Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 22 de abril de 2022

DONA FRIDA


Mais um daqueles “tipos inesquecíveis” que marcaram minha vida... memórias que me salvam da rotina e reconstroem o poder da simpatia e dos afetos.

Dona Frida era uma simpática senhora, catarinense, descendente de alemães. Vivia sozinha, numa kitchenette em São Paulo, no “Bixiga” ou Bela Vista, num prédio antigo, que dava para a Avenida Nove de Julho, lado direito saindo do centro. O prédio fazia esquina com uma ladeira, de onde eu pude apreciar, da sacada de meu apartamento alugado, décimo andar, também uma kitchenette, o vai e vem de tanta vida a pulsar, nos espaços dos apertos e da poluição paulistana.

Pois bem, o apartamento de Dona Frida ficava nos fundos do andar e do meu apartamento. Havia muitos vasos de plantas ao redor de sua porta. Dedicada, limpava com um pano úmido suas folhagens. Era conhecida de todos no andar, como a minha vizinha da frente, uma sergipana cheia de filhos que gritava “Zezinho” muitas vezes ao dia... Havia também um casal jovem; a moça estava grávida quando cheguei ao prédio.

Morando com meu futuro marido, trabalhando e estudando, numa vida com alguns sobressaltos, dificuldades muitas, mas muito tesão... em vários sentidos, bem sentidos. E que os moradores do andar percebiam pois ficavam atentos; realmente a vizinhança de um andar é assunto para muita fofoca e observações maliciosas.

Recebíamos muitas visitas, éramos jovens e curtíamos o início dos anos 70 com tudo que estivesse a nosso alcance. Artistas de vários naipes, atores, hippies, até professores iam e vinham... certa vez fiz uma feijoada que a vizinha da frente veio pedir um pouco para a moça grávida do andar, pois o cheiro havia se espalhado no ar.

O fato é que também fiquei grávida. Embora estivesse entusiasmada em ser mãe, tive um parto muito difícil. Operada, sentia dores da cirurgia e o leite das mamas “empedrou”. Fiquei traumatizada, não aguentava sequer ouvir o choro da criança. Meu marido tentava de tudo, mas choro de criança de madrugada, quem passou por isso é que sabe...

Foi aí que Dona Frida entrou em nossa vida; um desses acasos que nos salvam daqueles aperreios prontos para nos destruir... Ela chegou a nossa porta e se ofereceu para cuidar da criança, me ensinando nestes manejos que não se aprende na escola, a dar banho, trocar fraldas (de pano!!!), a higienizar potes e mamadeiras, inclusive a colocar compressas no meu seio dolorido.

E então fiquei sabendo quem era Dona Frida. Ainda hoje me emociono com sua confissão. Ela havia sido enfermeira, cuidadora de crianças, de muitos recém-nascidos nos “berços de ouro” da alta burguesia paulista. Um trabalho de muita dedicação, horário integral, que as mães verdadeiras pagam para suas substitutas babás, garantindo tranquilidade e uma vida sem sustos e cuidados com seus pequenos.

Sem dúvidas Dona Frida deveria ter sido bem requisitada. Branca, loira, de aparência impecável, uma senhora distinta e experiente. Nada a ver com o estereótipo ridículo da babá alemã. Sabia trocar fraldas, acalmar o choro, fazer mamadeiras e cativar as crianças... mas aí é que estava o problema. Ela também era cativada, amorosamente; passava em geral dois anos no máximo com os bebês que acompanhara desde o nascimento. E, então, era mandada embora para nunca mais vê-los, sequer ter notícias desses filhos dos outros. E havia sempre outro bebê na fila de espera...

Seu coração doía de tanta dor. Ela cobrava “caro”, tanto que conseguiu comprar seu apartamento onde morava. Entretanto, chegou uma hora que não aguentou mais. Não havia oferta que a fizesse voltar ao antigo ofício. Seus filhos eram agora suas plantas, o cuidado extremoso com seu vigor e beleza.

Mas, e meu filho? 

Também por ele se apaixonara; perguntei quanto ela iria cobrar pela ajuda fundamental que me dera, por mais de uma madrugada em que batíamos na sua parede, pedindo socorro. Ela disse que eu não lhe devia nada, mas, se quisesse, poderia lhe dar um vaso de plantas. Comprei um lindo vaso repleto de antúrios e dei com gosto e vergonha. Porque sabia que mais uma dor iria lhe cortar o coração.

Então, antes de completar um ano, nos mudamos para uma pequena casa no bairro de Veleiros, parada final do ônibus. Eu a convidei para a festinha de aniversário do meu bebê, com alguns parentes e amigos. Ela foi. Depois, nunca mais a vi.


Petrolina, 22 de abril de 2022.