Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

HISSOPE


Exercitando a relação foto, texto, memória e ficção...

 
 
HISSOPE
Elisabet Gonçalves Moreira
“Que anjos são esses, que andam rodeando?
De noite e de dia, rezando Ave- Maria?”
(Cantiga de roda tradicional)
            O menino pequeno, sujo, cabelo raspado, descalço, puxa a jovem mãe cigana pela saia enquanto ela segura um bebê e ataca os passantes, pedindo esmolas, ajuda, mostrando as crianças. Variantes desta cena estão por aí.
No prolongamento do restaurante típico, na calçada, sentada com algumas amigas em torno de uma mesa, bebendo cerveja e comendo petiscos, observo a mulher e suas crias. Vejo quando ela aborda um turista alemão e tira sua carteira com uma habilidade que me fez sorrir.
Minha amiga Isa também viu. E ficou indignada. Avisou o garçom que avisou a polícia. Ladra, ladra, espertinha, safada.
Vieram dois policiais, em ronda pela orla. A ciganinha teve que devolver a carteira. Não a levaram nem bateram nela, o ambiente não era para isso. Mas a cigana sentou-se na calçada do outro lado e o seu rosto mostrava tudo que há de raiva, do mundo, das pessoas. O menino, quieto, parecia ainda mais sujo, jogado neste mundo perdido nos adjetivos.
Já levei gatinho de rua para casa, afaguei, dei leite e procurei alguém para cuidar dele. Faria isso com o menino? Refutei logo o pensamento. Um gole de cerveja. Por que este menino e sua mãe tinham que aparecer por ali? Comi uma batatinha.
Os dois então tentaram se aproximar, a mãe pedindo comida e dinheiro. Dei as batatinhas. Minhas amigas não gostaram disso. O que adianta? Pedi outro prato de fritas para o garçom. 
..................................................................................................................
No sábado seguinte, lá estava a cigana com o menino em seu trabalho de pedinte, sem dar sorte no próprio destino. Não haveria um anjo da guarda para estes meninos?
Atravessei a praça e fui até a Igreja Matriz. Bobeira minha. Não sabia eu que o mundo é mesmo assim? Uns têm chance e sorte, outros nada... Sentada num dos bancos, vi quando o menino entrou. Perto da pia batismal, na parte de trás da igreja, havia um pequeno vaso para água benta e um hissope de prata. Ele pegou os objetos e saiu da igreja sem ninguém mais notar.
Levantei e saí também. Vi a mãe cigana pegando o objeto e pondo numa sacola. Ela também me viu e fez um ar atrevido... Pedi de volta e lhe dei uma nota de vinte reais. Tinha pressa, aceitou. Ordenei ao garoto colocar o vaso e o hissope no lugar. Ele parecia em dúvida, olhando para mim e para a mãe.
A cigana lhe disse alguma coisa e os dois saíram correndo. Na rua movimentada, o menino foi atropelado. O desespero da mãe era terrível. Ela me olhou e amaldiçoou a todos nós, os que a cercavam, os que não sabiam o que fazer.
Eu, com o hissope na mão, aspergi água benta sobre o menino, como se fora uma sacerdotisa idiota e ridícula. Talvez o anjo da guarda também chore por estes meninos que nascem, vivem e morrem sem saber por quê...
 
(Petrolina, 18 de abril de 2015)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Dança e tradição: poéticas de interface na contemporaneidade


Neste espaço de blog, vejo também espaço para veicular minhas escrituras, tantas inéditas,  neste tipo de texto onde me atrevo (ou danço!).

Dança e tradição: poéticas de interface na contemporaneidade (*)

Dança e tradição – A interface  (segundo Pierre Lévy ) é uma articulação entre duas realidades diferentes  envolvendo conceitos como tradução, transformação, passagem, o que pode ajudar para compreender melhor essa articulação.

E ir direto para o objeto que tomo como referência: a dança contemporânea  no espetáculo “Eu vim da ilha”, pelo grupo de dança do SESC Petrolina, sob direção de Jailson Lima, e sua interface na tradição do “samba de veio ou samba de reis” da Ilha do Massangano, um olhar sobre esta  variante da cultura popular,  realidades  poéticas em cada expressão.

E por que entender dança e tradição como poéticas? “A poesia torna possível toda a cultura”, ressaltou Heidegger.  Acho que aqui está o cerne da questão, entendê-las como poéticas, como arte, onde a dominante é justamente esta assertiva.  Neste jogo entre a tradição e a contemporaneidade, mais do que uma oposição, está a leitura significativa da intertextualidade.

E fica desde já um questionamento:  O que o espetáculo “Eu vim da ilha” de um grupo de dança semiprofissional “leu” na diversão espontânea do samba de reis da Ilha do Massangano? Houve trocas? Ou foi uma leitura de mão única?

 Definir dança não é fácil, mas sabemos que só dá para defini-la  se “considerarmos o contexto histórico e cultural em que ela esteja inserida, revelar óticas particulares, descrever uma arte simbólica, específica.” Portanto, há que se ter em mente a historicidade de determinada dança – seu contexto - e seu corte contemporâneo, sincrônico.

Os estudos de Semiótica (ciência geral dos signos) me levam à noção de texto, nas mais diferentes linguagens.  Texto não deixa de ser um ato comunicacional, um processo onde tenho Emissor (o pessoal da ilha na ilha ou a companhia do Sesc Petrolina)  e o Receptor (público) mediados pela dança, através da linguagem dos corpos, da música, do improviso muitas vezes,  das palmas, do ritmo do tamborete, do colorido, luz, todo um conjunto de signos que perfazem o ato. Aliás, um ato ou texto  dinâmico, já que ele nunca se repete.  Cada apresentação é uma representação particular, singular. Seja na ilha ou nos palcos...

Em outro texto meu sobre o “Eu vim da Ilha”,  registrei minha leitura daquele momento em que fui público: No ritmo do tamborete...  Reitero algumas considerações.

Que instrumento musical é este que acompanha o samba de veio da Ilha do Massangano em Petrolina? Uma banqueta rústica, assento em couro de bode esquentado no fogo, oferecendo o ritmo para se cantar e dançar no reisado e em dias de festa?  E agitar os pés, braços e corpos no frenesi do samba mais primitivo que se possa imaginar? Samba regado a cachaça, o tamborete só existe como instrumento musical se percebermos a  pobreza  – e a imensa alegria em seus folguedos – deste povo que há mais de cem anos habita esta ilha do rio São Francisco, entre Pernambuco e Bahia...

Agora, pergunto, que significado ele adquiriu para o espetáculo de dança contemporânea “Eu vim da Ilha” com coreografia de Jailson Lima, do SESC Petrolina?

Porque ele veio da ilha sim, mas na cidade se transformou, no palco se refez...

E o tamborete se tornou o centro do espetáculo, a emanação para o que se configurou, se firmou, se dançou...

O samba de veio, como referência artística, muito além do folclórico, restritivo em seu conceito antigo, metamorfoseou-se em outra roupagem, linguagem, ritmos e sons. E isso fez a diferença entre o que poderia ser cópia, documentário ou registro para um ato criativo, singular. Acrescento: um ato de recriação, de uma estética própria, de uma ressignificação do samba da ilha. Neste sentido, o título do espetáculo é também palco para esta leitura “Eu vim da Ilha” .

Nesta caminhada, sem dúvidas  houve muita observação, desde o samba lá na ilha, com as águas do velho rio Chico em suas margens, até os espetáculos feitos em palcos na cidade, outras margens e outras definições...

Em “Eu vim da Ilha”,  a importância das falas de Dona Amélia, de Conceição (sou feliz!), das letras das canções, faz um belo e significativo contraponto neste respeito aos “veios” do samba. Assim como  retirar desses recursos em off um diálogo com o som das águas, agora em braços, pernas e corpos de jovens dançarinos, conseguindo outras cores, outros sons, cantos e movimentos. E, ao mesmo tempo, conseguir ser fiel em sua recriação e homenagem ao samba de veio, tão perto de nós...

Assim, criou-se um espetáculo de dança contemporânea sem recursos fáceis, deixando a dança livre de certas amarras que poderiam truncar a proposta desse grupo, ao mesmo tempo regional e universal, que sai de Petrolina e mostra outras caras deste sertão... águas e margens de uma cultura viva que se apresenta, representa!

Pois bem, é aí que entramos com o significado de Poética. Há a poética  da dança tradicional, cultura popular, dinâmica, que faz a diversão na ilha, sem tempo determinado, e cuja origem está no aspecto religioso da festa de reis, mês de janeiro, ainda no ciclo natalino dos folguedos populares .  O samba é dos velhos sim, Márcia Nóbrega observou bem, “ele é do domínio da noite, do compartilhar de um mesmo “fogo” que só se passa entre uma mesma gente que, por sua vez, é construída a partir de relações sociais já estabelecidas. “

Há também outro aspecto  da encenação do samba, com horários para começar e terminar, com figurino uniformizado para o grupo, uma representação, mais um espetáculo tido como folclórico, mediado por outras pessoas para o contato,  nesta sociedade do espetáculo, de consumo massivo, uma outra coisa enfim, para só associar.

O que há em comum? Escrevi para a capa do CD, produzido por Chico Egídio, este produtor cultural que acompanha e registra o samba da ilha há mais de uma década.

“Há uma energia vibrante na polifonia rítmica do samba de veio. O conjunto de vozes do coro, do “puxador” do samba em seus versos, da percussão, palmas e instrumentos dialogam entre si, mostrando uma dinâmica rítmica que registra (...) uma vertente da música brasileira em suas raízes africanas, indígenas e portuguesas.”

 “O samba  da Ilha do Massangano é um mix de vários sambas e batucadas... Muitos de seus versos e do ritmo estão espalhados em outras manifestações como no samba de roda baiano, no reisado, em versinhos antigos. Ao mesmo tempo, embora possa ser reconhecido, este samba de veio da Ilha do Massangano tem uma identidade que não se confunde com nenhum outro. Há características marcantes que evidenciam essa  condição, inclusive constatadas até pelo fato de, há pouco tempo, ser parte de uma comunidade quase isolada, no meio do rio São Francisco. Hoje, ao envolver praticamente toda a comunidade, não mais só o “veio”, mas até as crianças em seu frenesi, esse samba consegue uma vivência única, além da comparação. E que se perpetua no registro e na recepção de projetos como este.” No caso, como frisei, era a produção dos CDs.

Nessa confluência de tantos olhares e possibilidades, há a continuidade na perspectiva da diferença dos públicos receptores. Se na ilha o samba é dos velhos, da noite, há a interação entre os moradores, os que dançam, os que cantam, os que tocam, os que abrem ou não a porta de suas casas, todo o conjunto da dança onde o importante é sempre a diversão, a festa. E que faz também a alegria dos que, de fora, dançam com eles principalmente nas apresentações na cidade. Os jovens também se divertem no ritmo do samba... A recepção nunca é homogênea em qualquer circunstância.  Mas no samba as classes sociais se integram como público, algo democrático e interativo.

Já no espetáculo “Eu vim da Ilha”, há o espectador de plateia, aquele que fica sentado quando a apresentação é no palco de um teatro ou em pé quando a apresentação se dá em outros locais, abertos por exemplo. Em “Eu vim da ilha” temos um trabalho profissional, de equipe. De coreografia, de direção teatral, de uso de tecnologias como o som em off, do figurino, da sequência, da umbigada,  de um espetáculo com horário programado e local específico.  Canclini destaca que “Analisar a arte já não é analisar apenas obras, mas as condições textuais e extratextuais, estéticas e sociais, em que a interação entre os membros do campo gera e renova o sentido.” (Culturas Híbridas, p. 151)

Esta interface da contemporaneidade, através da tradição,  ratificou  “uma visão de mundo levada  aos palcos. É uma relação de respeito e criação com a história da formação de cada lugar e do seu povo, na intenção de projetar uma linguagem de dança onde o movimento corporal não seja estranho a esse povo.” (da sempre citada Maria Paula Rêgo que, aliás, já deu, se não me engano, oficinas aqui mesmo em Petrolina).

Acredito pois que Jailson, mais sua equipe,  bem integrado nestas fontes, conseguiu conceber o espetáculo “Eu vim da Ilha” como dança contemporânea (aqui entendida em seu diferencial, do momento histórico em que atua) e que consegue um estrato poético, uma qualidade artística que foi até premiada. Deu, assim,  um sentido não só de representação social, mas de pertencimento, de um substrato cultural significativo.



(*) Sempre inquirindo, pesquisando, aceitei participar de uma mesa com especialistas no assunto: Daniela Amoroso, Eloisa Domenici e a mediação de Daniela Santos no SESC Petrolina em abril de 2012. Escrevi este texto que, evidentemente, não deu para apresentar por completo.




quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Minicontos em tríade...

Minicontos... Algumas inserções no gênero, estimuladas por um curso de Redação Criativa, via web. A brevidade me faz bem, contra ou a favor, há uma narrativa mais implícita do que a mera sugestão. O que acham?



                Inquietude
Lorena nascera morena.
Crescera entre irmãos louros.
“Papai, é verdade que o sol me queimou?”

 

                               Tempo bom
O guarda-chuva virou sombrinha naquela tarde quente.
Mariana saiu de casa com seu bebê a tiracolo.
Viu, no comprido muro que a seguia, um lindo desenho de uma árvore frondosa.
Então, ali colocou seu bebê e continuou. Fechou a sombrinha, não mais necessária.

 

                Conto angelical
Nina se balançava no parquinho do prédio.
Foi tão alto que pensou estar voando.
Alguns anjos lhe fizeram companhia.

 

ELISABET GONÇALVES MOREIRA

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A razão do denominador

Uma análise de texto, minha preferida das muitas análises literárias que fiz... sim, fui professora de Teoria Literária e não posso "trair" essa minha formação. Espero que o texto maravilhoso de Murilo Mendes lhes possa fazer refletir, assim como me fez entrar nele e dar-lhe um rumo de entendimento, de significação para a vida e seus limites... até para um blog hoje.
 
TEXTO SEM RUMO Murilo Mendes[1]
        


        O poeta inventa a notícia que o jornal omite. Faz vibrar o som que o sino omite. Coloca a natureza (!) no devido posto.
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         Calçar a sua sombra. Laçar o mar. Mungir a lua. Trair aquela raposa. Trocar de camélia.
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         Quis filmar o milagre, mas os protagonistas cansados se haviam evanuído. Evanuir-se também quer dizer: desnudar-se que nem Eva.
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         A recusa da cruz implica o medo de afrontar a condição humana dura real fisiológica com seu limite no espaço-tempo e sua perspectiva incerta de ressurreição.
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         Marat entra na banheira, entra na História.
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         Não é possível encarar o sol: mas sim encarar a metáfora do sol.
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         13 de maio de 1966. Consegui viver até hoje porque desde cedo adestrei-me a me perturbar, a me criar tormentos, a tentar me destruir: confiando sempre nas minhas grandes reservas de eletricidade. Renasço cada dia dos meus próprios “crimes”. Viver é refazer o erro.
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Edgar Poe: proprietário, produtor e “metteur-en-scène” da poderosa palavra NEVERMORE.
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Einstein diz que na passagem do infinito ao finito há um desvio para o vermelho.
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         Nossos remorsos circunscrevem-se a uma zona tão reduzida! Zona que, se fosse ampliada, a gente explodiria antes do tempo previsto.
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         As histórias contadas pelas pretas foram para mim os primeiros quadros, as primeiras tapeçarias.
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         A morte é um dever, um dever civil.
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         Nice. Num restaurante. Um casal francês troca raros monossílabos durante vinte minutos. Chega a “bouillabaisse”, os dois atiram-se ao prato e iniciam um diálogo animadíssimo.
·    
   
         Para conhecer os motivos da morte/para ser bem recebido nos seus átrios e participar das grandes festas da sua fome/para distinguir os esqueletos cultos dos ditos analfabetos, os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros/para desvelar os textos do “Livro dos Mortos”, guardados por Osíris nas pirâmides nucleares/para tocar a flauta mágica/para concluir a palavra/para decifrar o rito do touro/para romper com Rimbaud o pão de pedra/para ler novos cânticos de Dante/para defrontar Helena de Tróia/para desmontar o tempo/para completar minha cota terrestre
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existo.
 
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         Terrível coisa, o desentendimento entre homens que falam a mesma língua. Mas existe “a mesma língua”? Ou o mesmo latim, usado exatamente para que ninguém se entenda? Os tratados de moral, de educação, de política, são escritos quase sempre por pessoas que não querem ser “dupes” de outras, e se baseiam em relatos de pessoas que não querem ser “dupes” de outras.
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         Se uma angústia lavasse a outra, levasse a outra!
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         Ninguém quer o falso. Ninguém quer o verdadeiro.
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         Se Deus fosse à escola aprenderia somente matemática.
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         As profundidades as sinuosidades as imensidades de algumas das palavras mínimas da língua: fé - lá - eu.
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         Os deuses são analfabetos, não por preguiça, comodidade ou ignorância: por desprezo.
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         Quando no Marrocos, assistindo ao desfile de mulheres veladas, eu pensava: se são belas, vejo-me roubado; se feias poderia beneficiá-las com um golpe gratuito de olhar.


 
 
 
...ooo0ooo...
 
A RAZÃO DO DENOMINADOR
                 Elisabet Gonçalves Moreira
   
        Quando Murilo Mendes ganhou o Prêmio Internacional de Poesia, em 1972, o Etna-Taormina, Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, reclamando contra o nosso esquecimento por essa vitória de um poeta brasileiro em terras estrangeiras. E reivindicava para Murilo Mendes o lugar de destaque que ele merece em nossa literatura e em nossa lembrança.
         Em 1980, muito se lembrou e foram comemorados os 50 anos de lançamento do livro Alguma Poesia de Drummond, mas também é de 1930 o Poesias de Murilo Mendes, primeiro livro do poeta que, juntamente com Carlos Drummond de Andrade, consolidou o Modernismo no Brasil em sua feição poética mais típica e duradoura.
         Realmente, há várias maneiras de ser ou de se sentir exilado. E Murilo, que há tantos anos ensinava literatura brasileira em Roma, até sua morte em 1975, sentia pessoalmente esse descaso.
         Tenho uma dissertação de Mestrado sobre Murilo Mendes. Sei que nada sei de definitivo sobre ele, o antidefinitivo por excelência. Mas tenho algumas coordenadas sobre sua obra que tracei/levantei. Para chegar até elas, eu vou tomar de um texto muriliano, trabalhar com ele e sentir o poeta Murilo e sua palavra tão ardorosamente defendida.
         Sei que a própria seleção de um texto para análise já implica numa primeira crítica deste texto. Mas, tenho outros motivos.
         O texto é do livro Conversa Portátil, livro este publicado postumamente em 1994 na sua Poesia Completa e Prosa da Nova Aguilar. Como disse na nota de rodapé, Texto sem Rumo foi retirado, como está neste trabalho, da antologia em prosa Transístor, de 1980. Como era uma antologia, eu já percebera que o texto não estaria completo, o que se confirmou na obra completa, um texto bem maior do que o texto usado para este trabalho.
         Texto sem Rumo é de 13 de maio de 1966, prosa, um dos seus textos do fim, de sua última linguagem. A relação entre prosa e poesia, os limites do texto moderno e o fato de ser um texto ainda inédito motivaram minha análise.
         Também porque em Texto sem Rumo algumas das coordenadas gerais da obra muriliana nele se mostram de alguma forma. Sei que nenhuma análise “esgota o verdadeiro texto artístico” e seria temeridade eu julgar que pudesse dele tudo extrair. Sei e postulo, no entanto, que só a partir do próprio texto, de dentro para fora, é que minha análise terá crivos de alguma veracidade. É, portanto, uma análise aberta, simples e objetiva, onde procuraremos ver o texto muriliano em ação.
         Sobre o título: Murilo Mendes o coloca como um Texto sem Rumo. A palavra texto é sintomática: aqui ele é tratado em sua acepção moderna. Nada é definido ou definitivo, tudo se mescla na escritura moderna.
         Sem rumo: nada de planos preestabelecidos. Isto é, aparentemente, porque temos um texto bastante elaborado na verdade. O sem rumo aqui parece se dirigir ao plano formal. É um texto em movimento, oscilatório, que faz questão de não chegar a lugar algum. Desnuda-se em ambiguidades.
         Observem que o poeta é aquele que inventa, são suas primeiras palavras. O problema do real na arte, aspecto dos mais instigantes, é o primeiro a ser colocado. Mas ele inventa o que o jornal, por exemplo, “omite”, isto é, em cima da realidade, da omissão dessa realidade.         Temos a impressão de que Murilo brinca de “amarelinha”, passa do mais prosaico para o lírico, desmascarando o processo poético, indo e vindo pelas fronteiras do real e da escritura.
         Eu não vou tentar explicar o que não é explicável a respeito do texto. Seria perífrase ou mesmo paráfrase. O que importa é como eu tomo conhecimento do texto, das palavras do poeta e ali penetro. Assim, o texto no qual me deterei mais de perto é uma equação matemático/poética.
 
        
Para conhecer os motivos da morte/para ser bem recebido nos seus átrios e participar das grandes festas da sua fome/para distinguir os esqueletos cultos dos ditos analfabetos, os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros/para desvelar os textos do “Livro dos Mortos”, guardados por Osíris nas pirâmides nucleares/para tocar a flauta mágica/para concluir a palavra/para decifrar o rito do touro/para romper com Rimbaud o pão de pedra/para ler novos cânticos de Dante/para defrontar Helena de Tróia/para desmontar o tempo/para completar minha cota terrestre
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existo.
 
         Tem-se uma equação:   morte  .
                                               vida
         Nesta equação, a vida está para a morte assim como a morte para a vida em inter-relação. Vamos ver como isso funciona no texto.
         Sei que é morte porque o poeta estabelece: para o numerador da equação estão os motivos da morte e a única palavra do denominador é existo, a antítese da morte.
         Observam-se no numerador 13 verbos no infinitivo: conhecer, ser bem recebido, participar, distinguir, desvelar, tocar, concluir, decifrar, romper, ler, defrontar, desmontar, completar. Estes verbos, colocados como motivos da morte, são todos ações de vida, funcionando semanticamente como um futuro para o denominador comum que é o presente do indicativo, no 14o. verbo, existo. Este é, pelo menos, o plano do real. Ou sua metáfora.
         A preposição “para” me indica, portanto, a finalidade desse denominador, dessa existência. Existo para isso, isso e aquilo. Que são motivos de morte, o contrário de existir, óbvio.
         Então, vamos ver de perto estes motivos da morte. O poeta deseja conhecê-los. Sua abrangência visual, nestes motivos, começa a ser explicitada. Imagens antológicas da morte, na seleção vocabular, na apresentação delas.
         “Ser bem recebido nos seus átrios.” A morte é solene, onde se recebe com classe. Há “grandes festas”, não de regalos e, sim, da “fome”. Morte e destruição. O visual da morte continua na imagem até grosseira dos “esqueletos”. A preocupação do Murilo-homem se revela nesse além. Ele quer distinguir, mesmo ali, os cultos dos ditos analfabetos, ironia do homem de espírito que sempre foi.
         Afinal, quem é culto? Esses confrontos, esses esquemas antagônicos são bem murilianos. São três os confrontos. Além desse, temos os mansos dos cruéis, os raffinés dos grosseiros. A ironia está presente no homem cultor e culto. Nisso, Murilo Mendes chega a ter momentos sofisticadíssimos, em suas amizades na Europa, suas citações, seus artigos.
         Mais sintomático é o “desvelar os textos do Livro dos Mortos.” O verbo também é muito significativo. Desvelar é tirar o véu, decifrar, desmontar. O prefixo des-, usado algumas vezes, indica uma ação contrária. A referência ao mito, o mais conhecido dos mitos egípcios, a lenda de Osíris, deus dos mortos e guardião do Livro, inclui o texto nessa categoria de historicidade do próprio mito, de suas associações.
         Frisou-se no início da análise que havia 14 verbos no texto e, por coincidência ou não, a lenda de Osíris diz que este teve seu cadáver partido em 14 pedaços, por inveja de seu irmão Set, que os espalhou pelo reino. Sua irmã e esposa Ísis os recolheu e isso simboliza a semeadura. A ressurreição do corpo de Osíris é símbolo do brotamento.
         O “Livro”, onde o poeta pretende ler seus “textos”, está no miolo, em “pirâmides nucleares”. E esse núcleo também parece ser simbólico. A morte começa a tomar também outra configuração. São os textos, são as palavras que estão no outro lado que interessam, na medida em que sua leitura revelaria o segredo.
         “Tocar a flauta mágica.” Novamente o som, o mito na ópera de Mozart, quem sabe, já que Murilo Mendes era um apaixonado pela obra de Mozart. Outro motivo dado: “para concluir a palavra”, a matéria da poesia. Retoma-se a esfera concreta da metalinguagem, assunto deste “texto sem rumo”, de signos em metáforas e intertextos.
         Para “decifrar o rito do touro”. Ritos de vida e de morte, na arena ou nos labirintos do minotauro. Há sempre um mistério, um segredo, nesse “au-délas”... decifraremos? A angústia se avoluma no inevitável.
         Para “romper com Rimbaud o pão de pedra”. No aspecto formal do discurso evidenciam-se efeitos de sons bastante interessantes e que adquirem significado. Os erres duros, as consoantes labiais p e b e a nasalização do rom, com, Rim (pronúncia francesa), ão. É Rimbaud, poeta do simbolismo francês, trágico, cuja manipulação verbal teve na sinestesia, na correspondência de sons e cores uma das marcas principais de sua poesia, ao lado da procura da morte. Num jogo intertextual, Murilo “lê” o outro no seu próprio discurso. Mesmo que “rompendo” com ele na imagem dura do “pão de pedra”, reúne-se no nível da estruturação formal.
         Para “ler novos cânticos de Dante”. A imagem continua, Dante pelo dantesco, pelos textos do seu “Inferno”, assim como Rimbaud com “Une saison en enfer”. É Murilo que, em associações quase surreais, quer conhecer mais sobre a morte, através de outros cânticos, outras palavras.
         Para “defrontar Helena de Tróia”. Defrontar a própria morte, na associação da figura fatídica da mais bela mulher grega que acabou por levar destruição a Tróia e a morte a milhares de gregos. E, também, sempre o paradigma analógico: morte, agora com seu contrário, a beleza.
         Para “desmontar o tempo”. Novamente um jogo de vogais e nasais, criando o discurso, nos seus limites, a sua finalidade estética, ao se voltar para si mesmo. O tempo, a própria eternidade. A desmontagem do tempo supõe o domínio da montagem (pelo seu oposto). Assim, o poeta anseia por tudo saber e dominar, um poder de quem não é mortal.
         Para “completar minha cota terrestre”, é o que lhe resta ainda desse tempo dividido. Tem-se apenas uma cota, uma parte. O resto é a eternidade, o fim, o que se aguarda quando completar o que lhe cabe.
         O poeta divide com um traço esse limite, as duas frações do humano:
      morte  .
                                                         vida
O limite está no traço, no significante visual.
         Do outro lado, no denominador desta razão, tem-se, no texto do poeta, uma única e isolada palavra que se basta: “existo” e ponto final.
         Tudo adquire significado. Desde as barras (////) para separar simbolicamente o corpo mutilado de Osíris até o traço e o ponto final.
         Existo e nada mais precisa ser dito. Aliás, tudo já foi dito. A escolha de existo em lugar de vivo, por exemplo, é também significativa para o discurso poético. Evidentemente existo carrega muito mais força, é um vocábulo mais denso que outro sinônimo. Existo indica também, já que está no denominador, no outro lado, o outro plano. EXISTIR É CARREGAR, TAMBÉM NUMA FRAÇÃO, TODAS AS INCÓGNITAS DA MORTE, todos os motivos de sua “não-existência.”
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         morte      ::       não-existência
            vida                   existência
 
(Portanto: morte está para vida assim como não-existência está para existência.)
 
         Multiplicando-se os extremos, obtém-se:
          morte x existência = vida x não-existência.
 
         A ambiguidade na contradição destes antagonismos torna a realidade poética a única tangível.
         Corrobora também para isso a universalidade e a atemporalidade desse dualismo, que proporciona a esse texto em prosa de Murilo Mendes uma intensa carga semântica.
         A novidade da forma implica numa visão do Murilo contemporâneo procurando sempre caminhos para sua expressão, não modismos, mas um espírito crítico altamente criativo e atento às evoluções do mundo moderno ou mesmo pós-moderno.
 
 
         É de se observar também que a aparente contenção desse discurso, pelo ritmo sincopado, um certo despojamento, é apenas aparência realmente. Há muito de opulento aqui, de grandiloquente nas imagens, na retórica.
         Afinal, nos limites entre morte e existência, o poeta-signo pode ali passear livremente, o enigma do homem é a sua própria essência.


 

 


[1] Este texto está copiado como em TRANSÍSTOR - Antologia de prosa - Murilo Mendes, editado no Rio, pela  Nova Fronteira, 1980, p. 401/404. Na sua Poesia Completa e Prosa, Rio, Editora Nova Aguilar S.A., de 1994, o texto completo é maior, com uma nota do autor.  Como a análise foi feita originalmente em 1982, na dissertação de Mestrado “Murilo Mendes - uma representação operacionalizada”, preferiu-se continuar com a versão anterior. A mesma análise também foi reformulada e publicada na Revista Drummoniana 2, Petrolina, novembro de 1990.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

2016 em 4 de janeiro: marcando o início de um propósito

Não dá mais para adiar... pensando e pensando, algo aqui vai, como registro e memória desta Bet com t mudo...
Um conto, escrita criativa.... bissexta sou, mas capaz de escrever algo assim.


Menina do rio

Elisabet Gonçalves Moreira

Na periferia da cidade, às margens do grande rio, Jucilene vivia solta como os cachorros e porcos, sempre procurando algo para comer. Um pé de goiabas era seu refúgio quando os outros meninos não estavam por lá ou quando estavam nadando. Dali ela podia olhar o horizonte, acompanhar o pôr do sol e sonhar como só as meninas sabem.

Havia tantas histórias do rio... tantos naufrágios de vidas incompletas. Jucilene não temia o rio, e, sim, suas margens. Riam dela porque falava sozinha. Sozinha não. Falava mais com o vento, com as goiabas, até com os girinos e peixinhos que se arriscavam nas beiras e menos com  o pessoal, pescadores de gerações no ofício.

Toinho, filho de seu Dedé, que vendia peixes numa banquinha subindo a rua, lhe deu de presente um pequeno cágado que conseguira tirar de uma rede. Nos olhos do bicho, ela não reparou nos olhos esverdeados do menino que pediam uma troca.

Então ela deu, sem vergonha. Ele a tocou, seus peitinhos endureceram, brincaram no chão, até gostou. Toinho foi embora rápido. Jucilene se banhou no rio e percebeu que podia ser assim, ter e ser o que quisesse. Então  decidiu seu destino, virou sereia de água doce, para dar e trocar presentes.

Foi assim que o cantar de Jucilene se espalhou  naquelas beiras. Nunca mais lhe faltou comida, ela que era também refeição de pobre.  Até Joca, o surdo, ouviu e vibrou nos atos de sonhos possíveis.

O pequeno cágado, como ela, foi crescendo e parece que também entendeu os desígnios dos seres terrestres e aquáticos,  metades que se completam. Livres os dois, companheiros da solidão. E daí que começaram a dizer que Jucilene estava doida, que era feiticeira, que o cágado se transformava em homem, que isto e mais aquilo.

Toinho e outros agora rapazes foram atrás dela debaixo da goiabeira. Pegaram o cágado que estava bem ali, no refluxo do rio, e cortaram sua cabeça. Dessa vez Jucilene  reparou nos olhos esverdeados de Toinho que dera e tirara. E de sua fúria, iam se ver. Jucilene se escondeu no rio e juntou suas lágrimas com as águas da correnteza.

Assim que a canoa dos pescadores saiu nos riscos da aurora, Jucilene  falou com o rio, com o vento. Bateu seus braços na água com vigor. E tudo se turvou. No desespero, os homens ainda lhe pediram ajuda, mas Jucilene apenas sorriu,  como só as mulheres sabem.


Petrolina, 2 de fevereiro de 2015