Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

terça-feira, 15 de setembro de 2020

NOITES BRANCAS de Dostoiévski: alfinetadas narrativas

 

                     

Noites Brancas, conto, novela ou romance, de 1848, de F. M. Dostoiévski, me fez refletir sobre um objeto em certa medida insignificante e que aparece na história com uma função essencial para o desenvolvimento do enredo: um alfinete. Mas, no desenvolver desta análise, surgiram outras conexões e referências. De todo modo, espero, não me estender na sua complexidade, pois há excelentes trabalhos acadêmicos sobre esta obra, cujo gênero literário até mesmo tem sido difícil especificar.

Nástienka, a protagonista feminina da história, mora com a avó idosa, cega, que, para controlá-la, usa um alfinete unindo a saia da neta com a saia dela. Mais do que uma metáfora do controle, esse alfinete e sua menção na história nos ajudam, sem dúvidas, a compreender melhor a personagem, donzela romântica e sonhadora, assim como o sonhador protagonista, narrador da história. Este é um flaneur pelas ruas de São Petersburgo, local da história narrada, tendo ambos se encontrado ao acaso numa ponte, em uma das típicas noites brancas.

 

Essas noites brancas acontecem entre o fim de junho e começo de julho, dias inteiros de claridade, fenômeno devido ao fato de São Petersburgo estar localizada próxima à região do Círculo Polar Ártico.  Evidentemente que isso altera a rotina da cidade e de seus habitantes. No conto, a indicação temporal é um componente narrativo importante, pois é justamente à noite em que se dão os quatro encontros da história e isto tem uma razão de ser, criando uma atmosfera quase irreal, até mesmo fantasmagórica. Uma manhã, no final, apenas complementa o enredo e o destino do sonhador.


Como mulher, além da aparente insignificância de uma alfinete na história, ele se complementa no fato de a personagem de Noites Brancas, Nástienka (diminutivo de Anastácia), única personagem nomeada, já aparecer "diminuída" no formalismo dos nomes russos, em que, invariavelmente, se deve incluir patronímico e nome de família. Uma intimidade se instaura no par protagonista da história, possibilitando confidências e perspectivas em primeira pessoa.


“-Pois chamo-me... Nástienka.

- Nástienka. Só Nástienka?

- Só? Acha que é pouco, criatura insaciável?

- Muito pouco! Oh, não, de maneira nenhuma. Pelo contrário, já é muito, mesmo muito, minha amiga, que desde a primeira noite se tenha tornado logo para mim Nástienka simplesmente.” (p.652)

 

N. (Nástienka) não tem pais, criada desde a infância pela avó, que a educou, mesmo com dificuldades financeiras. Porque foram unidas com um alfinete, a própria N. nos conta.

 

“... você, com certeza, tal como eu, deve ter tido uma avó. A minha é cega e não consente por nada deste mundo que eu me afaste um momento do seu lado; de maneira que já me esqueci quase de falar. Haverá já dois anos fiz-lhe ver que ela não podia impedir que eu lhe pregasse uma partida; que fez ela então? Pegou na aba da minha saia e pregou-a com um alfinete à da sua... e assim passamos agora as duas todo o santo dia, agarradas uma à outra. Ela faz meia, apesar de não ver; e eu tenho de ficar sentada a seu lado, a coser ou a ler um livro... Oh! Às vezes ponho-me a pensar e parece-me estranho que viva assim, já há dois anos, pegada a ela desta maneira...” (p. 651).

 

Esse alfinete, mulher de outra geração que sou, usei em fraldas de algodão nos bebês. Alfinete que é conhecido como “alfinete de segurança” (tradução do inglês safety pin) ou alfinete de fralda, diferente do alfinete de costura. Imagino que esta avó russa usasse algo similar. E pensar que nos anos 60 e 70 do século XX, no modismo das roupas rasgadas, no punk, esses alfinetes foram usados como decoração pessoal... uma polêmica linguagem do inconformismo.

 

Mas o que é esta “maneira” de viver assim? O que este fato representou como visão de mundo para a neta? Talvez isso possa parecer um detalhe menor no todo da história, mas aprendemos que na obra literária nada é por acaso. São procedimentos que fazem parte da trama, gerando interpretações e dialogando em diversos níveis. O estudo da polifonia em Dostoiévski nos mostrou esta característica narrativa que perfaz um de seus aspectos mais criativos e desafiadores.

 

 Além da avó cega, vive na casa também uma criada, surda. Órgãos dos sentidos que incluem a voz de Nástienka, impedida de falar de seus sonhos e desejos. Anula-se a identidade de N. Sem autonomia, o vínculo com a avó é determinante para sua percepção de mundo, sua escolha de um futuro. Além das meias, mesmo cega, essa avó tecelã também exerce papel de casamenteira, pois “vê” nos inquilinos do andar superior de sua casa um provável noivo para a neta, o que seria certamente um alívio para ela.

 

“Nástienka, o inquilino é velho ou novo?... “E que aspecto tem? É pessoa distinta?... Um inquilino pobre e, entretanto, com seu aspecto distinto! Dantes era tudo muito diferente.” (p. 664)

 

Há um parêntese na narrativa da segunda noite com o destaque para “História de Nástienhka” em que ela conta detalhes e causos de sua história. Ficamos sabendo mais sobre a avó, que não é mera coadjuvante, como se pode perceber. A escolha de um marido rico poderia significar uma mudança social importante para estas mulheres, hoje reduzidas a trabalhadoras em condições bem modestas.

 

“Julgo que a minha avó foi rica noutros tempos, porque está sempre a falar dos belos dias que se foram. Foi ela quem me ensinou o francês, embora depois me tivesse arranjado um professor. Aos quinze anos – agora tenho dezessete – deixei de estudar. Foi por essa época que fiz aquela diabrura.”  (p. 662)

 

Nástienka narra um fato engraçado, quando caiu na frente do inquilino ao se levantar, por causa do alfinete, e que a deixou bem envergonhada. Aliás, não só acontece esse episódio cômico, que traz à narrativa um estranhamento singular, outra característica observada na obra de Dostoiévski.  “Olha, não se ria da minha avó. Eu, se me rio, é por causa do cômico da situação. Que havemos de fazer-lhe? A vovó, coitada, é assim... Mas fique sabendo que, apesar de tudo, gosto dela.” (p. 663)


Tanto gosta dela que, nos planos de um possível casamento, pensa em levá-la, assim como as criadas. Também o possível noivo, no caso o sonhador, quer a mesma coisa. Ora, a continuidade da família atual, de sua estrutura, ficará garantida no futuro. Na riqueza ou na pobreza...
 
O fato é que Nástienka não tem somente a saia presa. Sua alma (anima) também está presa neste mundo em que o destino da mulher é colocado nas regras rígidas da moral burguesa e cristã. Sabemos que um inquilino especial se instala na casa, em um quarto no andar superior. Escadas são índices de um alcance proibitivo, mas N. se apaixona por ele. Assim, ele empresta livros “decentes” que a moça lê para a avó. Romances e poemas, sempre com a recomendação da avó: “não te esqueças que toda cautela é pouca.”
 
E, num rompante gentil, o inquilino, através de um estratagema, convida aquelas mulheres entocadas a saírem, irem à opera.  “- O Barbeiro de Sevilha! – exclamou a vovó. – É o mesmo Barbeiro que cantavam noutros tempos?” E a avó confirma que já cantara a parte de Rosina. (p. 666)
 
A referência aos poemas e romances lidos, principalmente às obras de Walter Scott, compõem referências intertextuais que nos ajudam a compreender como se vai construindo o mundo e a personalidade de Nástienka, que confessa, já sonhara até com um príncipe chinês. Mas o melhor, acredito, seja a referência ao Barbeiro de Sevilha, como ópera mesmo. A Commedia Dell Arte se insinua aqui como mais uma ironia nesta desastrada história de amor dos jovens personagens de Noites Brancas. Rosina é disputada por dois pretendentes e, se não for certo exagero meu, essa avó represente uma máscara de Fígaro...

O inquilino vai embora de São Petersburgo. Desesperada, Nástienka arruma sua trouxinha e se oferece para fugir com seu “príncipe” do andar superior. Compreende-se que a personagem, em certo momento, haveria de querer se libertar. A situação financeira o impede de aceitar, mas promete vir, depois de um ano, encontrar-se com a moça apaixonada. Ele se atrasa e quem leu Noites Brancas entende por que Nástienka estava chorando na ponte.

 

Há uma certa ambivalência nos sentimentos dessa mulher apaixonada, que gostaria de ter os dois pretendentes ao mesmo tempo. Mas nada de muito dramático, apenas um inesperado e ardente beijo no sonhador, como despedida. Na sua escolha, ela irá se casar com o amado inquilino que chega finalmente. E Nástienka continuará sendo somente Nástienka, uma romântica mulher que idealiza o amor e sua própria vida.

 

Esta escolha de Nástienka, determinante também para o destino do esperançoso sonhador, já aparece prevista na epígrafe: ele continuará solitário. Apenas lhe restará o vislumbre de um fragmento de realização do sonho para justificar toda uma vida. 


“... Fora ele criado

Para habitar um instante que fosse

Nas vizinhanças do teu coração?”                                                      I.Turguêniev


...Иль был он создан для того,
Чтобы побыть хотя мгновенье.
В соседстве сердца твоего?..

Ив. Тургенев


Esses são os versos finais do poema “Flor”, composto por Turguêniev, ainda no início de sua carreira literária, para o nº 8 da revista Anais da Pátria, de 1843, cinco anos antes de Noites brancas.

 

Não há, pois, esperança de amor ou companhia para esse homem “pequeno” da Rússia czarista, mesmo que sejam tiradas as teias de aranha de seu quarto, símbolo de um sonho passado. Entretanto, retomando a epígrafe, nos deparamos com um ambíguo consolo quando a narrativa termina com esta interrogação: “Meu Deus!  Um momento de felicidade! Sim! Não será isso bastante para preencher uma vida?”

 

Será?

 

______________________

Usei, como referência de leitura Noites Brancas, em FIÓDOR M. DOSTOIÉVSKI, OBRA COMPLETA, Volume I, 1963, Companhia Aguilar Editora; páginas 641-686; tradução de Natália Nunes. Observe-se que nesta edição não consta a epígrafe. Pesquisei a original em russo e citei a tradução que está na edição da Editora 34.


Elisabet Gonçalves Moreira

Petrolina, setembro de 2020

 

 

Indico também assistir ao filme Noites Brancas, de Luchino Visconti, de 1957, uma adaptação cinematográfica que ganhou o prêmio do Festival de Veneza naquele ano. Analisar o filme, em contraponto com a obra de Dostóiévski, é outro trabalho instigante. Aliás, há várias adaptações de Noites Brancas em outras linguagens.

 

https://www.youtube.com/watch?v=-G507SE3K0c


 

Cartaz do filme soviético Noites Brancas, de 1960, usado como ilustração.

 

terça-feira, 1 de setembro de 2020

A LENDA DA PONTE DO DIABO

 

Minha alma curiosa está sempre a estabelecer pontes... conhecimentos e informações relacionadas, um desvelar de enigmas e histórias a preencher os dias em desafios. Gosto disso, dessa sincronicidade que surge como uma maravilha do cotidiano e, talvez, do além dele.

Assistindo pela TV à série Hinterland, disponível na Netflix, vejo, no primeiro episódio, com o nome “Devil´s Bridge” ou Ponte do Diabo, essa referência que despertou minha curiosidade e que vai se relacionar não só com a história, como a toda a série (três temporadas completas), de forma bem significativa.

Traduzido do inglês - Hinterland - Y Gwyll - na versão original em língua galesa - é uma série de drama policial noir, ou seja, um policial mais psicológico, com aspectos mais humanizados nos conflitos e menos tiroteios, perseguições pelas estradas e outros estereótipos do gênero. A tradução de hinterland é interior, e é ali que se passa, numa cidade interiorana do país de Gales, à beira mar, com um enfoque sobretudo nas pequenas propriedades rurais, no entorno da cidade, onde geralmente acontecem os crimes e as investigações.

A Ponte do Diabo / Pontarfynach em Ceredigion, País de Gales, apresenta três pontes construídas uma em cima da outra. A ponte original data de 1075–1200, enquanto a segunda é uma ponte de pedra do século XVIII. Ela foi colocada em cima da primeira quando se acreditava que não era mais estável. No século 20, a última parte da ponte foi adicionada para reforçar toda a construção. A altura é considerável até as corredeiras abaixo.

Não conheço esta ponte, mas imediatamente me lembrei de outra ponte do diabo, na França, que visitei em uma viagem no ano de 2014. E uma geração de associações foram ativadas. 

Ponte do Diabo, sobre o rio Herault, nas proximidades de Saint-Guilhem-Le-Désert, sul da França; foto de minha autoria. A ponte mede 50 metros, foi construída entre 1028 e 1031, pelos monges de duas abadias próximas, de Aniane e Gellone, que controlavam ambas as margens do rio. Considerada uma das mais antigas pontes medievais francesas, Patrimônio Mundial pela UNESCO, faz parte do Caminho de São Jacques de Compostela na França, desde 1998. Este caminho tem relação com o Caminho de Santiago, com várias indicações para os peregrinos.

Minha amiga francesa contou a versão conhecida da lenda no lugar. Como invariante dessas lendas, acontece o pacto com o diabo a fim de construir a ponte, já que parecia impossível ser construída por mãos humanas. O diabo aceita construir a ponte, mas quer, em troca, a primeira alma que a atravessasse. Aí aparecem algumas variantes, histórias da tradição oral, mas o fato é que a ponte é construída - geralmente em uma única noite - e o diabo é enganado, pois o homem ou a mulher, com muita esperteza, faz um animal primeiramente atravessar a ponte.

Em outras versões, o diabo se comprometeu a construir a ponte em uma noite, antes do amanhecer um galo canta; o diabo, acreditando que o dia está raiando, deixa cair a última pedra e desaparece. Normalmente, esta última pedra ainda está faltando. Isso justifica também os solavancos que podem ser sentidos na travessia da ponte.

Para cada ponte do diabo há uma história particular. A tradição oral está perpetuada no nome, na simbologia e nos mistérios de nossa humanidade.

Encontrei, na web, outra história desta ponte, um diálogo singular entre o demônio e São Guilherme (Saint Guilhém). Coloco a versão traduzida e adaptada no final deste texto.

Só na França existem dezenas de “pontes do diabo”, assim como em toda a Europa. Tanto as pontes como as lendas que as cercam estão catalogadas na classificação de AArne-Thompson, número 1191, o diabo logrado. No Brasil não existem pontes do diabo, mas em Portugal, com muito mais séculos de história, sim, há.

E por que elas ficaram conhecidas como pontes do diabo? São pontes muito antigas, do tempo romano e da Idade Média, construídas com pedras, numa engenharia que causa admiração, pois o perigo das águas, dos abismos e desfiladeiros desafiam a imaginação. Como foi vencida esta dificuldade?

O imaginário se pôs a justificar. Só pode ser obra do demônio...

Até me pergunto, por que não obra de Deus? Bom, Deus está muito ocupado com coisas intangíveis e não com construções. Aliás, o diabo está mais próximo de nós do que pensamos...

Voltemos ao episódio da série, com alguns elementos que se relacionam nesta leitura. Não se preocupem, não vou fornecer o nome do assassino e ser uma estraga-prazeres (spoiler). O foco subliminar está no mal e no bem, essa dualidade que nos caracteriza e nos acompanha, na vida e na ficção, interfaces em desatino.

Sempre há uma morte para desencadear a história.  Na casa da vítima, uma idosa, o detetive, que chegara de Londres, recolhendo pistas, vê um quadro no chão com o vidro quebrado. Aliás, este quadro vai aparecer em outras paredes e episódios, também uma conexão e um mistério a ser decifrado.

Salem – pintura de Sydney Vosper, datada de 1908, representando uma cena dentro da Capela batista de Salem, em Pentre Gwynfryn, Gwynedd, País de Gales. 

 

A parceira do detetive, que é da localidade, logo esclarece também o detalhe mais significativo da pintura. É que, no xale da figura principal do quadro, vestido com o traje nacional galês, aparece a figura do diabo. A avó lhe havia mostrado quando criança e ainda sente medo. O detetive – e eu – também não consegue ver. Será que olhamos direito?

 

Pesquisei e essa representação é bem polêmica. Reproduções em massa dessa pintura foram feitas em todo o início e meados do século 20, tornando-a famosa, um ícone de Gales.

Observe o quadro a seguir: é assim que se identifica o diabo na pintura... Como o próprio detetive afirma mais adiante “Fica muito claro quando você sabe o que procura”, apontando os detalhes no quadro.

(Devil´s horn: chifres; Eyes: olhos; Nose: nariz; Mouth: boca; Beard: barba)

Mas a história continua. E aparece então a referência à Ponte do Diabo (Devil´s Bridge) onde os detetives vão procurar pistas no antigo lar de crianças da cidade, próximo à ponte, pois a idosa ali trabalhara muitos anos. Ficamos sabendo que hoje funciona no lugar um hotel com o mesmo nome da ponte.


A detetive diz que, na localidade, ameaçavam as crianças de serem levadas à ponte se não comessem verduras, por exemplo, ou se comportassem mal.  Intrigado, o detetive pergunta o porquê do nome de ponte do diabo. A parceira então sintetiza a lenda da ponte que reproduzo aqui, a partir das legendas do episódio.

 

“Um dia, uma senhora e sua vaca ficaram separadas. Ela estava em um lado do rio e a vaca estava no outro. Enquanto ela estava pensando em como resgatá-la, o diabo apareceu e se ofereceu para construir uma ponte. Mas isso custaria a alma do primeiro que a atravessasse. Ela aceitou. Na manhã seguinte, lá estava a ponte. O diabo disse: “Eu cumpri minha promessa, agora cumpra a sua.” A senhora pegou um pão do seu cesto, jogou do outro lado da ponte e seu cachorro foi buscá-lo.

- Então o diabo foi enganado por uma senhora?

O diabo ficou tão constrangido que nunca mais voltou a Walles.

- Alguns dizem que ele nunca foi embora.”

 

Como bom detetive, ele vê marcas de sangue no parapeito da ponte, desce até às corredeiras e encontra o corpo da idosa assassinada. Detalhe: todos os dentes lhe haviam sido arrancados.

Gosto muito destes índices simbólicos que aparecem e nos fazem refletir. Mesmo que tenha sido uma vingança, uma retaliação contra a megera, neste caso, ter os dentes arrancados é perder a força agressiva, a energia vital, uma tortura terrível.

Os conflitos da história são entre uma educação religiosa puritana e os atos que profanam essa mesma educação, merecendo castigos cruéis, sádicos. Inclusive, o fato de a idosa assassinada ter sido levada para a Ponte do Diabo é também analisado pelo detetive. “Se você for o diabo”, leva-a para casa.

Intrigou-me também o fato de que, nas imediações do antigo lar infantil, encontra-se uma espiral celta, feita de pedras, simbologia da jornada entre a vida e a morte. Naquele lugar fora enterrada de modo clandestino uma bebê, para despistar a mãe e resguardar o local. Evidentemente que, em uma narrativa, cinematográfica ou não, todos os índices fazem parte da dinâmica da trama.

Há, portanto, muitas referências da presença do mal, dos “perigos do pecado”, para justificar os abusos e castigos às crianças abandonadas que viviam no lar infantil. Não só o quadro da pintura desencadeava as piores lembranças, como o “hard room” ou quarto do isolamento, a cela solitária como a conhecemos, um purgatório para expiar as culpas.  A própria idosa acreditava estar fazendo o bem, era muito devota. Afinal, por que ela fora assassinada? Por quem? Qual o motivo?

Aí é assistir ao episódio, ou à série toda, três temporadas, e descobrir você mesmo.

O que desejo ressaltar aqui é o imaginário coletivo, lendas e referências da tradição oral e histórica que dialogam na ficção e fornecem a trama para outras narrativas.

Assim, a Ponte do Diabo, que narra uma das muitas histórias da tradição oral em que o diabo foi enganado, nos faz questionar também o alcance de seus poderes. Ora, ele é um engenheiro tão poderoso para construir uma ponte em uma única noite, mas é enganado por alguém mais esperto, de uma forma jocosa e humilhante. Parece até que ele não é assim tão mau. No exemplo, o diabo vai atender a uma mulher que perdeu a vaca, sem dúvida uma pobre camponesa.

No conto popular, já se observou, o diabo às vezes parece mais um ser humano do que um personagem agressivo. Isso está em contraste com as doutrinas da Igreja, que o retratam como uma criatura demoníaca horripilante, sempre à espreita para nos levar ao inferno, a cair em tentação. Essa ambiguidade é interpretada sob os mais variados aspectos, desde o fato original de ter sido um anjo expulso do paraíso. Para você acreditar no céu, você tem que acreditar no inferno, isto parece óbvio.

“A noite acabou e o dia chegou. Vamos descartar as obras das trevas e vestir a armadura da noite.” Romanos 13:12

Esta citação bíblica aparece no filme, um recado deixado pela vítima em seu papel de catequese, no qual acreditava e se justificava.

Não é objetivo deste trabalho, para um blog em tempos virtuais, ir a fundo em questões tão polêmicas. Historicamente falando, a essência do Mal é reconhecida em toda e qualquer cultura, e sempre existiram tentativas de personificá-lo. É preciso reconhecer o papel do simbolismo religioso que nos oferece uma dimensão mais profunda da realidade. Vejo, com preocupação, o fanatismo que procura invalidar as tradições orais e seu poder de encantamento e catarse lúdica, de uma memória coletiva que subjaz em nosso inconsciente e cultura.

A humanidade atribui sentidos a fatos do cotidiano, a obras de natureza de procedência invulgar, desconhecida, onde não consegue estabelecer razões sensoriais. Também é essa a justificativa para os mitos que surgem a partir da necessidade de se explicar a origem das coisas. As lendas são narrativas que se inserem nesta realidade fantástica. Modificam-se, atualizam-se, mas continuam a desafiar nossa maneira de ver e compreender o mundo.

E assim continuamos a nos questionar. Atravessemos as pontes de nossa subjetividade com a paixão pelo conhecimento... Amém!

Elisabet Gonçalves Moreira

Petrolina, 1 de setembro de 2020

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A lenda da ponte do Diabo

Os monges das abadias de Gellone e Aniane, situadas às margens do rio Hérault, não poupavam esforços para a construção de uma ponte sobre o rio, na foz das   perigosas gargantas da planície. Porém, todas as manhãs, notavam que a obra realizada na véspera fora sistematicamente destruída. As duas congregações monásticas logo perceberam que o projeto era sabotado. Pedem então a proteção de seu padroeiro Guilhem que, uma noite, decide ir sozinho ao local para prender possíveis criminosos.

 

Depois de algumas horas, postado à espera, Guilhem percebe que o Diabo, disfarçado em uma fantasia de cabra preta, está destruindo o trabalho na ponte. Guilhem então o chama:

"Satanás, eu te reconheci em seu ridículo disfarce. Por que você destrói o trabalho de meus irmãos desta forma? "

- "Eu não me importo com os negócios de seus cães servos na terra. "

- “Satanás, em vez de nos confrontar aqui, vamos tentar resolver nossa disputa de forma inteligente. "

- "Pela primeira vez, concordo com você Guilhem! Então me escute com atenção. Eu proponho construir uma ponte mais sólida em três dias. Em troca, você concorda em me entregar a alma de um de seus cães servos. Aquele que cruzar primeiro a ponte será meu e levarei sua alma comigo até o fundo dos abismos do inferno. "

Sem responder às provocações do Diabo e com estas garantias, Guilhem retrucou:

- “A alma de um dos meus cães servos! Você não poderia dizer melhor Satanás! Vamos nos encontrar aqui em três dias e três noites, quando você tiver construído a ponte."

Com essas palavras, Guilhem voltou para a aldeia.

Três dias e três noites se passaram e chegou a hora de Guilhem e seus companheiros voltarem à ponte para ver o final da obra. Chegando à orla do local, Satanás lhes dá as boas-vindas, alegre com o trabalho que acabara de concluir e com a ideia de levar consigo uma alma humana. Ele então se dirigiu a Guilhem nestes termos:

- "O trabalho está terminado. Cumpri minha parte do trato. Agora cabe a você dar o que me prometeu. "

Guilhem tirou um osso da jaqueta, jogou-o pela ponte e o cachorro, que estava ao lado dele, atravessou a ponte. Enquanto o Diabo não entendia a manobra, Guilhem exclamou:

- "Satanás, veja que eu respeito meus compromissos. Três dias atrás você me pediu a alma de um dos meus cães servos. Bem, aqui está o mais fiel de todos. "

- "ARRRRGH !! Guilhem !! Você me traiu. Minha vingança será terrível! "

Em sua raiva, o Diabo tentou destruir a ponte, mas, tendo prometido isso da forma mais sólida possível, não conseguiu. Finalmente, percebendo que não poderia se vingar, ele se jogou, apesar de tudo, nas águas do Hérault e cavou um abismo negro em sua queda.

Às vezes, em tempos de inundação, a raiva do Diabo parece despertar e seus gritos surgem do fundo do abismo.

É assim que, por muitos e muitos anos, peregrinos e pessoas, cruzando a ponte, carregavam pedras para jogá-las no rio na esperança de deixar o Diabo lá.

https://www.saintguilhem-valleeherault.fr/la-legende-du-pont-du-diable