Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O interagir numa história de 30 anos: TPA – Teatro Popular de Arte


Na história de Petrolina, um grupo teatral: TPA – Teatro Popular de Arte, 1989-2019, em homenagem. Parabéns preliminares aos envolvidos diretamente e ao SESC local que, no seu Aldeia de todos os agostos, se refere ao Velho Chico para aplaudir a arte de suas margens.

Mas vem o pensar, o querer desvendar. Por que Teatro Popular de Arte?

Há uma postura estética e ideológica significativa na colocação da palavra Popular.
Usada como adjetivo da palavra teatro, nos remete a uma visão da arte cênica voltada para o povo, em contraponto com o teatro erudito, das elites, restrito a uma classe de maior poder aquisitivo e cultural. Sabemos o quanto isto é discutível, mas, no senso comum, esse é seu significado básico. Então teria sido esta a proposta inicial e motivadora do grupo?

Explícito está na divulgação dos princípios básicos fundamentais do TPA, o de “possibilitar o acesso de todas as camadas sociais aos seus espetáculos” e “produzir espetáculos de arte”.

Em 1989, no contexto nacional e político, foram realizadas as primeiras eleições presidenciais diretas desde 1960, após a repressão militar que marcou pessoas e mentes. Não esquecer também a mobilização popular que resultou na Constituição Cidadã de 1988. Assim, é perfeitamente justificável este adjetivo pela pretendida democratização no acesso ao teatro.

E se tivessem definido como TAP – Teatro de Arte Popular?

A proposta seria diferenciada. Entendo que há uma delimitação dirigida ao papel da arte acompanhada com a palavra popular. Exemplo: uma manifestação legítima da cultura popular, “folclórica”, como um reisado, tem outra conotação neste conceito de “teatro de arte popular” para um grupo urbano, criado especialmente para fazer teatro, utilizando peças consagradas.

O significado do nome assumido, TPA, é, pois, indicativo da escolha dos espetáculos, ou de seu repertório, com um histórico de sucesso admirável. Nesses 30 anos o grupo consolidou-se, garantindo plateia, aplausos, risos e emoções.

Melhor entendo também a continuidade do TPA. Todos os participantes se engajam na proposta. E isso faz(fez) toda a diferença. Sabemos que o teatro, arte efêmera, evento único, só se realiza, inteira e completa no momento presente. Assim, como um coletivo, todas as plurifunções de um espetáculo se entrelaçam no desempenho responsável de todos.

O TPA, nesta Petrolina provinciana, foi inteligente para perceber a capacidade comunicativa e desmistificadora do teatro, de amealhar o público local para uma linguagem onde ele se reconhece. Ainda que não tenham criado espetáculos de sua autoria, souberam escolher as peças e autores.

Ariano Suassuna e sua representação do Nordeste é o autor mais encenado pelo grupo. O riso é a catarse em que se desnudam as máscaras sociais, o Brasil autoritário e preconceituoso.

Consolidada esta visão, outras peças e autores foram sendo apreciadas e encenadas. Então vieram ao palco Gianfrancesco Guarnieri, Dias Gomes, Nelson Rodrigues. Mais ainda: teatro infantil, Maria Clara Machado, Pedro Veiga, até mesmo o musical Os Saltimbancos, de Chico Buarque.

O século XXI, numa cidade onde muitos grupos teatrais e de dança se lançaram com uma diversidade nunca vista, e, sobretudo, onde a presença do SESC e seu teatro foi fundamental como espaço cênico, trouxe para o TPA desafios corajosos e mais dramáticos. Domingos Soares, seu principal encenador, é a referência nesta compreensão.

É significativo citar diretamente que, em 2014, montou o espetáculo Patética, de João Ribeiro Chaves Neto, em alusão aos 50 anos do golpe militar de 1964 e, em 2018, o TPA montou o seu 13º trabalho: A Cantora Careca, de Eugene Ionesco, com direção do ator Paulo Reis de Mello.

Essas peças, ao lado das encenações costumeiras e homenagens ao mestre Ariano, consagram definitivamente o TPA na memória do teatro local. Ainda que críticas possam ser feitas – aliás, não temos um crítico teatral com coragem e bagagem para isso – vamos repensar as dificuldades de se fazer teatro amador na cidade e na região.

Estamos seguros de que esses 30 anos do TPA servem de referência e avaliação para todos nós, de sua importância e de sua capacidade de existir e atuar nesse exemplo de país e de uma cidade que se desmorona sem políticas públicas participativas e educação para a arte e a cultura.

Tantas vozes, tantos entrelugares, produzindo sentidos... Continuemos nossa história, saudemos a memória possível. Viva o TPA!

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Obs.: Este texto também foi publicado no Jornal A Ponte - Informativo do XV Festival de Artes do Vale do São Francisco - Ano XII - 2a. edição - Petrolina, l de agosto de 2019



sábado, 3 de agosto de 2019

MURILO MENDES: A MEMÓRIA ALÉM DOS LIMITES DA PROSA


Retomando ensaios e estudos. Esclarecendo: este trabalho foi originalmente adaptado de trechos de minha dissertação de mestrado, sob orientação de meu amigo e  professor Boris Schnaiderman, em Teoria Literária e Literatura Comparada, defendida na Universidade de São Paulo, em 1981. Reescrevi este estudo em 1990 para ser apresentado no 2º Congresso da ABRALIC na UFMG, em Belo Horizonte, em 1990. Leio, releio, há sempre algo a ser tirado ou acrescentado. O que também me impressiona, neste século onde vivo e rememoro, o quanto certos estudos são esquecidos ou ficam restritos ao momento em que foram criados e aos poucos leitores de então... O que espero então em mais este registro? Ampliar seguidores, repensar e estimular leituras e críticas.

Resumo acadêmico: o trabalho objetiva mostrar como a prosa memorialista de Murilo Mendes em seu livro A IDADE DO SERROTE (1968) se caracteriza na representação de uma linguagem que oscila permanentemente entre prosa e poesia. Memórias além do meramente referencial, já que o discurso fragmentário utilizado pelo autor recupera não só o tempo passado mas,  voltando-se para si mesmo, perfaz o caminho literário, em que ficção e realidade se complementam.

Adendo: No final deste trabalho, apresento uma cópia da carta de Murilo Mendes endereçada a Boris Schnaiderman, de 1975, pouco antes do falecimento do poeta, sobre a pesquisa que então eu começava sobre sua obra.



A IDADE DO SERROTE de Murilo Mendes (1901-1975) foi escrito em Roma durante os anos de 65 e 66 e publicado originalmente pela Editora Sabiá do Rio de Janeiro, em 1968 (as citações aqui são indicadas por esta edição). Esse livro tem na capa, fazendo parte do trabalho gráfico de apresentação, um cartão onde se lê memórias. E o são de fato, embora cheguem somente até um certo momento da vida do autor: infância e adolescência, situadas na cidade mineira de Juiz de Fora, terra natal do escritor Murilo Mendes.
            Apesar de ter sido reeditado em Obras Completas (Rio, Nova Aguilar, 1994) e de ter tido outra edição do livro em referência, o próprio Murilo Mendes se queixava de um certo “descaso” para com sua obra[1]. A IDADE DO SERROTE, como muitos outros textos de sua obra vasta e variada, é muito pouco usado ou estimulado, principalmente em livros didáticos ou antologias, já que me parece exemplar para tal. São 42 capítulos curtos, cada um constituindo um texto completo. Quase todos giram em torno de retratos de pessoas invulgares ou bizarras, de palavras evocativas ou fatos, enfim lembranças que marcaram de um modo ou de outro a formação do poeta.
            É como se abríssemos um palco para a entrada dos personagens, máscaras e tipos que irão desfilar muito mais suas excentricidades do que uma conduta linear, desmitificando quase sempre uma ambiência provinciana em sua dialética conservadora e revolucionária ao mesmo tempo para, talvez, justificar a formação do poeta, também ele um tipo considerado excêntrico pelos seus contemporâneos. E aí Murilo se desnuda como nunca, desnudando-se na forma de sua linguagem tão específica, tão peculiar. E é aí, nesse ponto, que temos seu testemunho realmente biográfico e referencial, como o artista sobrevive: através de sua obra. São fragmentos de memória em que Murilo Mendes apresentados como rememoração e representação de uma realidade que vive enquanto discurso, enquanto linguagem literária.
          A análise dos livros de poesia de Murilo deixa entrever facilmente a observância de um processo regular de rememoração – muito mais acentuado em suas últimas obras. Esta invariante memorialista, em alguém tão inquieto criativa e criticamente como foi Murilo Mendes, converge em A IDADE DO SERROTE para outro tipo de linguagem, que é sua prosa. Uma prosa riquíssima, muito mais linguagem poética do que “prosaica” em sentido restrito.
            A oscilação poesia/prosa quase que permanente nesse livro é que nos levou a uma série de conjeturas sobre o problema dos limites entre prosa e poesia. Boris Schnaiderman[1], crítico literário, já nos alertara sobre isso em texto de 1976. No caso específico de Murilo, o que temos como procedimento constante é o desfiguramento metalingüístico do discurso, uma escritura que, indo e vindo também pelos limites do tempo, articula um significado poético, chamando a atenção sobre si mesmo.
            A “deformação” é anda mais sentida porque está hiperbolizada na forma de memórias. Uma sondagem pelos labirintos do passado autobiográfico seria o que de mais referencial poderíamos denotar dentro do discurso prosaico e,  no entanto, temos uma linguagem poética em seu alcance mais denso e que não deixa de ser prosa.
            No capítulo “Belmiro Braga”, a evocação do poeta mineiro inicia-se com dois decassílabos perfeitos e acentuação na 2a. 6a. e 10a. sílabas. Poderia até ser o início de um soneto.

“Lá vem o volantim Belmiro Braga
sorrindo no seu terno de xadrez.”

Ou este trecho do 1o. capítulo:

“...Superadas pianolas, minhas avós de carne e osso, ó vós, ovas sem ovações, mulheres-avós que eu nunca vi, desovadas em ricos dioscuros da obscura, difícil Minas de pedra, que me fazia doer o peito por falta de mar: vindas de vulvas montanhosas e de falos insapientes da importância da futura inflação humana e financeira do Brasil; bisavós remotas casadas com gigantones cabezudos; deixando cair as fazendas em usocapião, abolindo os domínios Paraopeba e Congonhas.” (página 9 da edição referida no primeiro parágrafo).

            A linguagem se auto-referencializa pela constante reiteração dos sons /v/ e sibilantes, uma linguagem que pode ser até caracterizada como antropofágica em suas metáforas, numa oscilação dos limites entre ficção e realidade.
            Estes e outros recursos não tiram, porém, ao livro o caráter de prosa ritmada, mas bem prosa narrativa: discursiva, até derramada nas palavras de Boris Schnaiderman. Há realmente algo de malícia neste emprego de recursos fáceis. A facilidade aqui, parece, se torna ironia e crítica do próprio discurso. Uma ironia e um humor descendentes diretos do Modernismo de 1922, e muito mineiro. Não só nas imagens, mas até na oralidade registrada como “guais maginando”.
            Segundo um ensaio de Iúri Tinianov[2] é o “umbral semântico” o fenômeno que estabeleceria o limite essencial entre prosa e poesia.
            Prosa e poesia se distinguem entre si não pela sonoridade imanente, não porque a poesia se orienta de modo coerente e sistemático para o som e a prosa para os significados, mas, substancialmente, pelo modo como esses elementos influem um sobre o outro; pelo modo como o aspecto sonoro da prosa é deformado pelo seu aspecto semântico (pela orientação da atenção para os significados) e o significado da palavra é “deformado” pelo verso.
            Não é só neste livro que a prosa de Murilo Mendes parece ser antes o jogo dos princípios constitutivos de prosa e poesia: a função do significado deformado pelo som na prosa e a função sonora igualmente deformada pelo significado. Essa deformação constitui-se num fator de dinamização verdadeiramente artístico tanto em uma como em outra, contribuindo para o enriquecimento de ambas.
            O tempo também não é o tempo de uma visão realista, nos moldes cronológicos e biográficos. Vai-se e volta-se constantemente pelos limites do tempo rememorativo: não só o passado subsiste como narrativa poética na maioria das vezes, chega-se a um outro tempo – o da escrita – presente da ação e futuro em oposição ao passado. E ao tempo da leitura, leitor em sua recepção e presença.
            O primeiro capítulo, intitulado “Origem, Memória, Contato, Iniciação”, foi objeto de uma análise textual admirável, feita pelo professor e crítico Antônio Cândido, na USP, num curso de 1975, do qual participei e passo a sintetizar anotações feitas na época.
            O professor mostrou como Murilo Mendes manipula a palavra em dois sentidos: num primeiro, o de reforçar a semelhança da palavra com o mundo e, em outro sentido, o de desmanchar tal semelhança. Este duplo movimento é que vai garantir e perturbar ao mesmo tempo o nexo com o mundo. Justamente é esta tensão de ambiguidade que permite a formação da mensagem literária especificamente. Na imagem, na metáfora, o poeta possui e não possui o mundo.
            A palavra, atuando sobre o mundo, vai desfigurando-o e trazendo-o para dentro do discurso. A palavra realça o discurso, devorando os objetos nos campos sonoro e semântico, do significante e do significado. Sabemos que, nos limites, o discurso poético faz esquecer o mundo e se torna um novo mundo. Se no nível sonoro constitui-se um sistema específico de sentido, sabemos, como Jakobson[3] demonstrou várias vezes, que o discurso poético chama a atenção sobre si mesmo. Temos, portanto, no caso de Murilo Mendes, efeitos de cunho sonoro e depois os de cunho analógico.
            Com esta colocação do discurso de Murilo Mendes é que podemos dizer que temos memórias ao nível de poesia. Ele nos apresenta o mundo desmanchado (ou “deformado”, segundo Tinianov); propõe o mundo mas propõe a si mesmo, utilizando-se de uma lógica sobretudo anafórica e paronomástica. Temos um discurso não como correspondência entre texto e sociedade, mas como esta se transforma em elemento estruturador do discurso.
            O processo de concorrência do mundo do discurso pode ir mais longe, ter sentido quase que só nele próprio. É o caso deste seqüência do primeiro capítulo, por exemplo:

As têmporas de Antonieta. As têmporas da begônia.
As têmporas da romã, as têmporas da maçã, as têmporas da hortelã.
As pitangas temporãs. O tempo temporão. O tempo-será. As têmporas do tempo. O tempo da onça. As têmporas da onça. O tampão do tempo. O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulheres temporãs. O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensão, e que não é aquele tempo. Temporizemos.

            Esta é uma seqüência mágica. O que interessa mais é o discurso, sensação poética extraordinária, fragmentos rememorativos e/ou associativos num contexto poético. Jogo sonoro: de tempo – ra – rã (têmporas). Jogo de significados: observa-se em compressão o tempo que passa, seja nas “têmporas de Antonieta”, seja nos avisos – tambores – seja nas outras associações. Há encanto e pavor por este mesmo tempo. É o tempo da infância, não o atual, mas o das memórias,  representadas pela escrita. A resultante é, pois, um avançado estágio de desfiguramento do mundo, um discurso literário, não referencial e, sim, poético.
            No primeiro capítulo está também justificado o título do livro: “As primeiras letras. As primeiras lutas. Perto do colégio – uma serraria.”  Para Murilo Mendes são instrumentos hostis o serrote, o martelo, a torquês, símbolos “torcionários”. E essa “idade do serrote” é justamente aquela em que o mundo agiu “torcendo” não o pequeno rebelde, mas o “voyeur” na infância e na adolescência. Aliás, esta espécie de reflexão e inserção do discurso em outro plano, de diálogo consigo mesmo e com o leitor se dá sincronicamente, após a evocação, quase sempre no final dos capítulos. Vozes e consciências que se alternam sem ingenuidade.
            Só em A IDADE DO SERROTE, o poeta parece livre, nesta linguagem rememorativa e poética, para rememorar também sua própria linguagem do início de seus poemas, a linguagem algo debochada e desmitificadora de HISTÓRIA DO BRASIL e que Murilo Mendes renegou a certa altura. Parece-me que a explicação do termo “memórias” justifica inconscientemente esta re-aceitação de um discurso “renegado”.
            O fato de escrever memórias lhe garante esta volta às origens, já que, no plano mitológico, reside aí a função da memória: não reconstrói o tempo e nem o anula. “Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além ao qual retorna tudo o que deixou a luz do sol. (...) O privilégio que Mnemosyne confere ao aedo é aquele de um contacto com o outro mundo, a possibilidade de aí entrar e de voltar dele livremente. O passado aparece aí como uma dimensão do além.”[4]
            Murilo Mendes “assume” o tempo todo o seu texto como memórias, consciente desta atitude de representação. Citando:

“Movido por um instinto profundo, sempre procurei sacralizar o cotidiano, desbanalizar a vida real, criar ou recriar a dimensão do feérico.” (p. 62)
ou
“Juntando estes e outros atos que guardo nas prateleiras da memória.” (p. 50)

            A consciência de estar trabalhando com a palavra aparece nesta identificação metalingüística: “as pessoas são frases” (p. 70) e a presença do leitor, receptor em outra realidade, está até num machadiano “confesso ao leitor nada poderoso que me sinto feliz com...” (p. 70). Afinal, “Quem ousaria negar que – ao menos para uma memória fértil – o passado situa-se a posteriori?” (p. 154).
            Interessante que Murilo, circunscrevendo suas memórias ao tempo da infância e da adolescência, também elas estão circunscritas num espaço preciso e delimitado: Juiz de Fora até o Morro do Imperador, constantemente citado. A justificativa parece coerente: as descrições singulares e observações demasiadamente precoces têm uma lógica “espacial”, se assim podemos chamar: “Escapando-nos o mar, oprimindo-nos a montanha relativa, a gente se vinga com um desafio maior do cotidiano; a cidade pequena, ao mesmo tempo que nos circunscreve, propõe-nos um treino mais intenso dos sentidos e da imaginação. Evadimos da realidade transfigurando-a.” (p. 95/96)
            No capítulo “Florinda e Florentina” (p. 95), a imaginação do poeta deixa em suspense o que poderia ser o final de um conto não trabalhado. O casamento das gêmeas, a reivindicação de uma delas alegando (ficção ou não?) uma permuta de corpos dá um toque todo especial a esta parte.  Aliás, o livro funciona como partes principalmente. Sem a seqüência cronológica, sem um fio condutor, linear, pode-se ler cada capítulo isoladamente, como fragmentos de escritura, cuja origem foram fragmentos de memória.
            E que é a memória se não fragmentos de uma realidade já “transfigurada”? Daí eu poder dizer que Murilo Mendes trabalha não só com memórias em linguagem poética, mas também com suas características hiperbolizadas, poli-memorizadas, metalinguagem em suas idas e vindas dos mais diversos pólos.
            A divisão da realidade cotidiana, o vulgar e o insólito estão presentes a todo momento, no fio da navalha, como a linguagem: prosa e poesia. E Murilo, amplamente possuidor deste processo de colocação dicotômica das coisas prosaicas da vida, esclarece, mesmo que a respeito de sua relação com o cinema: “... soube então que a realidade é inumerável. Desgraçados dos que admitem só algumas parcelas da realidade.” (p. 105)
            Num mundo sempre em crise, Murilo justifica-se (e ao seu discurso) como um ser insólito e precocemente sensível. Essa agudez de percepção do universal ele soube captar em um pequeno mundo circunscrito em um espaço geográfico delimitado e provinciano. Talvez que o excêntrico Murilo concorresse para cultivar seu próprio mito... Inclusive há muito de ironia, de riso e até de emoção fácil em alguns momentos, como a vida,  aliás.
            Suas memórias fazem-no, como em Proust, “senhor da própria experiência”, não desencadeada pelo sabor de um biscoitinho e, sim, me parece, por uma vontade que deve ser colocada no plano ideológico da escolha da atitude, isto é, de justificar, através do passado, um presente em todas as idas e vindas pelo tempo. Daí também a característica crítica, imanente em toda a sua obra.
            Boris me alertava que se pode procurar as raízes deste tipo de memórias aqui mesmo, na Literatura Brasileira. Marques Rebelo e outros já colocavam o fragmento, o retrato e outras características afins em suas memórias. Mas a referência da prosa memorialista de Murilo Mendes, ao lado das memórias de Pedro Nava (por coincidência de Juiz de Fora e, curioso, nem um nem outro se citam, embora fossem contemporâneos), constituem algo realmente invulgar na Literatura Brasileira. 

E, infelizmente, uma prosa pouco conhecida e estudada.




[1]  Os Relâmpagos de Murilo Mendes, in Língua e Literatura no. 5, São Paulo,  Revista da USP, 1976, páginas 433-441, resenha escrita em colaboração com Elisabet G. Moreira, sobre o livro Retratos Relâmpago de Murilo Mendes.
[2] “Sobre la composición Del “Eugeni Onegin” in Formalismo Y Vanguardia,  Madri, Alberto Corazón Editor, 1973, 2ª. Ed.
[3] JAKOBSON, Roman. Questions de poétique. Paris, Seuil, 1973.
[4] VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos. S. Paulo, Difusão Européia do Livro/USP, 1973, p. 78). 

(Transcrição da carta de Murilo Mendes a Boris Schnaiderman)

                                                                                   Roma, 27 maio 1975.

Querido Boris Schnaiderman,

            Muito lhe agradeço o envio da interessante página plano de pesquisa, feito por V. e pela sua orientanda Elisabet G. Moreira.
            Achei ótima a idéia, e tudo leva a crer que a realização também o será. Como é natural alegrei-me ao ver uma pessoa da sua categoria tão interessada na minha obra, tão pouco conhecida e sobre a qual se tem escrito tantas tolices. Certos críticos escreveram tão mal sobre ela, que estou certo de que a conhecem muito pela rama. O interesse dos críticos mais moços me consola.
            Sou suspeito no caso, querendo ser juiz em causa própria, mas creio que você e sua orientanda disseram coisas exatas. De resto, é possível que só agora, com o recuo do tempo, se possa começar a ver mais claro nos meus textos.
            Na bibliografia falta o livro “Retratos-Relâmpago”- 1a. série, publicado pelo Conselho Estadual de Cultura de S. Paulo com data 1973, mas na realidade saído em 1974. O Haroldo, quando esteve aqui, uns 3 meses atrás, disse-me que desconhecia a existência desse livro. De qualquer maneira, creio que o Prof. Santa Cruz, da “Livraria Duas Cidades”, poderá lhe arranjar um exemplar. Gostaria que V. e a senhora Elisabet o lessem e mandassem me dizer algo sobre.
            Também poderá constar da bibliografia o artigo de Lélia Coelho Frota, “Retratos, o Microcosmo de Murilo Mendes”, no “Jornal do Brasil” de 7.5.75.
            De novo, mil agradecimentos.
            Na esperança de o rever em Roma, Saudade e eu abraçamo-lo afetuosamente.
                                                                                               Murilo.

Queira transmitir nossas saudações a D. Elisabet.
                                                                       M.

           
Notas:
  1. Murilo Mendes faleceu três meses depois de ter escrito esta carta, em Roma, onde era professor de Literatura Brasileira e crítico de arte, bastante respeitado.
  2. Boris Schnaiderman e eu fizemos uma resenha sobre o livro Retratos-Relâmpago.  “Os Relâmpagos de Murilo Mendes”, publicada em Língua e Literatura no. 5, São Paulo,  Revista da USP, 1976, páginas 433-441. Minha dissertação de mestrado, sob a orientação de Boris Schnaiderman, com o título “Murilo Mendes: uma representação operacionalizada”, em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, foi defendida e aprovada com distinção em 1981, tendo como arguidores os professores Alfredo Bosi e João Alexandre Barbosa.
  3. Maria da Saudade Cortesão era sua esposa, citada no final da carta.
  4. Trabalhos meus sobre Murilo Mendes, alguns em colaboração com Boris Schnaiderman, constam da indicação bibliográfica no final do livro Murilo Mendes – Obras Completas, Rio, Nova Aguilar, 1994.
Elisabet Gonçalves Moreira