua base estrutural, desde o Ceará. Movimentos esses caracterizados como insurgentes contra o governo autoritário da época, contra os ricos coronéis e seus latifúndios, detentores de um poder patriarcal e secular. Tudo agravado pela seca que faz parte do clima da região e que desencadeava a penúria para os nordestinos sem terras, moradores da caatinga.

Portanto, esse ainda é o tipo de exemplo de história em que se quer atribuir justificativas reducionistas, seja pela ignorância de um povo iletrado ou pelo fanatismo religioso de cunho milenarista, o credo no apocalipse do fim do mundo, como lhes havia ensinado a Igreja colonizadora.

O então presidente do Brasil, ditador Getúlio Vargas, enviou um telegrama ao interventor Dantas, felicitando-o pelo extermínio de Pau de Colher, entre outras comemorações da vitória dos soldados sobre os “fanáticos”.

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Agradeço também às pessoas que foram ao lançamento do livro no espaço Janela 353, gentileza de Chico Egídio e do Café de Bule. Palavras generosas ouvi. Muito obrigada.

 





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