Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Vazante de Lys Valentim






O que procuramos na vazante?

O que achamos?

Lys Valentim está à procura... Indagações de jovem mulher, artista destas margens, entre vivências que fertilizam expressões de arte.


Literalmente pinta e borda, nomeia, instala, grafita, filtra obras em telas, tecidos crus e paredes.  Mescla linguagens em cores e pontos, materiais diversos para sua criatividade. Mas tem um foco: sua essência de mulher. Onde se revela, desvela...

Figuras femininas são a invariante em significados de leituras. 
Ela mesma nos dá a dica no título que escolheu para sua primeira exposição individual - Vazante - e nos nomes de suas obras, uma procura da poesia. Assim, o que vaza, também enche... o refluxo da vida remete a memórias, a signos diversos, símbolos de uma feminilidade que a desafia, que nos desafia.


É possível "Tarrafar na chuva"? (acrílica sobre tela)

Metáforas e sugestões de vazar dores, lágrimas, filhos, sangue, para renascer uma mulher que sabe apanhar, além das águas, o mundo que dialoga em pequenos índices reveladores. Um joão-de-barro, um barquinho de papel (ou muitos), respingos de água, pássaros, conchas, cabelos entrelaçados, coração exposto...


Lys – que também está no meu nome – mulher valente que nos irmana, a vida não nos dá respostas prontas, então, sempre à procura estamos. Melhor o caminho, o processo dessa busca, onde nos fortalecemos. Obrigada por este encontro.


"Maria casca dura coração de rapadura"  Acrílica sobre tela


"Filtrar" Instalação



"Sua dor vai virar mar" Bordado e aquarela sobre tecido

(Observação: nem todos os trabalhos da exposição são aqui mostrados)

Petrolina e Juazeiro, novembro de 2018


domingo, 11 de novembro de 2018

Textos em desafio (I)

Labirinto




Olho para mim mesma...
Me enrolo,
me enrosco...

Sigo nos descaminhos
                                      Outros traços,
         Outras cores
               Me embaraço
                                 De novo

                E SEMPRE!


CONTO UMA HISTÓRIA E RECONTO A MIM MESMA...

Havia uma menina. Um lindo vestido branco. Como uma noiva. Dia de primeira comunhão. A menina não se viu.

Viu as outras e sentiu inveja. Sempre havia um vestido mais bonito que o dela.

Caminhou para o sacrifício. Pecado contrito, uma ova.

Então, o que fez? Mastigou a hóstia e assim carregou a culpa.

Até hoje se despe – e cospe – para dentro.


....................................................................................................................................
Textos em desafio foram produzidos na Oficina de Escrita de História Fantásticas com Danielle Andarde (BA), no Projeto Entre Margens, SESC Petrolina, 5 a 9 de novembro de 2018.
(I) Proposta: Após uma “meditação” coletiva, em que a orientadora narrava uma história sugerindo uma aventura fantástica em várias fases (tipo Alice no país das maravilhas) para que cada um, de olhos fechados, se imaginasse em cada situação. Havia um momento da história, quase no final, em que alguém entregava um papel com uma palavra não dita. Depois, cada participante contou a sua história, o que sentiu e disse a palavra que recebera.  Catarse... A proposta da escrita era, depois desta experiência, com essa palavra, escrever um texto. Poderia estar explícita ou não.  Eu desenhei um olho, algumas linhas, usei algumas cores nas palavras. Não escrevi a palavra minha, queria apenas sugerir. Disseram que consegui.


domingo, 9 de setembro de 2018

A terceira margem do olhar


Este texto/análise de textos/fotos de Euvaldo Macêdo Filho está publicado no site (Univasf) . Um site para sempre... disponível em rede. 
https://euvaldomacedo.com/
Especificamente em 
https://euvaldomacedo.com/critics

Entretanto, fiquei a matutar no alcance dessa leitura, seguidores ou não e resolvi replicar aqui, neste blog instável, mas constante... Então, o feedback pode ser mais diretamente vivido/convivido. (✱)

 A TERCEIRA MARGEM DO OLHAR

O que se pretende?
Tomar da obra de Euvaldo Macêdo Filho, o moço juazeirense que viveu apenas 30 anos, de 1952 a 1982, e apresentá-la sob um viés mais analítico, mergulhando na admiração que ela sempre me causou. Um artista antenado com a modernidade e cioso de sua produção.
Nos limites deste pequeno ensaio, escolhi especificamente quatro textos, aqui tratados como imagens para reprodução. Mas textos, assim considerados, porque abertos a múltiplas leituras. Fragmentos de olhares, instantes e palavras na dinâmica e significação da parte para o todo e de sua expressividade dialógica.
Na escolha do que considerei apropriada, minha subjetividade – e a do artista em referência – evidencia também um tempo que se faz circular: fala do passado, que se torna presente até mesmo nos futuros acessos e compartilhamentos do acervo de Euvaldo, circulando em computadores e variadas mídias. Recortes de uma herança artística das margens sanfranciscanas, legitimadas pelo olhar acadêmico do agora, de um projeto que nos comove porque finalmente se faz realidade e salvaguarda um acervo único e fundamental.
Não é só registro, memória de uma época. São instantes, instantâneos, fulgurações em lampejos únicos. E isso faz a diferença, na arte e na consciência com que seu autor sempre respeitou seu trabalho.


Texto A:
O Texto A foi escrito por Euvaldo numa das páginas de um caderno de desenho, ali desenhado como notas e lembretes de e para seu fazer artístico. Brincando com as cores de canetas hidrográficas – e já constatamos seu olhar voltado para a visualidade intrínseca de suas produções –, Euvaldo confessa e afirma enfático seu maior interesse: a foto, produto da fotografia, mas vista como poesia.
 Poesia em seu sentido mais amplo, questões que se ampliam em nossa cultura e que não são fáceis de serem definidas. A possibilidade de significação gerada pela foto é que nos dirá de sua poeticidade. Muito além do aspecto primário, indicial, esteticamente nos transporta para o simbólico.
A foto, vinda de uma máquina típica de nossa modernidade pós-industrial, tem no manuseio do fotógrafo um olhar que se transfigura poeticamente. Um recorte da realidade eternizado no tempo do clique e da fotografia analógica, numa duração que envolve vários procedimentos até chegar à revelação. Revelação que desvela a luz do momento único, um tempo irreversível daquele instantâneo.


Texto B:
O Texto B, uma foto denominada Sobre as águas, me chama a atenção pelo enquadramento horizontal. Como as águas que correm sempre adiante, a criança buchuda brincando em sua boia/barco faz de seu banho o registro significativo do que era a infância nas margens de nosso rio São Francisco em décadas do outro século. Nua, sua imagem complementa o volume arredondado da própria boia, essa enorme câmara de ar; ela é o barco de si mesma, menino do rio, cujos braços agitados movimentam seu barco de brincadeira e espirram água sobre nós, sobre o fotógrafo talvez?
É nessa horizontalidade que vemos a sequência narrativa: a criança continua a brincar, navegando à frente. Poucas brincadeiras existem hoje com esta naturalidade da pobreza vivenciada nas margens do grande rio. Assim também a luz brilha na direção do menino e dá forma e movimento na água. O olhar do fotógrafo conseguiu no detalhe captar o instante poético da infância livre e prazerosa.


Texto C:
O Texto C, uma foto “No quadro”, enquadrada na vertical, traz o fotógrafo e nosso olhar receptor para dentro desta sala, onde a janela aberta se abre para múltiplos entendimentos. A ambiguidade se faz fisicamente. A cadeira está vazia e centralizada. As cortinas amarradas e suspensas descortinam o exterior. Ficamos ali um momento, em pé, como Euvaldo.
A dinâmica da paisagem, um subúrbio de tantas alegorias, perspectiva do que se constrói e se destrói, alarga-se na luz de outro quadro dentro do quadro. Uma geometria que vai dialogar também com os textos de seus poemas. O que realmente está em foco? O que vemos?
Vemos um transeunte, um senhor cujo chapéu esconde sua cabeça e que olha por onde pisa, mas não nos vê. Afinal, o que ele estará vendo? Continuará a caminhar e passará sem dúvidas para o lado direito da foto. Mais do que descritivo, o quadro se configura dinamicamente.  Quantos mais passarão por esta janela? Ou ela já se fechou no tempo simbólico da memória?
Monocromático será? Quanta luz e quantos tons de cinza se interpenetram e transmitem informações. Espaços que se abrem em diversos tons e enquadram o quadro... Terá o fotógrafo pensado em tudo isso no apertar rápido do clique, do momento? O registro ficou presente, a análise, as metáforas e alegorias ficam para depois. Decodificar é possibilitar também um encontro com o autor, daquilo que ele nos possibilitou interpretar e sentir.


Texto D:
Assim é a arte. E assim se faz no texto poético daquele que se afirma também um “poeta porr êta” no Texto D, de seu único livro de poemas: Cauim de Curare. Um poema imagético, em que as palavras são cortadas, ressignificadas. Significados que geram mais significados, identificáveis na visualidade concreta do poema.
É preciso pois ler/ver com atenção o poema para entender o sentido de um “poeta porr êta”, na piração dos anos sessenta, das aventuras do Tropicalismo e do Cinema Novo. Porreta, tão bacana na gíria baiana, em que o eu poético se coloca “zanz ando” em silêncio nas “madrunadas”. Um nada existencial que atormentou o poeta em seus mistérios. Um cauim de curare, desnudado como seu olhar de fotógrafo nesta geografia marginal onde se situou, amou e viveu intensamente.
Através destes textos, criamos uma consciência de linguagem que nos permite distinguir aquilo que é próprio do signo, de sua materialidade visível, para sua significação cultural como representação e símbolo de um trabalho artístico. Um investimento ideológico subjaz a esta compreensão. Daquele fotógrafo autodidata que pôde ver além de projeções meramente descritivas ou registros históricos para o significado humano de um tempo que se diluía na opressão cotidiana destas margens tão simbólicas e em rápida transformação econômica e social.
Euvaldo fotógrafo, Euvaldo poeta. Em 1985, eu já falava da imortalidade de Euvaldo em colunas assinadas, nesta unidade fundamental que se funde também na pessoa, no amigo. De nossa profunda saudade, dessa ausência cedo demais. Estendendo-se no respeito e admiração de sua amada companheira Odomaria. Como disse o poeta Drummond, não adianta adjetivar os mortos, nada os substitui. Para eles não existe mais língua portuguesa ou qualquer outra. Ausência de comunicação. Silêncio. Ou o sonho?

tudo começou quando? por acaso como pinta uma foto que a gente nem espera. o segundo. tudo. muito como eu sei que é tudo. tudo é mágico como viver é muito tudo. o olho e o relâmpago: clic. o bater das pálpebras, a batida do coração. olhar e ver são duas coisas muito diferentes. olhar até ver até crer. Fé. ou um lance de olho de lince.

fotografar: sensibilidade, bom gosto, etc. etc. fotografia: magia, ato de bruxo, bruxaria de amor. como vê a natureza o olho de Deus? fotolhar, fotografar, fotogravar, mostrar o.
a câmara – para mim – é um instrumento mágico onde gravo a fuga dos instantes no tempo. fotografia: o mágico encanto. não sei se era Claudel quem dizia que, se o mundo havia de ser salvo, seria pelos poetas. o grande defeito da fotografia é que ela foi inventada muito tarde. você não gostaria de ver a cara de Napoleão depois de Waterloo?

eu considero a imagem tão importante quanto a palavra. a fotografia como linguagem de expressão. Ela, a fotografia, será a forma de arte do futuro. meu olho é meu talento: vejo e clic.
as fotos perdidas quem sente?
era só isso.
tudo é invenção.
                               a terceira margem da alegria.
ainda sonho.


Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, 19 de abril de 2018

(✱) Este texto foi feito a pedido de Elson Ribeiro, professor de Artes Visuais da Universidade do Vale do São Francisco, Univasf, em Juazeiro, Bahia, e responsável pelo projeto do acervo.  Agradeço muito pela honra; confesso que fiquei sensibilizada não só por falar da obra de Euvaldo, mas também pela atenção neste pedido e confiança no meu trabalho. Esclareço também que não quis fazer um artigo dentro de moldes acadêmicos. Em sentido mais geral, me guiei por uma análise comparativa e semiótica na leitura de textos visuais e poéticos, justificados no início do texto. 

Por uma troca de livros e olhares, há poucos anos deste século, dedico este trabalho a minha amiga Sílvia Nonata.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Prainha longe de casa




Ron ron ronrrrr... ainda sinto esse ronronar quando Prainha se deitava comigo, todas as tardes, para minha soneca. E gostava de ficar no lado direito do ombro. Às vezes pesava sobre meu seio, eu o ajeitava e ele dormia bem relaxado. Mas acordava, um bom tempo depois, e me chamava para eu lhe dar comida ou água. Ultimamente, debilitado, ficava mais nos pés ou nas pernas, perto do meu joelho, também doente. Depois não conseguia nem mais subir na cama, ficava na porta do quarto, deitado, levantava-se, ia até o tapete do banheiro, ficava um pouco lá, voltava, inquieto. Mas quieto no seu ronronar. Tudo silencia.




Tenho fotos de Prainha, sempre lindo, posudo. Mas não tenho gravações de seu ronronar, de seus miados, quase sempre discretos. Mas, como chorava, um miado alto, quando eu saía a pé, batendo o portão. Muitas vezes eu voltava, o consolava e saía novamente com o coração apertado. Sempre que chegava, ao abrir o portão, ele estava ali, ao lado, entre as plantas do jardim, me esperando. Valdir disse, inclusive, que, quando ouvia o portão abrindo, se ele estivesse no nosso quarto ou no tapete do banheiro, saía desabalado para me encontrar. Dorminhoco, mas atento em seu sentido de 
gato...





Quando saíamos de carro, ele não chorava. Parecia aceitar, pois sempre o carro voltava. Talvez tivesse medo de que, ao bater o portão, eu o abandonasse. Vi esse seu desespero, no Rio de Janeiro, quando Juliana, minha filha, sua primeira dona, saía para trabalhar e ele ficava preso todo o dia num pequeno apartamento, observando as gaivotas do 10º andar, como se quisesse alcançá-las... Ainda bem que era inteligente para perceber o impossível. Ele, que não me abandonava nunca, sempre ao meu lado, em que cômodos estivesse... Dono dos móveis e dos interstícios, arranhava ou dormia... Preferências bem sabidas. Mas no jardim, no emaranhado das icsórias, encontrava seu lugar, talvez ali por ser fresquinho, um felino selvagem ainda, em lembranças de uma selva ancestral.


Caçou um tanto... Lagartixas principalmente, que abundam no muro, entre as pedras. Alguns passarinhos, mas não devorava, apenas matava quando conseguia dar o bote. E olhava muito para o papagaio aqui em casa, na gaiola. Humm... se pudesse... Fiquei “fula” com ele por duas vezes... quando matou um dos filhotes de passarinhos que se lançava para voar. Os pais do filhote ficaram enlouquecidos... queriam atacar o Prainha, como se isso fosse possível. Ele, como todo felino, brincou com sua presa, pois o passarinho havia caído no chão, mas o estrago estava feito. Tirei o filhote dele, pus na casinha, mas o bichinho não resistiu.  De outra feita, quando o vi pegar, no ar, um filhote de beija-flor, tão delicado. No início, quando veio do Rio de Janeiro para cá, quase um filhote também, levava “presentes” para Juliana. Só ouvia os gritos das surpresas, principalmente quando levou até uma barata...



Quando ela se mudou para os Estados Unidos, eu o adotei, completamente apaixonada pelo Prainha. E foram 15 anos cuidando dele, curtindo, amando suas idiossincrasias... como não? Personalidade, ele tinha. Aliás, não havia quem não gostasse dele. Mesmo arisco, às vezes se “amostrava”... principalmente para mostrar que ele era da casa, era o meu dono e não admitia intrusos neste envolvimento doméstico... Muito lindo, enorme, peludo, um SRD de muita classe. Certa vez, num documentário na TV, vi que ele era um “gato doméstico de pelo longo”. Sim, podia ser, mas entrelaçávamos nossos pelos e afagos. Não há mais gestos.




Se lamber, coçar, tudo eu acompanhava e até me divertia... que língua!!! E dormir “arreganhado”, que paraíso de entrega! Adorava comer as pétalas das rosas... típico não? Quando sentia cheiro de peixe ou sardinha na cozinha, o sono ia embora... Colocava bichinhos e bonecas perto dele... nem tchum, mas as fotos ficavam divertidas. Tomava sol todos os dias no banco do jardim, em sua homenagem. Estranhei quando comia grama ou folhas de capim santo... depois me explicaram o porquê.  O cotidiano era preenchido. Meu modelo favorito!



Seu nome causava estranheza... Prainha, por quê? Geralmente precisava explicar. Explico. Foi achado, filhote abandonado, no Rio de Janeiro, na Prainha, praia de surfistas. Juliana, minha filha, morava e trabalhava no rio e namorava um surfista... dá para entender, não é? Quando ela teve que ser operada da coluna, passou um bom tempo em Petrolina e o trouxe. Sair de um apartamento pequeno para uma casa com quintal e jardim, deve ter sido um alumbramento. No primeiro dia subiu no telhado! Mas não conseguia descer, ficou com medo... nunca mais tentou. Tentou o guarda-roupa do meu quarto, conseguiu, até hoje não entendo o alcance daquele pulo... Depois se aquietou para galhos mais baixos... Folgado, engordou bastante uma época, seus pêlos sedosos o transformaram, segundo uma amiga em "gato almofada"...



Foi um estágio. Quando Juli definitivamente foi para os Estados Unidos, a melhor decisão foi deixá-lo aqui. Além dos custos, achamos que ele não iria suportar a viagem, a quarentena. Em casa ele teve espaço, carinho e atenção.

De dois anos para cá, começou a declinar. Nunca havia ficado doente, somente o levava ao médico para vacinar. Mas os problemas foram aparecendo, infecções urinárias, falta de apetite, até o coração estava doente.  Emagreceu 50% do seu peso normal. Tentamos vários tratamentos; para tirar o sal das rações (aliás, já não queria mais rações secas, que fora seu alimento durante anos), tentei fazer papas de frango desfiado, com legumes... até comprei um mix. Mas, para desespero meu, ele vomitava tudo... Foi internado duas vezes... por causa do cone, voltava ainda mais debilitado, cabeça baixa, caindo de fraqueza. Então resolvemos não mais internar, o próprio veterinário disse que ele poderia morrer a qualquer hora. A vida seguia difícil, a morte o aguardava...

Juliana disse que ele foi morar num céu cheio de sardinhas... É, pode ser, uma consoladora alegoria para o que não tem retorno... 

Fiz reflexões, analogias com minha velhice, com o futuro inevitável... Sensibilizada, todos que conheceram o Prainha, têm me confortado. Achei isso uma amostra de humanidade, um degrau acima da indiferença, que os torna ainda mais meus amigos. Muito obrigada.

Elisabet Gonçalves Moreira

(Um poema que me consolou...)


Elegiazinha

Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
— se somem — é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

[i. m. nikita (gata da Inês)]

De: ASCHER, Nelson. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.




(Prainha 2003-2018)

                                                                                                     Petrolina, 14 de agosto de 2018.

domingo, 10 de junho de 2018

INVOCAÇÃO NA VOZ SERTANEJA

                                                                                          Elisabet Gonçalves Moreira

“Seu dotô, só me parece
que o sinhô não me conhece,
nunca sabe quem sou eu,
nunca viu minha paioça,
minha muié, minha roça,
e os fio que Deus me deu.

Se não sabe, escute agora,
Que eu vou contá minha história,
Tenha a bondade de uvi:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasil.”

Patativa do Assaré, Cante lá que eu canto cá (Petrópolis, Vozes, 1978, p. 114)

            Que voz é essa do poeta que tanto apela em seu cantar? Não é uma invocação às musas como na poesia clássica, mas a um “dotô” em outro polo da comunicação,  voz chamada às falas, generalizada em seu aspecto distintivo, como um sinhô, sem cara ou nome. Um sinhô que nunca soube atender esse apelo histórico num país de desigualdades e contrastes.
            Percebo que estes signos de apelo não são destinados tão somente à consciência de um receptor imaginário, mas à consciência do próprio autor, tradição e memória, enquanto eu coletivo. Embora voz nomeada em sua autoria, uma poética oral não mais anônima - Patativa do Assaré é Antônio Gonçalves da Silva - revela também uma forma de marcar presença no mundo e caracterizar esse mesmo mundo em que ele vive.
            E é este mundo em que ele vive, onde vive seu receptor imediato, o do momento da declamação do poema, de sua escuta. Paul Zumthor[1] me lembra sobre a performance da oralidade “O ouvinte espectador espera, exige que o que ele vê lhe ensine algo mais do que simplesmente o que ele vê, revele-lhe uma parte escondida desse homem, das palavras do mundo.”
            E é essa leitura de mundo que atende o assim chamado poeta popular.  Não é só a identificação de classe social, mas da enunciação emotiva e poética de um porta-voz dessa mesma classe. Haveria neste apelo, pela voz dos oprimidos, um equívoco da função poética no sentido de sua função social como dominante? Rosemberg Cariry responde: “Patativa do Assaré consegue, com arte e beleza, unir a denúncia social com o lirismo.[2] Os aplausos do seu público são merecedores dessa conjugação de funções e de sua dinâmica.
            Zita Alves, poeta de Petrolina, mas cearense de origem como Patativa, morando no distrito de Vermelhos, em Lagoa Grande, na fazenda Ouro Verde, distribuída para o MST, também apela para uma variedade de receptores, referências generalizadas, mesmo quando nomeadas. Alguns versos desta mulher sofrida e sensível valem ser lembrados. E, esperamos, ter sua obra divulgada e estudada, já que tem 10 livros inéditos, primorosamente datilografados por ela própria.

 “Apelo da Nordestina”, escrito em 1982, é exemplar neste tema.

“Seu governador do estado
A coisa aqui ta pior
Sempre tenho trabalhado
Pra vida ficar melhor
Eu pego a foice, e o machado
Vou bem cedo pra o roçado
Pra brocar a macambira
Trabalho sem resultado
Eu já não falo em calçado
E a roupa? Que virou tira?”

Aqui, uma seleção de fragmentos, nessa função apelativa.
                
                                                          “Deus do céu, olhe o Sertão.”

“Meus filhos escutem
Os meus bons conselhos”

                                                      “Dona Compesa eu te rogo
                                                        Que mande logo esta água
                                                        Para o desprezado bairro
                                                         Que não tem água encanada.
                                                                          ...
Dona Compesa repare
A nossa calamidade
Olhe que este bairro sofre
Sofre mesmo de verdade.”

                                                             “Boa noite, seu Vigário
                                                              Eu vim pra me confessar,
                                                              Mas não sei se é meus pecado
                                                              Que eu quero le contar,
                                                               Pode até ser o estado
                                                               Do mundo ser como está”

Olhe aqui, seu professor
Analise o meu caderno
Fiz o que o Sertão criou
Sobre o verão e o inverno
Só não descrevi as flor
Do nosso Sertão moderno.”

                                                                “Santo Antônio Pequenino
                                                                  Ou Santo Antônio Viajante
                                                                  Me dê um casamentinho
                                                                  Que já perdi a esperança
                                                                  Quero casá no domingo
                                                                  Ou quando chegar as festas
                                                                  Se eu me casá este ano
                                                                  Eu agradeço a sua oferta”

            Se apelar é “invocar proteção ou testemunho”, o homem ou a mulher do sertão, da periferia da cidade, espera das autoridades um olhar efetivo sobre suas dificuldades. Mesmo convivendo com elas, tem consciência das limitações de seu protagonismo. Na verdade, quer ser ouvido, ser social historicamente alijado, mas presente.
            Esta mediação entre o eu, poeta popular até o outro, generalizado em seu apelo, seja o doutor, a entidade pública, o vigário, o coroné, o Poder enfim, se dá através de vários índices. Assim, o apelo, função conativa da linguagem, na classificação linguística de Roman Jakobson, funciona como pretexto para a expressão do eu coletivo, diria mesmo épico em sua representação.
            Observem que o uso do vocativo é feito de uma maneira muito respeitosa, sem agressividade. O apelante, vamos chamá-lo dessa forma, não é nem o leitor/ouvinte explícito. É apenas uma referência, já que ele nunca estará presente. A função social da literatura e do poeta é evidente nestas intenções. Mas é assim que funciona no senso comum sua capacidade de expressão, seu mundo invisível, longe do poder constituído. E por ele esquecido...
            Algumas vezes em que tive ocasião de ouvir Patativa e outras “cantorias”, os poemas pessoais, intimistas, mais curtos inclusive, não são declamados em público. Poemas narrativos ou jocosos são sempre bem recebidos. J.Borges, por exemplo,  com a leitura de seus folhetos é sempre um sucesso.
            As reações do leitor ou do receptor são predeterminadas pelas estruturas de apelo. Elas precisam do receptor para adquirir sentido e significação. Não é mais só o artefato artístico isoladamente, mas sua condição de vivência como obra de arte.
Assim, se projeta o sentido ali depositado em palavras, vozes que ainda insistem em fazer poesia e dar testemunho. Ouvidos moucos são daqueles que percebem, mas fingem não perceber, a existência desse mundo escorraçado. Mas tudo tem seu tempo, a história dos oprimidos está em processo neste país e ainda há esperança.

“Quero um chefe brasileiro
Fiel, firme e justiceiro
Capaz de nos proteger,
Que do campo até a rua
O povo todo possua
O direito de viver.”

Patativa do Assaré, primeira estrofe do poema “Eu quero” em Cante lá que eu canto cá (Petrópolis, Vozes, 1978, p. 116)

https://www.youtube.com/watch?v=PLPp_tlWvUM 

                                                   
(Petrolina, março de 2015. Refeito em junho de 2018.)




[1] Paul Zumthor, A letra e a voz. SP: Cia das Letras, 1993,
[2] Rosemberg Cariry, cineasta, em sinopse sobre o documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia”. http://patativaofilme.blogspot.com/