Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sábado, 28 de dezembro de 2019

ONDE?


“Somos todos viajantes de uma jornada cósmica - poeira de estrelas, girando e dançando nos torvelinhos e redemoinhos do infinito. A vida é eterna. Mas suas expressões são efêmeras, momentâneas, transitórias”.
Deepak Chopra 

Entre lugares, sítios, cidades, construí pontes, desvelei enigmas e alegorias, me reconheci. Dar lugar ao amor é um mote humano e sensível. Epifania em deslumbramentos onde o olhar amoroso se encontra disponível se bem o vermos.

Abrir os olhos e o coração para as possibilidades do tempo e do espaço. Assim fiz e faço em minhas viagens. Aquelas onde tenho um transporte para mover e aquelas em que viajo dentro de mim, um constante ir e vir, assentando a expansão do conhecimento e das leituras que faço desse aprendizado.

Assim se deu, assim se fez, assim relato. Neste aqui, o trânsito se tornou perene e fixo na memória.


Saravá!

Décadas depois, relembro as emoções de conhecer, na mítica cidade de Salvador, Bahia brasileira, suas praias distantes, um terreiro de candomblé, a moqueca na lagoa do Abaeté, a capoeira de Mestre Pastinha... tantas lembranças e... um amor que até hoje me embalança.

Ali fui levada num sonho de mulher jovem e aventureira, desejosa de sol e de ver gente morena e bonita. Estudante paulista tem no imaginário a Bahia como referência para férias idealizadas, um projeto de vida em expectativa.

Primeiro foi uma viagem de quase três dias, em ônibus de linha comum, recurso para uma estudante sem dinheiro bastante. Desconfortável, fui aprendendo, em outros olhares, uma vista do interior brasileiro numa geografia de planos rápidos. Ao meu lado estava sentado um homem magro, muito simples e sério. Fiquei receosa, mas ele foi de uma postura elegante e correta. Sequer puxava conversa.

Aliás, foi só quando adentramos no estado da Bahia, numa parada na cidade de Vitória da Conquista que ele me ofereceu os frutos da época, doces e azedos umbus. Estava feliz, via nos seus olhos, e então soube que ele voltava para sua terra. O burburinho das pessoas oferecendo frutos e artesanato do lado de fora para os passageiros em suas janelas era vivo e forte. Tão distante do barulho da cidade grande, a poluição era de gente que respirava outros ares e anunciava lances para meu entendimento de um mundo a ser descoberto. E amado.

Tantos episódios. Minha ingenuidade e desconhecimento geográfico já se deu quando, ao anunciar que chegávamos à cidade de Salvador, eu achei que era um equívoco. Porque não via as serras, não havia curvas, como nas estradas de São Paulo ao litoral Paulista. Bem, a Serra do Mar acabara quilômetros antes... Essa possibilidade de comparação geográfica e humana é uma aprendizagem fundamental para o viajante de primeira ou última viagem.

Outro episódio, cômico, foi que, apertada para ir ao sanitário, entrei correndo no banheiro e fui barrada por uma funcionária que me disse, não, esse banheiro é masculino. Quando eu falei, ela então reconheceu em mim uma moça que, após três dias na estrada, nem parecia gente, quanto mais mulher. Ademais estava vestida como um menino, camisa e calças jeans, cabelos curtos. Um tempo de contestação também no visual.

Tinha o endereço do Hotel Colonial, na Ladeira da Barra. Havia sido indicação de uma amiga que, por sinal, também me indicara um primo que morava em Salvador, para algum contato, se preciso. Como minha amiga não fora na viagem que havíamos combinado, lá estava eu sozinha num grande quarto. Casarão branco antigo, altas portas e janelas azuis, o sonho estava se realizando.

Precisava comer. Sabia do restaurante universitário não muito longe dali. Fiz sucesso ali. Conheci o encarregado e conheci uma atração predestinada. Ele não liberou a comida de graça, como eu achava que minha carteira de estudante pudesse fazer, mas consegui o mesmo preço pago pelos estudantes locais.

Bem, o fato é que ele se desdobrou para me mostrar Salvador, para ficar a meu lado. Quando entrávamos no restaurante, os estudantes batiam os talheres no bandejão, saudando e fazendo comentários sobre o baiano que “ganhara” a paulista. Inda mais que ele era do interior do estado, lá das margens do rio São Francisco, um barranqueiro...

O Brasil vivia momentos políticos de repressão. Ditadura militar em curso. Havia uma vida paralela que não mostrávamos claramente, estudantes em lides ideológicas, procurando sobreviver em constantes conflitos. Não falávamos sobre isso, mas eu sabia – sempre soube – de que lado estava. Assim, “descartei” logo o apoio do primo da amiga, um burguês cheio de preconceitos. E ficava feliz com muitos pretendentes nesta Bahia de tantas cores. Minha juventude e graça tiveram seu momento de glória...

Mas eu escolhi sem titubear. Um fato. Um amor em sincronia.

No Pelourinho, um sítio dos mais atraentes da Salvador colonial, passeava com o barranqueiro, conhecendo e estabelecendo empatias nos mesmos gostos.  De repente, ele começou a assobiar, bem afinado, uma bela canção do folclore russo. Não acreditei, o espanto foi mútuo. Como, você conhece esta canção?

Conhecíamos.

Entramos na Igreja de Nossa Senhora dos Pretos e ele, emocionado, fez uma jura de amor, simbolizado neste encontro de conexões e emoções.


Fechando 2019, após 50 anos deste encontro, questiono e admiro o destino que me estava reservado neste lugar. Ou desde sempre predestinado?!



Ladeira do Pelourinho - Salvador, Bahia

domingo, 24 de novembro de 2019

Um saci no meu jardim



Não sei como ele foi parar lá...

Ele estava vivinho, pulando em sua perna cotó. Deve ter vindo das matas vizinhas como os anuns, pombinhas asa branca, passarinhos variados expulsos de suas árvores e espaços abertos. A vida nas cidades iluminadas também atrai os seres dos cafundós da memória.

Da janela da sala, quase meia-noite, depois de assistir a um filme na tv paga - filme que nem lembro qual foi - vi uma luz vermelha que acendia e apagava. Como baforada. Era baforada. Mas disso eu não esqueci.

Saci fumando cachimbo, baforadas de fumante inveterado, olhava no meio das moitas das sempre floridas e vermelhas icsórias, mexia no canteiro central, até pulou nos galhos mais baixos do meu pé de salgueiro chorão... Acho que estava com sede, como os passarinhos, borboletas e formigas que habitam meu jardim e lhe dão vida em movimento.

Pensei, vou falar com ele. Será que ele falaria comigo? Pensei de novo: vou dormir e ver se ele retorna amanhã. Mas vou deixar uma caneca de água em cima do banco. Se tiver sede, ele bebe.

E assim fiz... e ele bebeu, e veio mais vezes. Sem ter como comprar fumo de rolo, comprei um maço de cigarro comum. Deixei lá. Ele, sabidinho, rasgou o papel e colocou o fumo industrializado no cachimbo. Acho que gostou, pois foram várias vezes que lhe ofereci este presente, aguardando que ele se acostumasse com essa pessoa atrás da janela. Assim, fumei um cigarro que acendia um enviesado risco vermelho no reflexo do vidro.

O saci também estava curioso. Uma noite chegou mais perto do vidro da janela e nos encaramos. Eu o saudei abanando ligeiramente a mão. Ele deu um pulo para trás e se escondeu na moita de icsórias. Mas podia ver o cachimbo encandeando nas baforadas.

Ele estava morando lá, no meu jardim. Como ficava escondido durante o dia, eu não sei, mas vou contar depois, se me lembrar.

Virou um jogo de aproximação. Deixei um pirulito vermelho, de morango. Ele gostou pelo jeito. Porque depois deixei um pirulito verde, sabor menta. Ele odiou. Encontrei o doce jogado no chão, dia seguinte. Voltei para o sabor morango.

Após alguns dias, resolvi que era hora de conversar com ele.

Abri a porta com cuidado. A luz do poste vizinho iluminava algumas sombras. Pude vê-lo ligeiramente quando o cachimbo era aceso. E ele me viu também.

Eu lembrava do saci de Monteiro Lobato, das lendas que povoaram nossa imaginação infantil. Tão brasileirinho, esse moleque cor de carvão fez parte da história dos velhos e de tias contadoras de histórias que não tinham heróis americanos de desenhos animados nas tvs. Porque eles viam o saci e acompanhavam suas traquinagens.

Assim nos chegamos. Não precisamos de apresentações. Já nos conhecíamos. 

No banco do meu jardim podíamos conversar. Estávamos meio desconfiados nesse primeiro encontro. Falei do tempo, do calor, se estava gostando de morar no meu jardim, dos presentinhos que lhe dera. Ele mais ouvia que falava. Murmurava, como o vento nas folhagens.

Mas seus grandes olhos falaram mais. O garoto que havia neles me encantou. Esse encanto continuou por vários dias. Falava sobre tudo, meu confidente especial. De todo modo, eu sentia sono e me despedia sem muita demora.

Sabe, saci, minha mãe dizia que você aprontava dentro de casa, escondendo a tesourinha de unha, a agulha de costura, azedava o leite, todas essas coisas que dão errado e a gente fica com raiva.

Ele só fazia rir e... lá vai baforada.

Você ri, mas tenho certeza que hoje em dia esconde o celular das pessoas. Ou as chaves. É ou não é?

Nem sim nem não... baforada ao vento.

Então lhe pedi um favor. 

Proteja-me saci, proteja minha casa dos olhares invejosos, dessa gente que acha lindo meu jardim e, não demora muito, a planta, antes viçosa, começa a definhar. 

Ou do meu gato que ficou doente e não há meio de ficar bom de novo. 

Ou do retorno de meu marido que saiu de casa há três anos...

Aí ele me encarou apertando o cenho. Me assustei. Colocou seu dedo indicador em minha testa, me empurrando e me fazendo encará-lo. Então eu vi, pude ver. Nos seus olhos iluminados havia raiva, brabeza de saci sem mais nem pra quê...

Afinal, pude entender. Sem explicação, revi eu mesma perdida na vida, ainda que meus cabelos brancos mostrassem os anos por onde passara.

Saci, você pode me achar em mim mesma?

Ainda procuro a luz do seu cachimbo nas noites do meu jardim.







domingo, 6 de outubro de 2019

UM POEMA OFICINEIRO


Maria Teodorina Evangelista dos Anjos

Maria viu a uva.

Aprendeu a ler.

Aprendeu que a uva do Ivo dava até no sertão.

Então Maria foi colher uva e não varrer o chão.

Maria Teodorina aprendeu que Deus dá o frio conforme o cobertor.

Por isso colheu crença nos evangelhos.

Acreditou na prosperidade e na mudança.

Maria Teodorina Evangelista se firmou.

Comprou celular e colocou sorrisos em selfies.

Foi feliz no pancadão dançando de shortinho.

Teve filhos aqui e ali, companheiros vão e vêm.



Conseguiu ser periferia e só...



Só não entendia por que os Anjos não a deixavam voar mais alto.

Então cortou as asas, os pulsos, e voltou a ser



Maria.






Vida Maria 
(2007 ‧ Curta-metragem/Animação ‧ 9 min - Márcio Ramos) 

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O interagir numa história de 30 anos: TPA – Teatro Popular de Arte


Na história de Petrolina, um grupo teatral: TPA – Teatro Popular de Arte, 1989-2019, em homenagem. Parabéns preliminares aos envolvidos diretamente e ao SESC local que, no seu Aldeia de todos os agostos, se refere ao Velho Chico para aplaudir a arte de suas margens.

Mas vem o pensar, o querer desvendar. Por que Teatro Popular de Arte?

Há uma postura estética e ideológica significativa na colocação da palavra Popular.
Usada como adjetivo da palavra teatro, nos remete a uma visão da arte cênica voltada para o povo, em contraponto com o teatro erudito, das elites, restrito a uma classe de maior poder aquisitivo e cultural. Sabemos o quanto isto é discutível, mas, no senso comum, esse é seu significado básico. Então teria sido esta a proposta inicial e motivadora do grupo?

Explícito está na divulgação dos princípios básicos fundamentais do TPA, o de “possibilitar o acesso de todas as camadas sociais aos seus espetáculos” e “produzir espetáculos de arte”.

Em 1989, no contexto nacional e político, foram realizadas as primeiras eleições presidenciais diretas desde 1960, após a repressão militar que marcou pessoas e mentes. Não esquecer também a mobilização popular que resultou na Constituição Cidadã de 1988. Assim, é perfeitamente justificável este adjetivo pela pretendida democratização no acesso ao teatro.

E se tivessem definido como TAP – Teatro de Arte Popular?

A proposta seria diferenciada. Entendo que há uma delimitação dirigida ao papel da arte acompanhada com a palavra popular. Exemplo: uma manifestação legítima da cultura popular, “folclórica”, como um reisado, tem outra conotação neste conceito de “teatro de arte popular” para um grupo urbano, criado especialmente para fazer teatro, utilizando peças consagradas.

O significado do nome assumido, TPA, é, pois, indicativo da escolha dos espetáculos, ou de seu repertório, com um histórico de sucesso admirável. Nesses 30 anos o grupo consolidou-se, garantindo plateia, aplausos, risos e emoções.

Melhor entendo também a continuidade do TPA. Todos os participantes se engajam na proposta. E isso faz(fez) toda a diferença. Sabemos que o teatro, arte efêmera, evento único, só se realiza, inteira e completa no momento presente. Assim, como um coletivo, todas as plurifunções de um espetáculo se entrelaçam no desempenho responsável de todos.

O TPA, nesta Petrolina provinciana, foi inteligente para perceber a capacidade comunicativa e desmistificadora do teatro, de amealhar o público local para uma linguagem onde ele se reconhece. Ainda que não tenham criado espetáculos de sua autoria, souberam escolher as peças e autores.

Ariano Suassuna e sua representação do Nordeste é o autor mais encenado pelo grupo. O riso é a catarse em que se desnudam as máscaras sociais, o Brasil autoritário e preconceituoso.

Consolidada esta visão, outras peças e autores foram sendo apreciadas e encenadas. Então vieram ao palco Gianfrancesco Guarnieri, Dias Gomes, Nelson Rodrigues. Mais ainda: teatro infantil, Maria Clara Machado, Pedro Veiga, até mesmo o musical Os Saltimbancos, de Chico Buarque.

O século XXI, numa cidade onde muitos grupos teatrais e de dança se lançaram com uma diversidade nunca vista, e, sobretudo, onde a presença do SESC e seu teatro foi fundamental como espaço cênico, trouxe para o TPA desafios corajosos e mais dramáticos. Domingos Soares, seu principal encenador, é a referência nesta compreensão.

É significativo citar diretamente que, em 2014, montou o espetáculo Patética, de João Ribeiro Chaves Neto, em alusão aos 50 anos do golpe militar de 1964 e, em 2018, o TPA montou o seu 13º trabalho: A Cantora Careca, de Eugene Ionesco, com direção do ator Paulo Reis de Mello.

Essas peças, ao lado das encenações costumeiras e homenagens ao mestre Ariano, consagram definitivamente o TPA na memória do teatro local. Ainda que críticas possam ser feitas – aliás, não temos um crítico teatral com coragem e bagagem para isso – vamos repensar as dificuldades de se fazer teatro amador na cidade e na região.

Estamos seguros de que esses 30 anos do TPA servem de referência e avaliação para todos nós, de sua importância e de sua capacidade de existir e atuar nesse exemplo de país e de uma cidade que se desmorona sem políticas públicas participativas e educação para a arte e a cultura.

Tantas vozes, tantos entrelugares, produzindo sentidos... Continuemos nossa história, saudemos a memória possível. Viva o TPA!

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Obs.: Este texto também foi publicado no Jornal A Ponte - Informativo do XV Festival de Artes do Vale do São Francisco - Ano XII - 2a. edição - Petrolina, l de agosto de 2019



sábado, 3 de agosto de 2019

MURILO MENDES: A MEMÓRIA ALÉM DOS LIMITES DA PROSA


Retomando ensaios e estudos. Esclarecendo: este trabalho foi originalmente adaptado de trechos de minha dissertação de mestrado, sob orientação de meu amigo e  professor Boris Schnaiderman, em Teoria Literária e Literatura Comparada, defendida na Universidade de São Paulo, em 1981. Reescrevi este estudo em 1990 para ser apresentado no 2º Congresso da ABRALIC na UFMG, em Belo Horizonte, em 1990. Leio, releio, há sempre algo a ser tirado ou acrescentado. O que também me impressiona, neste século onde vivo e rememoro, o quanto certos estudos são esquecidos ou ficam restritos ao momento em que foram criados e aos poucos leitores de então... O que espero então em mais este registro? Ampliar seguidores, repensar e estimular leituras e críticas.

Resumo acadêmico: o trabalho objetiva mostrar como a prosa memorialista de Murilo Mendes em seu livro A IDADE DO SERROTE (1968) se caracteriza na representação de uma linguagem que oscila permanentemente entre prosa e poesia. Memórias além do meramente referencial, já que o discurso fragmentário utilizado pelo autor recupera não só o tempo passado mas,  voltando-se para si mesmo, perfaz o caminho literário, em que ficção e realidade se complementam.

Adendo: No final deste trabalho, apresento uma cópia da carta de Murilo Mendes endereçada a Boris Schnaiderman, de 1975, pouco antes do falecimento do poeta, sobre a pesquisa que então eu começava sobre sua obra.



A IDADE DO SERROTE de Murilo Mendes (1901-1975) foi escrito em Roma durante os anos de 65 e 66 e publicado originalmente pela Editora Sabiá do Rio de Janeiro, em 1968 (as citações aqui são indicadas por esta edição). Esse livro tem na capa, fazendo parte do trabalho gráfico de apresentação, um cartão onde se lê memórias. E o são de fato, embora cheguem somente até um certo momento da vida do autor: infância e adolescência, situadas na cidade mineira de Juiz de Fora, terra natal do escritor Murilo Mendes.
            Apesar de ter sido reeditado em Obras Completas (Rio, Nova Aguilar, 1994) e de ter tido outra edição do livro em referência, o próprio Murilo Mendes se queixava de um certo “descaso” para com sua obra[1]. A IDADE DO SERROTE, como muitos outros textos de sua obra vasta e variada, é muito pouco usado ou estimulado, principalmente em livros didáticos ou antologias, já que me parece exemplar para tal. São 42 capítulos curtos, cada um constituindo um texto completo. Quase todos giram em torno de retratos de pessoas invulgares ou bizarras, de palavras evocativas ou fatos, enfim lembranças que marcaram de um modo ou de outro a formação do poeta.
            É como se abríssemos um palco para a entrada dos personagens, máscaras e tipos que irão desfilar muito mais suas excentricidades do que uma conduta linear, desmitificando quase sempre uma ambiência provinciana em sua dialética conservadora e revolucionária ao mesmo tempo para, talvez, justificar a formação do poeta, também ele um tipo considerado excêntrico pelos seus contemporâneos. E aí Murilo se desnuda como nunca, desnudando-se na forma de sua linguagem tão específica, tão peculiar. E é aí, nesse ponto, que temos seu testemunho realmente biográfico e referencial, como o artista sobrevive: através de sua obra. São fragmentos de memória em que Murilo Mendes apresentados como rememoração e representação de uma realidade que vive enquanto discurso, enquanto linguagem literária.
          A análise dos livros de poesia de Murilo deixa entrever facilmente a observância de um processo regular de rememoração – muito mais acentuado em suas últimas obras. Esta invariante memorialista, em alguém tão inquieto criativa e criticamente como foi Murilo Mendes, converge em A IDADE DO SERROTE para outro tipo de linguagem, que é sua prosa. Uma prosa riquíssima, muito mais linguagem poética do que “prosaica” em sentido restrito.
            A oscilação poesia/prosa quase que permanente nesse livro é que nos levou a uma série de conjeturas sobre o problema dos limites entre prosa e poesia. Boris Schnaiderman[1], crítico literário, já nos alertara sobre isso em texto de 1976. No caso específico de Murilo, o que temos como procedimento constante é o desfiguramento metalingüístico do discurso, uma escritura que, indo e vindo também pelos limites do tempo, articula um significado poético, chamando a atenção sobre si mesmo.
            A “deformação” é anda mais sentida porque está hiperbolizada na forma de memórias. Uma sondagem pelos labirintos do passado autobiográfico seria o que de mais referencial poderíamos denotar dentro do discurso prosaico e,  no entanto, temos uma linguagem poética em seu alcance mais denso e que não deixa de ser prosa.
            No capítulo “Belmiro Braga”, a evocação do poeta mineiro inicia-se com dois decassílabos perfeitos e acentuação na 2a. 6a. e 10a. sílabas. Poderia até ser o início de um soneto.

“Lá vem o volantim Belmiro Braga
sorrindo no seu terno de xadrez.”

Ou este trecho do 1o. capítulo:

“...Superadas pianolas, minhas avós de carne e osso, ó vós, ovas sem ovações, mulheres-avós que eu nunca vi, desovadas em ricos dioscuros da obscura, difícil Minas de pedra, que me fazia doer o peito por falta de mar: vindas de vulvas montanhosas e de falos insapientes da importância da futura inflação humana e financeira do Brasil; bisavós remotas casadas com gigantones cabezudos; deixando cair as fazendas em usocapião, abolindo os domínios Paraopeba e Congonhas.” (página 9 da edição referida no primeiro parágrafo).

            A linguagem se auto-referencializa pela constante reiteração dos sons /v/ e sibilantes, uma linguagem que pode ser até caracterizada como antropofágica em suas metáforas, numa oscilação dos limites entre ficção e realidade.
            Estes e outros recursos não tiram, porém, ao livro o caráter de prosa ritmada, mas bem prosa narrativa: discursiva, até derramada nas palavras de Boris Schnaiderman. Há realmente algo de malícia neste emprego de recursos fáceis. A facilidade aqui, parece, se torna ironia e crítica do próprio discurso. Uma ironia e um humor descendentes diretos do Modernismo de 1922, e muito mineiro. Não só nas imagens, mas até na oralidade registrada como “guais maginando”.
            Segundo um ensaio de Iúri Tinianov[2] é o “umbral semântico” o fenômeno que estabeleceria o limite essencial entre prosa e poesia.
            Prosa e poesia se distinguem entre si não pela sonoridade imanente, não porque a poesia se orienta de modo coerente e sistemático para o som e a prosa para os significados, mas, substancialmente, pelo modo como esses elementos influem um sobre o outro; pelo modo como o aspecto sonoro da prosa é deformado pelo seu aspecto semântico (pela orientação da atenção para os significados) e o significado da palavra é “deformado” pelo verso.
            Não é só neste livro que a prosa de Murilo Mendes parece ser antes o jogo dos princípios constitutivos de prosa e poesia: a função do significado deformado pelo som na prosa e a função sonora igualmente deformada pelo significado. Essa deformação constitui-se num fator de dinamização verdadeiramente artístico tanto em uma como em outra, contribuindo para o enriquecimento de ambas.
            O tempo também não é o tempo de uma visão realista, nos moldes cronológicos e biográficos. Vai-se e volta-se constantemente pelos limites do tempo rememorativo: não só o passado subsiste como narrativa poética na maioria das vezes, chega-se a um outro tempo – o da escrita – presente da ação e futuro em oposição ao passado. E ao tempo da leitura, leitor em sua recepção e presença.
            O primeiro capítulo, intitulado “Origem, Memória, Contato, Iniciação”, foi objeto de uma análise textual admirável, feita pelo professor e crítico Antônio Cândido, na USP, num curso de 1975, do qual participei e passo a sintetizar anotações feitas na época.
            O professor mostrou como Murilo Mendes manipula a palavra em dois sentidos: num primeiro, o de reforçar a semelhança da palavra com o mundo e, em outro sentido, o de desmanchar tal semelhança. Este duplo movimento é que vai garantir e perturbar ao mesmo tempo o nexo com o mundo. Justamente é esta tensão de ambiguidade que permite a formação da mensagem literária especificamente. Na imagem, na metáfora, o poeta possui e não possui o mundo.
            A palavra, atuando sobre o mundo, vai desfigurando-o e trazendo-o para dentro do discurso. A palavra realça o discurso, devorando os objetos nos campos sonoro e semântico, do significante e do significado. Sabemos que, nos limites, o discurso poético faz esquecer o mundo e se torna um novo mundo. Se no nível sonoro constitui-se um sistema específico de sentido, sabemos, como Jakobson[3] demonstrou várias vezes, que o discurso poético chama a atenção sobre si mesmo. Temos, portanto, no caso de Murilo Mendes, efeitos de cunho sonoro e depois os de cunho analógico.
            Com esta colocação do discurso de Murilo Mendes é que podemos dizer que temos memórias ao nível de poesia. Ele nos apresenta o mundo desmanchado (ou “deformado”, segundo Tinianov); propõe o mundo mas propõe a si mesmo, utilizando-se de uma lógica sobretudo anafórica e paronomástica. Temos um discurso não como correspondência entre texto e sociedade, mas como esta se transforma em elemento estruturador do discurso.
            O processo de concorrência do mundo do discurso pode ir mais longe, ter sentido quase que só nele próprio. É o caso deste seqüência do primeiro capítulo, por exemplo:

As têmporas de Antonieta. As têmporas da begônia.
As têmporas da romã, as têmporas da maçã, as têmporas da hortelã.
As pitangas temporãs. O tempo temporão. O tempo-será. As têmporas do tempo. O tempo da onça. As têmporas da onça. O tampão do tempo. O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulheres temporãs. O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensão, e que não é aquele tempo. Temporizemos.

            Esta é uma seqüência mágica. O que interessa mais é o discurso, sensação poética extraordinária, fragmentos rememorativos e/ou associativos num contexto poético. Jogo sonoro: de tempo – ra – rã (têmporas). Jogo de significados: observa-se em compressão o tempo que passa, seja nas “têmporas de Antonieta”, seja nos avisos – tambores – seja nas outras associações. Há encanto e pavor por este mesmo tempo. É o tempo da infância, não o atual, mas o das memórias,  representadas pela escrita. A resultante é, pois, um avançado estágio de desfiguramento do mundo, um discurso literário, não referencial e, sim, poético.
            No primeiro capítulo está também justificado o título do livro: “As primeiras letras. As primeiras lutas. Perto do colégio – uma serraria.”  Para Murilo Mendes são instrumentos hostis o serrote, o martelo, a torquês, símbolos “torcionários”. E essa “idade do serrote” é justamente aquela em que o mundo agiu “torcendo” não o pequeno rebelde, mas o “voyeur” na infância e na adolescência. Aliás, esta espécie de reflexão e inserção do discurso em outro plano, de diálogo consigo mesmo e com o leitor se dá sincronicamente, após a evocação, quase sempre no final dos capítulos. Vozes e consciências que se alternam sem ingenuidade.
            Só em A IDADE DO SERROTE, o poeta parece livre, nesta linguagem rememorativa e poética, para rememorar também sua própria linguagem do início de seus poemas, a linguagem algo debochada e desmitificadora de HISTÓRIA DO BRASIL e que Murilo Mendes renegou a certa altura. Parece-me que a explicação do termo “memórias” justifica inconscientemente esta re-aceitação de um discurso “renegado”.
            O fato de escrever memórias lhe garante esta volta às origens, já que, no plano mitológico, reside aí a função da memória: não reconstrói o tempo e nem o anula. “Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além ao qual retorna tudo o que deixou a luz do sol. (...) O privilégio que Mnemosyne confere ao aedo é aquele de um contacto com o outro mundo, a possibilidade de aí entrar e de voltar dele livremente. O passado aparece aí como uma dimensão do além.”[4]
            Murilo Mendes “assume” o tempo todo o seu texto como memórias, consciente desta atitude de representação. Citando:

“Movido por um instinto profundo, sempre procurei sacralizar o cotidiano, desbanalizar a vida real, criar ou recriar a dimensão do feérico.” (p. 62)
ou
“Juntando estes e outros atos que guardo nas prateleiras da memória.” (p. 50)

            A consciência de estar trabalhando com a palavra aparece nesta identificação metalingüística: “as pessoas são frases” (p. 70) e a presença do leitor, receptor em outra realidade, está até num machadiano “confesso ao leitor nada poderoso que me sinto feliz com...” (p. 70). Afinal, “Quem ousaria negar que – ao menos para uma memória fértil – o passado situa-se a posteriori?” (p. 154).
            Interessante que Murilo, circunscrevendo suas memórias ao tempo da infância e da adolescência, também elas estão circunscritas num espaço preciso e delimitado: Juiz de Fora até o Morro do Imperador, constantemente citado. A justificativa parece coerente: as descrições singulares e observações demasiadamente precoces têm uma lógica “espacial”, se assim podemos chamar: “Escapando-nos o mar, oprimindo-nos a montanha relativa, a gente se vinga com um desafio maior do cotidiano; a cidade pequena, ao mesmo tempo que nos circunscreve, propõe-nos um treino mais intenso dos sentidos e da imaginação. Evadimos da realidade transfigurando-a.” (p. 95/96)
            No capítulo “Florinda e Florentina” (p. 95), a imaginação do poeta deixa em suspense o que poderia ser o final de um conto não trabalhado. O casamento das gêmeas, a reivindicação de uma delas alegando (ficção ou não?) uma permuta de corpos dá um toque todo especial a esta parte.  Aliás, o livro funciona como partes principalmente. Sem a seqüência cronológica, sem um fio condutor, linear, pode-se ler cada capítulo isoladamente, como fragmentos de escritura, cuja origem foram fragmentos de memória.
            E que é a memória se não fragmentos de uma realidade já “transfigurada”? Daí eu poder dizer que Murilo Mendes trabalha não só com memórias em linguagem poética, mas também com suas características hiperbolizadas, poli-memorizadas, metalinguagem em suas idas e vindas dos mais diversos pólos.
            A divisão da realidade cotidiana, o vulgar e o insólito estão presentes a todo momento, no fio da navalha, como a linguagem: prosa e poesia. E Murilo, amplamente possuidor deste processo de colocação dicotômica das coisas prosaicas da vida, esclarece, mesmo que a respeito de sua relação com o cinema: “... soube então que a realidade é inumerável. Desgraçados dos que admitem só algumas parcelas da realidade.” (p. 105)
            Num mundo sempre em crise, Murilo justifica-se (e ao seu discurso) como um ser insólito e precocemente sensível. Essa agudez de percepção do universal ele soube captar em um pequeno mundo circunscrito em um espaço geográfico delimitado e provinciano. Talvez que o excêntrico Murilo concorresse para cultivar seu próprio mito... Inclusive há muito de ironia, de riso e até de emoção fácil em alguns momentos, como a vida,  aliás.
            Suas memórias fazem-no, como em Proust, “senhor da própria experiência”, não desencadeada pelo sabor de um biscoitinho e, sim, me parece, por uma vontade que deve ser colocada no plano ideológico da escolha da atitude, isto é, de justificar, através do passado, um presente em todas as idas e vindas pelo tempo. Daí também a característica crítica, imanente em toda a sua obra.
            Boris me alertava que se pode procurar as raízes deste tipo de memórias aqui mesmo, na Literatura Brasileira. Marques Rebelo e outros já colocavam o fragmento, o retrato e outras características afins em suas memórias. Mas a referência da prosa memorialista de Murilo Mendes, ao lado das memórias de Pedro Nava (por coincidência de Juiz de Fora e, curioso, nem um nem outro se citam, embora fossem contemporâneos), constituem algo realmente invulgar na Literatura Brasileira. 

E, infelizmente, uma prosa pouco conhecida e estudada.




[1]  Os Relâmpagos de Murilo Mendes, in Língua e Literatura no. 5, São Paulo,  Revista da USP, 1976, páginas 433-441, resenha escrita em colaboração com Elisabet G. Moreira, sobre o livro Retratos Relâmpago de Murilo Mendes.
[2] “Sobre la composición Del “Eugeni Onegin” in Formalismo Y Vanguardia,  Madri, Alberto Corazón Editor, 1973, 2ª. Ed.
[3] JAKOBSON, Roman. Questions de poétique. Paris, Seuil, 1973.
[4] VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos. S. Paulo, Difusão Européia do Livro/USP, 1973, p. 78). 

(Transcrição da carta de Murilo Mendes a Boris Schnaiderman)

                                                                                   Roma, 27 maio 1975.

Querido Boris Schnaiderman,

            Muito lhe agradeço o envio da interessante página plano de pesquisa, feito por V. e pela sua orientanda Elisabet G. Moreira.
            Achei ótima a idéia, e tudo leva a crer que a realização também o será. Como é natural alegrei-me ao ver uma pessoa da sua categoria tão interessada na minha obra, tão pouco conhecida e sobre a qual se tem escrito tantas tolices. Certos críticos escreveram tão mal sobre ela, que estou certo de que a conhecem muito pela rama. O interesse dos críticos mais moços me consola.
            Sou suspeito no caso, querendo ser juiz em causa própria, mas creio que você e sua orientanda disseram coisas exatas. De resto, é possível que só agora, com o recuo do tempo, se possa começar a ver mais claro nos meus textos.
            Na bibliografia falta o livro “Retratos-Relâmpago”- 1a. série, publicado pelo Conselho Estadual de Cultura de S. Paulo com data 1973, mas na realidade saído em 1974. O Haroldo, quando esteve aqui, uns 3 meses atrás, disse-me que desconhecia a existência desse livro. De qualquer maneira, creio que o Prof. Santa Cruz, da “Livraria Duas Cidades”, poderá lhe arranjar um exemplar. Gostaria que V. e a senhora Elisabet o lessem e mandassem me dizer algo sobre.
            Também poderá constar da bibliografia o artigo de Lélia Coelho Frota, “Retratos, o Microcosmo de Murilo Mendes”, no “Jornal do Brasil” de 7.5.75.
            De novo, mil agradecimentos.
            Na esperança de o rever em Roma, Saudade e eu abraçamo-lo afetuosamente.
                                                                                               Murilo.

Queira transmitir nossas saudações a D. Elisabet.
                                                                       M.

           
Notas:
  1. Murilo Mendes faleceu três meses depois de ter escrito esta carta, em Roma, onde era professor de Literatura Brasileira e crítico de arte, bastante respeitado.
  2. Boris Schnaiderman e eu fizemos uma resenha sobre o livro Retratos-Relâmpago.  “Os Relâmpagos de Murilo Mendes”, publicada em Língua e Literatura no. 5, São Paulo,  Revista da USP, 1976, páginas 433-441. Minha dissertação de mestrado, sob a orientação de Boris Schnaiderman, com o título “Murilo Mendes: uma representação operacionalizada”, em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, foi defendida e aprovada com distinção em 1981, tendo como arguidores os professores Alfredo Bosi e João Alexandre Barbosa.
  3. Maria da Saudade Cortesão era sua esposa, citada no final da carta.
  4. Trabalhos meus sobre Murilo Mendes, alguns em colaboração com Boris Schnaiderman, constam da indicação bibliográfica no final do livro Murilo Mendes – Obras Completas, Rio, Nova Aguilar, 1994.
Elisabet Gonçalves Moreira




domingo, 7 de julho de 2019

Sobre um pequeno livro e uma proposta: Leituras exemplares (à maneira de Tolstói)


De minha autoria, saiu publicado em tiragem limitada, estilo cartonera, quase manual, o livro 
Leituras exemplares (à maneira de Tolstói).

Por que este título? Por que este livro?

Foi somente após ter ganho os três volumes dos Contos Completos de Liev Tolstói, tradução de Rubens Figueiredo, editado pela CosacNaify em 2015, que vim a conhecer os textos da Nova Cartilha e Livros Russos de Leitura no volume 2.

Tolstói usa e escreve, quase compulsivamente, fábulas, casos, raciocínios, histórias reais, contos, pequenos grandes textos escritos e reescritos para sua cartilha e livros de leitura. Motivada, memórias em desafio, escrevi os primeiros textos. Fui me entusiasmando, foram me incentivando e, por fim, uma iluminação: por que não os reunir em um livro?

Mesmo poucos, esses textos do que chamo “Leituras Exemplares” me representam... sem a pretensão do que a cartilha e os livros de leitura foram para Tolstói e seu projeto educativo.

O conde Liev Nicolaievitch Tolstói (1828-1910) se dedicou pessoalmente a alfabetizar crianças em sua propriedade, Isnaia Poliana, e essa frase me faz refletir ainda mais sobre o processo pedagógico pelo qual se empenhou: “Quem deve aprender a escrever com quem, as crianças camponesas conosco, ou nós com as crianças camponesas?” A atualidade deste questionamento é fundamental e, pensando bem, acho que foi isso que, subliminarmente, me motivou a escrever.

A apresentação dos Contos Completos, feita pelo tradutor, Rubens Figueiredo, é esclarecedora sobre aspectos fundamentais do artista e de sua obra. “A preocupação contínua do escritor com as narrativas orais, de origens antigas, disseminadas entre as populações ágrafas ou analfabetas, foi um componente decisivo em seu esforço para elaborar formas diferentes de narrar. As fábulas, as vidas dos santos, as aventuras de heróis populares, as lendas, as parábolas, em lugar de serem vistas como formas elementares, atrasadas, superadas pelos padrões literários modernos, representam pontos de vista alternativos, de onde os vitoriosos se revelam menos consistentes em suas pretensões.” (página 28, volume 1).

O grande escritor russo, autor de “Guerra e Paz” e “Ana Karenina”, entre outras obras que marcaram o século XIX, tinha em mente que a Arte deve comunicar sentimentos do bem, pois o bem é eterno, ao contrário da beleza que é temporária. Em síntese, um bom artista é aquele que consegue passar uma mensagem complexa da forma mais simples possível. Pode-se não concordar com ele ou com o extremismo de algumas de suas ideias e atitudes, mas sua obra e seu legado o tornam uma das grandes referências da literatura mundial.

A Mulher e a Galinha (Fábula)
Uma galinha botava um ovo por dia. A dona achou que, se desse mais comida, a galinha poria duas vezes mais ovos. Assim fez. Mas a galinha engordou e parou de botar ovos.
(Tolstói, Contos Completos, vol. 2, página 68)

Usei esta pequena fábula, que aparece em Esopo e em outras culturas antigas, reescrita por Tostói, como epígrafe do livro. Mas o importante foi o questionamento feito pela amiga Irene Britto. Aqui, ao deixar sem a moral, Tolstói “abre” a interpretação... “Por que não entender a moral das fábulas e contos sob outra perspectiva em tempos tão plurais?”

Justifico, sob esta perspectiva,  a reescritura de alguns casos e da minha opção ao criar e classificar os textos. Sei que poderia ter escrito mais textos. Às vezes me acodem outras ideias, registro, penso em desenvolver talvez um segundo livro... mas aí também entra a proposta da publicação e de sua recepção. Minha experiência como professora em vários níveis de ensino e a literatura, conjugada com aulas de redação, durante décadas, sem dúvida serviu de arcabouço para os textos que fui criando “à maneira de Tolstói”.

A classificação dos textos, feita por Tolstói, serviu não só para me orientar como me motivar para a redação dos textos, sua diversidade possível. É certo que classificar um texto em determinado tipo ou gênero nem sempre é o mais adequado para o leitor ou para o próprio texto. Por exemplo, uma fábula pode ser um conto ou uma lenda. Uma história tida como real, não é recontada? Qual o critério para uma descrição ou um raciocínio? Ou para escolher episódios da História e contá-los de acordo com seu ponto de vista?

Ademais, Tolstói não separou os textos, agrupando-os por sua classificação. Para mim, isso foi também uma descoberta. A cada página uma leitura diferente, contrastante às vezes, mas reveladora dos significados com que apreendemos a realidade.

Odomaria Bandeira, educadora múltipla, fez várias observações sobre o livro, ainda nos originais. Mas o que mais me tranquilizou foi ela ter sintetizado “Esses textos denotam um modo de pensar, certa filosofia do cotidiano na qual se encontram muitos ensinamentos para quem quiser aprender, inclusive sobre lógica e linguagem; e nos remetem aos fluxos da memória e da tradição oral, a práticas sociais como metodologias do conhecimento e epistemologias que estruturam tipos de pensamento”.



Penso, pois, que este pequeno livro também possa ter um caráter utilitário e pedagógico, leitura para crianças, desafios para professores e alunos, alternativas de escritas, depoimentos. Acreditar que, sobretudo, seja um livro prazeroso, uma leitura marcante em possibilidades significativas.




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Eis a relação dos textos e sua classificação. Penso em publicá-los aos poucos, neste blog, um espaço que me satisfaz em divulgação nestes tempos digitais...

1.       Sotaque da cidade (História real)
2.       Como uma filha festeira denunciou a si mesma (História real)
3.       O céu do sertão (Descrição)
4.       O ribeirinho e o remo de ouro (Fábula)
5.       A flor de cinco pétalas (Raciocínio)
6.       Pau-de-colher (História)
7.       O poder das carrancas (Lenda)
8.       Os cafutins (História oral)
9.       Um causo de João Grilo, o Treloso (História oral)
10.   A mãe do Mato (Conto popular, História oral)
11.   O apanhador de Sonhos (Lenda)
12.   O gato e os filhotes de passarinhos (História real)
13.   Brincadeiras de menina (Conto/reflexão)
14.   O banquete das formigas (Fábula)
15.   Um governo tirânico e genocida (História)
16.   A computação eletrônica e o domínio de seu uso (Raciocínio introdutório)

Notas explicativas

  • Os dois textos que classifiquei como História oral foram um recorte de contos pesquisados oralmente e transcritos para o projeto Contos Populares Brasileiros, Pernambuco, coordenador: Roberto Benjamin. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1994.

  • “A Mãe do Mato” foi ligeiramente adaptado da publicação Contos de Sequeiros e Ribeirinhos: mapeamento de histórias orais. Organização de Cristiane Amador.  Editado pela Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco, Funcultura/Fundarpe, s/d.

  • Somente o último texto “A computação eletrônica e o domínio de seu uso” foi publicado no blog e teve a colaboração de Cecílio Bastos.  Não coloquei referências bibliográficas em textos pesquisados, pois a releitura foi com a intenção de sintetizar, em linguagem tipo artigo, considerações gerais. À maneira de Tolstói...
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Gosto muito de desenhar e fiz algumas ilustrações com lápis preto.  Um viés amador e pessoal em toda a produção.

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Uma seleção ilustrativa do que escrevi... apreciação geral. Observação: se alguém se interessar pela aquisição do livro me escreva. Prazer em divulgar.

Como uma filha festeira denunciou a si mesma
(História real)
Manhãzinha, a mãe acordou e percebeu que alguém entrava em casa, abrindo a porta com chave.

Deu de cara com a filha que havia saído à noite para dormir na casa de uma amiga, numa sexta-feira.

Para não ser surpreendida, vinha com os sapatos na mão, mas a mãe nem retrucou: o cheiro de suor da filha, os olhos embaçados, cabelos em desalinho, nada a esconder.

E sequer soube o lugar onde fora, com quem, se uma festa inocente ou indecente, se amigas ou namorados casuais... perigos que coração de mãe quer proteger e a vida adolescente quer para si em destemor. Melhor acreditar que tudo correu bem, a volta à casa.

Vá tomar um banho, menina!

O ribeirinho e o remo de ouro
(Fábula)
O ribeirinho, ao pescar no meio do rio, deixou cair o remo na água. Sem ter como remar, viu-se perdido na madrugada e no caminho das águas.

Rezou e pediu ao espírito benevolente do rio que lhe devolvesse o remo. Sua vida e o sustento de sua família estavam em risco.

O barco bateu num banco de areia e lá estava um remo brilhando ao sol, como as escamas do dourado. O ribeirinho agradeceu ao espírito do rio e levou o remo para casa.

A partir daquele dia, o ribeirinho pescou com abundância e sem perigos até o fim de sua vida.
Todos os ribeirinhos das correntezas e redondezas ficaram maravilhados com o remo. Mas o compadre invejoso foi até o rio em seu barco, jogou o remo na água. Rezou também e pediu um remo de ouro ao espírito das águas.

O fato é que nunca mais se teve notícias do compadre.

Pau-de-Colher
(História)

Casa Nova, na Bahia, município que faz parte da região do vale do rio São Francisco, fica situado na parte de cima da represa de Sobradinho, inaugurada em 1979, que transformou o rio num grande lago, um dos maiores do mundo.

Pertencendo ao município, existia um lugarejo chamado “Pau-de-Colher”, na caatinga longínqua, mas próxima de vários estados, Bahia, Pernambuco e Piauí. Com o nome do lugar, ficou conhecido o massacre de gente pobre por militares desses estados, em uma grande operação de guerra.  O fato aconteceu muito antes da represa, em 1938, após uma resistência dos que ali viviam em comunidade há alguns anos, com rígidas normas religiosas e de convivência.

Eram liderados por beatos e penitentes, dos quais de destacaram José Senhorinho e Joaquim Bezerra — o “Quinzeiro”. Representantes da mediação entre o mundo do sagrado e os pecados terrenos, atraíam lavradores pobres ou mesmo remediados que abandonavam tudo para ali viver e esperar a salvação eterna. Ascéticos, não bebiam nem fumavam, não comiam carne nem gordura, passavam o dia rezando pela salvação de suas almas, usavam luto pela morte do padre Cícero e tratavam uns aos outros como irmãos.

Cedinho, eram acordados pelo beato, com rezas cantadas em quadrinhas, como esta:

Alevante pecador
Trata do que há de fazer
Vamos cuidar em nossa vida
Antes de morrer

Esse modo de vida chocava a população urbana e perturbava a ordem social em vigor. Onde conseguir trabalhadores e consumidores? Sem dúvidas, as coisas caminhavam para um enfrentamento. A violência acabou se fazendo presente e “caceteiros” foi como ficaram conhecidos os sertanejos participantes da comunidade, pois usavam porretes com uma cruz para abater inimigos ou descrentes.  Boatos se espalharam. Dizia-se que ali, em Pau-de-Colher, havia centenas de cangaceiros se preparando para atacar toda a circunvizinhança e implantar o comunismo.

O comunismo era visto e difundido como a pior praga neste mundo de Deus, contra a verdadeira religião e a favor da tomada dos bens de quem os tinha para serem distribuídos entre todos. No imaginário dizia-se até que comunistas comiam crianças. O Brasil vivia uma ditadura, o chamado Estado Novo, cujo presidente era Getúlio Vargas.

A repressão chegou violenta, com a chegada da polícia militar baiana, depois por soldados piauienses, apoiada por jagunços, mercenários dos coronéis ricos e proprietários de muitas terras. Os caceteiros reagiram e houve mortes dos dois lados.

Para a destruição final, o comandante geral, tenente-coronel Maynard, auxiliado por batalhões do exército, comandou a operação, apoiado pelo coronel Dantas, interventor baiano, por policiais militares do Piauí e pelo capitão Optato Gueiros, de Pernambuco, temido comandante das forças volantes de combate ao cangaço.

Sabe-se que, armados de metralhadoras, os policiais pernambucanos abriram fogo, matando centenas de homens, mulheres e crianças. Depois de 42 horas de batalha, os sobreviventes foram caçados como animais e degolados. Há relatos de mais de 400 mortos. Outros foram presos. Os pais perderam o direito pátrio sobre os filhos, que foram entregues como escravos a famílias da região e da capital baiana. Essa brutalidade injustificável ainda choca na memória dos remanescentes vivos ou de seus descendentes.

Pau-de-Colher deve ser considerado não como fato isolado, mas uma confluência de acontecimentos semelhantes, um processo contínuo de perseguições a movimentos populares, de cunho religioso em sua base estrutural, desde o Ceará. Movimentos esses caracterizados como insurgentes contra o governo autoritário da época, contra os ricos coronéis e seus latifúndios, detentores de um poder patriarcal e secular. Tudo agravado pela seca que faz parte do clima da região e que desencadeava a penúria para os nordestinos sem terras, moradores da caatinga.

Portanto, esse ainda é o tipo de exemplo de história em que se quer atribuir justificativas reducionistas, seja pela ignorância de um povo iletrado ou pelo fanatismo religioso de cunho milenarista, o credo no apocalipse do fim do mundo, como lhes havia ensinado a Igreja colonizadora.

O então presidente do Brasil, ditador Getúlio Vargas, enviou um telegrama ao interventor Dantas, felicitando-o pelo extermínio de Pau de Colher, entre outras comemorações da vitória dos soldados sobre os “fanáticos”.

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Agradeço também às pessoas que foram ao lançamento do livro no espaço Janela 353, gentileza de Chico Egídio e do Café de Bule. Palavras generosas ouvi. Muito obrigada.

 





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