Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

São João do carneirinho: o detalhe na pesquisa

Uma pausa à Série Mexicana... em conversas sobre metodologia de pesquisa, me foi pedido um texto sobre considerações que faço e demonstro. Então, aqui vai o texto que, posteriormente, será também publicado na revista virtual da UPE.


A PESQUISA E O DETALHE:

A CARDABELA NA IMAGEM DE SÃO JOÃO DO

CARNEIRINHO

Elisabet Gonçalves Moreira[1]

Para Dominique e Jean de Poudevigne



São João do carneirinho: imagem de domínio público, sem autoria.

Embora as festividades do São João no calendário de festas religiosas tradicionais em nosso país tenham mudado muito – e é natural que isso aconteça na dinâmica dos tempos – esta imagem do São João menino com seu carneirinho ainda permanece e está instaurada na memória coletiva. Parte integrante das práticas rituais e dos costumes, ela é de tal modo popular que extrapola seu sentido como imagem de devoção.

Invariante, constata-se a presença central do menino, nesse caso em meio corpo, com cabelos cacheados e uma auréola dourada, vestido parcamente com uma pele que pode ser de camelo ou de carneiro, um ombro nu, segurando um cajado fino de madeira que ostenta a faixa com os dizeres em latim “Ecce Agnus Dei” (Eis o Cordeiro de Deus), um filhote de carneiro branco apoiado em seu braço, com um fundo que, geralmente, lembra uma noite de céu estrelado e, na parte inferior, nuvens e um arranjo simétrico de flores. Este conjunto, como se fora um altar, dá a conotação religiosa de que a imagem necessita para ser venerada, além das paredes da igreja paroquial.

Venho trabalhando há alguns anos com esta representação, de cunho popular, e sua simbologia. Já escrevi e apresentei partes dessa pesquisa, incluindo um trabalho comparativo com pinturas do mesmo tema de mestres consagrados na arte universal. Mas, neste momento, apresento basicamente um artigo, tomando um detalhe para exemplo de que o método, que leva ao conhecimento e à interpretação, traz também revelações e coincidências inesperadas. 

Partindo de algumas premissas metodológicas, desde o princípio de que, mesmo uma imagem é um texto, e que ele pode ser lido, isto é, decodificado dinamicamente, onde tudo é significativo, destaco a análise semiótica e suas correlações interpretativas, de um modo menos acadêmico para um artigo simples.

Assim, o detalhe a ser analisado é a cardabela (língua occitana) ou cardabelle (francês) a flor que aparece na parte inferior da imagem, no centro do buquê florido, rodeado de galhos floridos em nuances de um rosa forte. Há certas conexões ao se fazer uma pesquisa que nos proporcionam não só conhecimento, mas o prazer mesmo de compreender seu significado e como a ele chegamos. O que implica em também associar o detalhe com o todo, nesta dialética da interpretação, da leitura e da narrativa a nos desafiar.

I.                A cardabela representada

Essa imagem de São João do carneirinho, hoje digitalizada e de domínio público, sem autoria, teve sua origem, certamente, em uma ilustração para os “santinhos” católicos bastante difundidos na Europa ocidental e em nosso país, nos séculos XIX e XX. Quando comecei a fazer a leitura sígnica dos elementos constitutivos desta imagem, não identifiquei de imediato que flores eram essas e isso ficou pendente.

Entretanto, numa viagem ao sul da França, em 1992, meus olhos viram a cardabelle ou cardabela e o alumbramento se deu. Em uma vila histórica, dos tempos medievais, vi, nas portas das casas, a cardabela em destaque. Mas eu a vi também no chão, nativa, no campo, no tempo mais seco.
                             

                                 Cardabela seca                               Cardabela no solo                                    Cardo mariano

A cardabela não existe no Brasil, que eu saiba, mas pode ser comparada ligeiramente a algumas espécies de  “sempre-vivas”, flores típicas do cerrado, já que secas, são também duradouras e usadas para ornamentação. No vasto planalto de Larzac, sul da França, cardo é também outro nome para a flor desta planta selvagem tipicamente mediterrânea e que pertence à família das alcachofras. Como o girassol, ao se abrir, de um amarelo claro, ela tem a particularidade de captar a luz solar e se fecha quando cai a umidade e chega a chuva. Por isso ela é tida como uma espécie de barômetro, para previsão metereológica. Os pastores, criadores de ovelhas, também colhiam a flor da cardabela pelo seu miolo comestível e usavam as folhas espinhosas para desembaraçar a lã de seus rebanhos.

Sobretudo – e é esse detalhe do detalhe - diz-se que a cardabela, quando seca, é um amuleto de boa sorte e felicidade. Ela serve também para espantar os feitiços e as bruxas ao ser colocada com fé na porta da casa e na entrada dos celeiros e dos estábulos, para proteger os animais.  É pois muito significativo que a cardabela seja o símbolo de toda a região.

As outras flores do ramalhete também são classificadas como cardo, de folhas espinhentas, encontradas facilmente por toda Europa, à beira dos caminhos, em solos mais secos. Acredito que seja um cardo-mariano, embora haja muitas espécies dessa planta. Sua inforescência, cor de rosa ou púrpura, atrai principalmente abelhas e isso é fundamental para os apicultores. Também caule e folhas são comestíveis e têm vários usos medicinais. 

E o que elas estão fazendo no quadro de São João do carneirinho, se não esta correlação simbólica para homenagear um santinho, mediador de nossas preces e bons augúrios na vida terrena, como mostrar isso aos fieis (e a uma pesquisadora brasileira)  a constatação da origem desta imagem?

Sem dúvidas europeia, mais precisamente francesa, outras pesquisas paralelas mostraram que, mesmo que não tivesse sido impressa em “imprimeries” (gráficas) do sul da França, a matriz é de lá, um protótipo padrão. Todos os componentes da imagem se inscrevem numa tradição que consolida a representação de um São João ainda menino, uma criança modelo de virtude, primo de Jesus, bem diferente das representações de São João Batista adulto, batizando o Cristo ou decapitado pelo capricho de Salomé, como relata a Bíblia.

II.                A cardabela e a poesia occitana

Em outra ocasião, ganhei de um amigo francês, que mora perto de Montpellier, sul da França, um belo livro. “La Cloche D´Or”, cuja tradução literal é “O sino de ouro” com a foto em destaque da cardabelle na capa, já que a edição é francesa. Difícil fazer a indicação bibliográfica deste livro, mais um álbum, pois não possui ficha catalográfica e tem vários “patrocinadores”. [2]

O prefácio do livro é esclarecedor. Belas fotos, clichês para cartões postais e textos que complementam as imagens. E há um questionamento sobre o título que mostra a importância simbólica desta flor para a região. Um signo que realça a beleza da luminosidade solar, iluminada pelo poema de Max Rouquete, escritor assumidamente occitano.

Na página 58 encontramos a grande homenagem à cardabela. Primeiro na língua occitana, tão parecida com as línguas ibéricas, quando falada, sem o sotaque “carregado” dos franceses do norte. Mesmo os franceses reconhecem essa diferença dos sotaques.

Na página ímpar, a seguir, a “tradução” para o francês moderno, do mesmo autor.

Entre a língua occitana e o francês moderno, me atrevo a fazer uma tradução literal, para maior entendimento do texto e da poesia nele implícita.

CARDABELA – Cardabela, rosa verde/ e roda dentada, /relva solar nascida ao rés do chão /dos amores da terra e do sol.
Arrancada pelo vento do inverno/ tu te lembras que roda tu és./ E roda, porque tu rodarás/ pelas clareiras e planícies,/ livre, liberta de qualquer lugar,/ como a roda da desfortuna.
Como a coruja e o morcego,/ na porta a gente te prega,/ de cara com teu pai o sol./ Teus dedos sobre teu coração se fecham/ e se abrem. Morta, vives. / A cruz traz a imortalidade.
E tu existes, na claridade, a mão aberta como a mão eterna dos velhos tempos.

Observação: No verso “A cruz traz (ou faz) a imortalidade” há um componente imagético subliminar. O símbolo da Occitania é uma cruz, como se pode ver a seguir, relacionada também com a história das cruzadas medievais da região.  Lembra a cardabela? 


III.         A língua occitana: relações ampliadas

De detalhe em detalhe, algumas poucas relações que viabilizam caminhos  e possibilidades de leitura. Quando se estuda a história da língua portuguesa ou da literatura portuguesa, herdeiros que somos de nossa história de colonizados, aprendemos a importância do latim clássico ao latim vulgar, cruzado que foi na formação das línguas ibéricas. E em uma delas está a língua occitana.

A Occitania ou Provença nos leva também à lembrança da poesia e da música dos trovadores que escreviam e cantavam “em maneira de proençal”, ou seja, provençal. O Trovadorismo está fincado nas raízes da literatura brasileira até hoje, seja em textos consagrados, seja na poesia popular. Afinal, bem sabemos, a intertextualidade é um fato onde tradição e modernidade se mesclam e dialogam a todo instante. Por que não no imaginário?

E, além disso, retorno à introdução deste artigo, quando falei de revelações e coincidências. Ganhei outro livro. Desta feita de um ex-aluno, hoje colega e pesquisador de cordel.

RELIGIOSIDADE POPULAR França e Pernambuco: Diálogos, expressões e conexões de Silvério Pessoa (São Paulo, Fonte Editorial, 2016).

Quer melhor título do que esse? Embora o autor, também músico, Silvério Pessoa, não cite a cardabelle em sua dissertação de mestrado, a temática só confirma o que foi dito. Ele mostra, através de sua pesquisa, que a o catolicismo europeu foi introduzido pelo Mediterrâneo e acompanha “diálogos, expressões e conexões” entre França e Pernambuco, pelo viés da religiosidade popular. E faz uma citação da qual aproveito um fragmento.

“A religião popular é um dos elementos de uma cultura popular que permaneceu na França – especialmente no sul – autônoma até cerca de 1860. (...) Religião popular, ou seja, religião vivida, vivenciada por muitos  (...) em oposição a uma religião prescrita, oficial. Uma e outra caminham em ritmos diferentes.”  (p. 79)

Como justificar, no caso de nossa imagem, por exemplo, sua colocação nos mastros enfeitados das festas juninas? Ou como referência e elemento decorativo nas procissões e até nas quadrilhas?  Os fogos e foguetes de São João remetem também à imagem que se associa a outras histórias, a das fogueiras, das “simpatias” e seu simbolismo agrário. Embora estas festas, espalhadas pelo Brasil, tenham grandes diferenças entre si, a marca do afeto, da religiosidade ali vivida é ainda singular e prazeirosa.


Mastro de São João enfeitado com fitas, flores artificiais e laranjas.

Na imagem de São João do carneirinho, constatamos portanto que a cardabela ali reproduzida não é uma flor qualquer, aleatória. Signo da terra, ela é mais do que uma homenagem ao santinho, ela revela, muito além do catolicismo dogmático, toda a mística de seu poder ancestral, “dos velhos tempos”.  Uma reverência ao renascer, “morta, vive”, como diz o poema. Traz benesses, nos protege e nos mostra uma tradição também viva, que pode ser liberta nas entrelinhas, ou melhor, na leitura sígnica da imagem/texto. E na fé de seus devotos.

Evidentemente que este detalhe – e muitos outros - tem que ser estudado e pensado no conjunto do elementos da imagem. Em processo, este estudo continua. Não há análise que esgote uma interpretação, seja de que caminho metodológico for. A história, o momento, o olhar variam no seu conjunto e na visão pessoal do pesquisador. 




[1] Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Professora aposentada da UFPE e do IFSertão de Petrolina, PE.

[2] LA CLOCHE D´OR – Aspects, Êtres et Choses, de la Moyenne Vallée de L´Hérault et de ses environs. Photos Harold Chapman – Claire Parry – Textes Max Rouquette. (Ouvrage publié avec le concours de: Conseil Général de L´Hérault et d´autres offices. I.S.B.N. em cours © Bibliothèque 42. 34150 GIGNAC) s.d.