Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 1 de março de 2019

RELATO DE UMA EPIFANIA



Epifania significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto espiritual e divino. Do ponto de vista filosófico, a epifania significa uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas.  Ou, no meu caso, de buscar e interagir com essa essência. Um olhar que envolve também pesquisa e aprendizado.

Assim, relato: quando estive nas ruínas de Delfos, na Grécia, como turista ocasional, meus olhos se deslumbraram. Visitando o museu arqueológico, de uma sala a outra, depois de admirar a estátua da Esfinge (se você não fizer isso, não foi a Delfos e seu museu, eis o pressuposto), o ideal da beleza grega sobretudo nos corpos adultos e nus masculinos, na riqueza dos infinitos detalhes dessa cultura milenar,  me deparei com a mais graciosa e inesperada estátua. Foi esse o momento quase mágico da epifania.

Olhando para a criança que sorria delicadamente, parei embevecida, emocionada. A expressão singela e o realismo inusitado “quebraram” a monumentalidade do que eu havia visto. Ela parecia sorrir para a foto ou para a posteridade?

Vida, senti vida, além da representação artística, atemporal.  Quanto afeto transmitido nesta criança... hoje posso conjeturar, mas, naquele momento, como mãe e como ser humano inundado de ternura para com o outro, vi nosso potencial amoroso e o que ele pode fazer como registro.  

Por que esta estátua foi feita? Por quem? O braço perdido, quebrado sem dúvidas em algum dos muitos terremotos, ou de guerras e saques havidos na região, não lhe tirou a beleza ou seu significado. Reproduzo novamente a estátua, com mais definição do que a minha fotografia.


Em Delfos estão as ruínas do templo do deus Apolo, local de seu santuário e do oráculo. Os gregos consideravam Delfos o centro do mundo e a cidade teve grande importância na Antiguidade, lugar de peregrinação por séculos. Como viviam então as crianças neste mundo?

Procurando conhecer um pouco deste universo e de seu legado para nossa cultura, soube que as crianças eram incluídas na vida adulta assim que tinham condições de viver. A vida da comunidade grega era interligada, desde o nascimento até a morte.  A infância era apenas uma idade de passagem, ameaçada por doenças, incerta quanto ao futuro e, sobre ela, se fazia um mínimo investimento afetivo. Explica-se assim porque eram representadas como adultos em miniatura. No entanto, no final do século IV a.C., na Grécia, as representações de crianças passaram a receber proporções e características infantis.

Olhe novamente para a foto. Teria quantos anos essa criança? Talvez três ou quatro. Ela se veste como um adulto, isto é certo. 
Uma túnica longa colocada no corpo, ajustada no corpo com um cordão. Percebe-se a abertura lateral, pela perna exposta, quase num gesto de alguém que caminha. Acessório complementar é o manto enrolado em torno de seu corpo e que termina solto, sobre o braço esquerdo. As dobras do tecido estão bem detalhadas, fruto de um trabalho artesanal de qualidade. Seja de mármore ou terracota (argila cozida), o material não lhe tira a importância do significado. 

Seu cabelo está primorosamente penteado. A mão, que parece um pouco grande, quase masculina no conjunto, se bem observada, destoa em certa medida da delicadeza da estátua. Soube depois que a cabeça foi aplicada separadamente no corpo e que data do início do período helenístico, no século III a.C.

Embora esta criança esteja vestida como um adulto, nem me importa se menino ou menina, o enlevo está mesmo no seu sorriso ligeiramente esboçado. Se não tem os olhos desenhados, o olhar está inserido na cavidade figurativa, realista. Há um dinamismo no conjunto que quebra o caráter fixo e imóvel das estátuas de um modo geral. Esta criança talvez esteja querendo passear conosco, brincar, pedir que lhe conte uma história...

Então, quem teria mandado fazer esta estátua? Sem dúvidas alguém com dinheiro e poder. A humanidade e a divindade eram próximas no cotidiano grego. Agradar aos deuses era uma forma de viver e assim se justificam os milhares deles e de sua fascinante mitologia, fundamento de uma visão de mundo.  

Na polis, valores cívicos também eram transmitidos pelas estátuas.
Seriam, pois, expectativas e esperanças trazidas pelas crianças para a força e o futuro da comunidade, outra justificativa coerente? Ou seria minha referência apenas um ex-voto em agradecimento ao deus Apolo pela vida de um filho, de um herdeiro ou de sua saúde?

Decoração, ex-voto, até mesmo uma oferenda fúnebre, esta estátua resiste em pleno século XXI, gerando perplexidade e indagações. Sobretudo o registro eterno de uma criança que sorri para o mundo, que me deixou mais humana nesta nossa história de ontem e de hoje. Tão somente isto...
Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, fevereiro de 2019.