Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Mulheres de Atenas, uma canção revisitada

Mulheres de Atenas de Chico Buarque e Augusto Boal, canção de 1976, é agora revisitada. Mais que um "exemplo" de análise, uma retomada de reflexões... o ontem, o hoje, neste 2016 (haverá tempo e espaço para a poesia?), que homens e mulheres somos nós neste momento de impasses e decisões?

(Faz toda a diferença você ouvir novamente a canção, no original)


MULHERES DE ATENAS

(Chico Buarque - Augusto Boal)                                                    

Da peça “Lisa, a mulher libertadora” de Augusto Boal

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram,
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas,
Cadenas

 Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar, violentos
Carícias plenas
Obscenas

 Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas

 Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas

 Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas  novenas,
Serenas

 Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.


MULHERES DE ATENAS
  Elisabet Gonçalves Moreira    
                   
“Por isso, as necessidades poéticas deste (público) são hoje preenchidas pelo conto curto, ou pela canção popular. Em outras palavras, a cota de poesia que o público precisa absorver vem mais através de Chico Buarque, Caetano Veloso e outros, do que pelos poetas propriamente ditos.”
               Antônio Cândido
 
   Mulheres de Atenas, de Chico Buarque e Augusto Boal, gravado em 1976, sempre me chamou a atenção. Letra e melodia em conjunção entrando na alma, questionando, nos maravilhando. Muito analisei este texto, mas o retomo como pretexto para uma análise literária, de algumas condições e caminhos da própria poesia hoje, além da problemática da situação feminina inferida por seu significado. No entanto, este trabalho é mais uma chamada de atenção para estes problemas do que propriamente um ensaio sobre os mesmos ou respostas definitivas. São problemas demasiadamente complexos para um trabalho bastante simples. Ademais, faz parte de minha formação considerar também que uma análise jamais esgota o verdadeiro texto artístico. E muito mais suas implicações.
   Também como introdução cabe ressalvar alguns aspectos, além de explicitar a maneira como vejo a abordagem literária de um texto. Há uma citação de Ezra Pound que faz parte deste critério: “O crítico que não tira suas próprias conclusões, a propósito das medições que ele mesmo fez, não é digno de confiança. Ele não é um medidor, mas um repetidor das conclusões de outros homens.”
   Portanto, assumir o papel de crítico é saber levar esses critérios a termo. É considerar sobretudo a “totalidade dinâmica do texto”, onde nada é gratuito, tudo tem sua função, valor e significado. Assim, todas as conclusões que a análise me levou, não vieram de uma tese preconcebida, de algo imposto de fora, mas da desmontagem  primeira do texto ou descodificação do mesmo.
   Outra característica assumida é a de tratar o texto literário como um meio da comunicação humana.  A obra literária tem revelada na linguagem artística sua função social, agindo como nexo mediador entre o emissor da mensagem codificada literariamente e o seu destinatário: público leitor ou... ouvinte.
   Portanto, na medida em que eu, leitor/crítico, ajo como o destinatário dessa mensagem artística codificada enquanto obra literária, texto, linguagem, passo a decodificá-la também nesse aspecto, inversamente.
    Também poderiam perguntar a priori: em que medida esta letra de uma canção popular pode ser considerada um texto artístico, literariamente falando? Coloca-se o problema em termos até simplistas: não apenas numa tradição de canções cujo valor artístico são indiscutíveis como Chão de Estrelas de Orestes Barbosa ou Felicidade de Vinícius de Moraes e tantas outras, mas de que, no contexto atual, o “consumo” de poesia propriamente dita se torna cada vez mais distante do leitor médio, do público enfim. Assim, a canção popular, retomando a afirmação do professor Antônio Cândido, em epígrafe, veio, de certa forma, suprir o longo distanciamento entre o público e a poesia contemporânea.
    Poder-se-ia  perguntar ainda: não é o caso de se considerar a canção popular como cultura de massa? Em geral, considera-se a cultura de massa como de má qualidade, agindo muito mais em função da quantidade e do seu rendimento fácil, impregnada de fórmulas feitas e chavões para consumo rápido.
   Como falar pois da canção popular sob outro viés? Claro que ela está incluída na comunicação divulgada pelos atuais meios de comunicação de massa e que alcançam o público. Em suma: faz parte de uma cultura que alcança as massas, sem ser massificadora. Cultural e artisticamente desempenha um papel que contrapõe manifestações similares.
    Como também realçou Antônio Cândido, a canção popular, constantemente reprimida pelas autoridades nos anos 60 e 70, insistindo em retratar com sinceridade o estado de coisas vigente, não há como dissociá-la da história e do momento político. Através da linguagem figurada e da exploração sistemática da ambiguidade, foi possível a alguns compositores-poetas dizerem muita coisa que encarnou o protesto e manifestou a crítica.
   Esses artistas representam um lado da criação literária em fase de transformação rápida, que podemos acompanhar. E de perceber a influência que exercem. A aliança entre a música e a palavra permite certa incorporação dos jogos de sonoridade e sentido das experiências de vanguarda e sua incorporação ao gosto popular. Chico Buarque, em suas primeiras canções, colocou-se mais numa posição um tanto lírica e sentimental, que lembra a de Vinícius de Moraes. Artista eclético, apresenta uma produção considerável, de elevado nível artístico, não há como negar.
   Quanto a Augusto Boal, co-autor de Mulheres de Atenas, objeto deste trabalho, é um dos nossos mais audaciosos diretores de teatro e dramaturgo. Após a década de 60, com as experiências do Teatro de Arena e do Teatro Oficina, ajudou de certa forma a “revolucionar” o teatro brasileiro com soluções arrojadas, montagens audaciosas e uma filosofia não menos livre e atual.
 
  
   Toda a letra é construída de maneira uniforme e coerente. Tanto do ponto de vista formal como do significado. São 5 estrofes de 9 versos cada que, embora heterométricos, têm o mesmo cuidadoso número de silabas poéticas em todas as estrofes, correspondendo-se igualmente.  Apresenta uma última estrofe de apenas dois versos que tem um sentido conclusivo.
   Cada estrofe dessas também pode ser dividida em três segmentos, a saber: os dois primeiros versos com 14 sílabas cada; os três versos seguintes de 8, 8 e 4 sílabas poéticas e os últimos quatro versos também com 8, 8, 4, finalizando com 2 sílabas poéticas. Este escandimento é bastante regular e seu efeito é obtido em consonância com a musicalidade do ritmo da própria canção. Repetitiva e monótona, parece realmente um canto de coro. Se se fizer a associação com a referência à Grécia antiga, ao teatro, está, de certa forma, justificada esta impressão musical.
   Observe-se na letra que o funcionamento das rimas não é menos regular: quase todas em parelhas, soantes, de total combinação sônica, além da predominância da rima a. O esquema está assim distribuído:
aa    bb  a   cc   aa
   Isto em todas as estrofes. A rima a é a mesma em todas elas, justamente a que predomina, com o final enas (Atenas, melenas, penas, cadenas, plenas etc.). Além do jogo de aliterações, pode-se observar que são todas rimas graves, paroxítonas e  “pobres”, isto é, segundo a tradicional classificação retórica das rimas, pertencem à mesma classe gramatical. Entretanto, por causa do efeito sonoro que causam, dão maior força ao ritmo e à melodia. Sendo um texto para ser cantado, quanto mais “melodioso” for, mais fácil será assimilado. Assim, sua função, nesse sentido, “enriquece” o conjunto do texto, numa interação de linguagens.
   Além disso, há que se considerar, no caso principalmente das rimas a, o efeito que produzem pela insistência e pela combinação de palavras de pouco uso. Este efeito é conseguido - e aqui chama realmente a atenção - pelo inusitado destas combinações. Há um toque de estranheza, talvez distanciamento, nestas rimas que demonstram também um cuidadoso e erudito processo de seleção das palavras.
   Tem-se um título: Mulheres de Atenas. E, imediatamente, numa primeira audição, perguntar-se: por que a mulher de Atenas? Sabemos como as mulheres gregas, impiedosamente tratadas pelas lendas e mitos, conotam a tragédia, a dor, o sofrimento. Elas aparecem quase sempre passivas, sujeitas ao destino, à fatalidade. E é essa passividade que vai ser cruelmente mostrada no texto de Chico Buarque e Augusto Boal, dentro do espírito da própria tragédia grega.
   O texto apresenta um dístico-chave e que, além de ter o maior número de sílabas (14), é repetido com apenas algumas variantes no início de todas as estrofes. Veja-se o primeiro verso deste dístico: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas.”
  

  A relação estreita com o título retoma agora o sentido do “exemplo” que essas mulheres oferecem, naturalmente dirigido para outras mulheres, nós, ouvintes. Exemplo que deve ser tomado no sentido de um espelho, conotado pelo “mirem-se”.
  A partícula se, impessoalizando o verbo, determina,  pelo tom autoritário do imperativo, que se dirige a todas as mulheres, mesmo àquelas que não mais estão em Atenas. E que exemplo é este, aconselhado a ser seguido? Sabe-se que num contexto moderno, a referência ao passado, ainda mais às origens de nossa civilização, ao “berço” da cultura ocidental, adquire também outros significados por essa perspectiva. Poderia tal exemplo ser transposto nos mesmos níveis? Em que medida esse exemplo deve ser seguido? São apenas algumas primeiras questões, que incluem uma referência às conquistas feministas e o esperado disso.
   Neste dístico inicial de todas as estrofes, o segundo verso tem uma sequência de verbos, com uma carga semântica bastante forte e uma gradação de intensidade também importante. São vivem/sofrem/despem-se/geram/temem/secam. Vivem: doação exclusiva e razão da existência; sofrem: a marca da tragédia; despem-se; a mulher em sua função sexual; geram: a função reprodutiva da mulher; temem: o medo da morte do companheiro em guerras infindáveis e, finalmente, secam: no sentido de mirrar, definhar, uma morte-consequência do sofrimento imposto em sua condição de vida.
   Também esse segundo verso esclarece quem são os “maridos” pelos quais elas tudo fazem, ou melhor, deles tudo aceitam. Pela sequência: orgulho e raça/poder e força/bravos guerreiros/novos filhos/heróis e amantes/orgulho e raça de Atenas.
   Aqui as mulheres não são nada. Tudo está em relação ao homem: são eles e não as mulheres que se constituem no “orgulho e raça de Atenas”, “poder e força” etc. Tem-se, portanto, uma oposição firmada e reiterada:
mulheres de Atenas x maridos de Atenas
   Mulheres, generalizando a própria condição feminina e maridos (não os homens), uma condição social, imposta pelos “laços” do matrimônio, por um determinismo social, patriarcal.
   Na primeira estrofe, tudo leva a crer que o exemplo a ser seguido parte de de quem as aconselha a tal, já que as mulheres “vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas” . Todas suas vidas devem girar em torno de “seus maridos”. Aquela primeira oposição não significa uma correspondente “oposição” das mulheres e, sim,  sua submissão.
   Nas duas partes seguintes em que se divide esta estrofe, temos, na primeira, duas “condições” e as ações que demandam essas condições: “quando amadas” e “quando fustigadas”.  É sintomático que os verbos estejam todos no presente do indicativo: uma ação que ocorre no momento. Isto quer dizer que aquele passado é presentificado, transposto para uma vivência real: como num palco assistimos estas ações agora. Que fazem estas mulheres? “Se perfumam/banham/arrumam”. São verbos que revelam os cuidados com o próprio corpo, para maior beleza, no “banho com leite”, nos cabelos e penteados através de “melenas”. A vaidade da mulher expressa não como algo próprio, mas em relação ao homem e a uma determinada condição temporal, pois, esses cuidados são “quando amadas”.
   E “quando fustigadas”, isto é, castigadas, maltratadas, com certo toque sado-masoquista que acompanha o texto e sua teatralidade, tem-se a sequência: “não choram/se ajoelham/pedem/imploram”. O choro, recurso tão “feminino” lhe é negado e a humilhação masoquista, porque passiva, estende-se num crescendum.  O que elas imploram? “Mais duras penas”
   O destino de sofrimento e a aceitação trágica da realidade se evidencia. Nada nesse texto vai levar a uma reviravolta das atitudes da mulher. As penas, os sofrimentos vão ser mostrados em todas as estrofes e a mulher submetendo-se a todos. A estrofe termina com a palavra “cadenas”. Aqui, pelo sentido do texto, significa, como no espanhol*, cadeias, correntes, grilhões. Uma submissão que já é escravidão.
 
Segunda estrofe:
   A chamada do primeiro verso se repete igual: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas”. Essa redundância tem também sua função, como se explicou: não só pelo ritmo, mas pela reiteração do significado, pois o importante é o “exemplo” que oferecem as mulheres de Atenas.
   Aqui elas sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas.” Fica-se sabendo que sofrimento é esse e porque os maridos representam “poder e força”. Tem-se também duas condições, pois a característica temporal do “quando” se restringe em relação ao significado do todo: “quando eles embarcam” - como soldados que o são - e “quando eles voltam sedentos”.
   Em relação ao primeiro conjunto aparece uma oposição “eles/elas”. Quando eles fazem alguma coisa, o que “elas”, em contrapartida, fazem. Nesse caso, “eles” representando sempre “o poder e força de Atenas” são soldados que partem em sua função pelo mar e na espera “elas tecem longos bordados”.
   Não deixa de ser uma referência ao mito de Penélope, modelo de fidelidade conjugal, e de seu interminável tapete, esperando a volta do marido.  Por isso, elas passam “mil quarentenas”, referindo-se ao espaço de tempo em que pessoas suspeitas de doenças contagiosas ficam isoladas. E que são mil numa clara alusão aos longos anos de abandono e de abstinência sexual.
   “E quando eles voltam sedentos”: esse e age em relação ao primeiro segmento: “quando eles embarcam” e agora “quando eles voltam”. Sedentos: aqui não só de vinhos, mas de sexo, é óbvio. E um sexo violento, imoral, pois “Querem arrancar, violentos/Carícias plenas/Obscenas”
   Há uma mudança de entonação nestes últimos versos que enfatizam a rima e seu significado. Este “obscenas” soa extremamente forte, isolado, quando há uma interrupção da voz e o som instrumental se eleva para depois iniciar nova estrofe.
   Evidencia-se  um poder masculino de dominação tanto como soldados - e não guerreiros - como sexual, numa linguagem dramática. É canção de uma peça teatral - nunca encenada, que se saiba - e o efeito faz parte do envolvimento encenação e plateia, como tudo leva a crer. Envolvimento que se dá também ouvindo a canção.
 
Terceira estrofe:
   Em decorrência das “carícias plenas” que os maridos querem “arrancar”, aparece, no segundo verso da estrofe, depois da chamada para o “exemplo”, o verbo despir. Elas “despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas”.  Nenhuma reação destas mulheres. Aqui tem-se a concordância com o sexo feito passivamente e a violência dessa atitude conotada pelos “bravos guerreiros”. Há algo de irônico nesta reiteração constante de tantas “qualidades” dos maridos. Pois suas qualidades viris deveriam estar também em função do que suas esposas - simplesmente  mulheres - poderiam esperar deles, já que essa violência não é só física, mas também as atinge moralmente na sequência dos versos.
   “Quando eles se entopem de vinho/Costumam buscar o carinho/De outras falenas”. Falenas é uma espécie de borboleta noturna. No caso, a alusão da imagem fica clara: seriam outros “casos”, a procura por prostitutas.   A alusão ao estado alcóolico dos homens é feita com certa ironia novamente: “se entopem de vinho”, pelo uso de entupir.   “Mas no fim da noite, aos pedaços”, a adversativa mas no início do verso mostra a consequência negativa das ações anteriores, quando estão “aos pedaços”. E “quase sempre voltam pros braços/De suas pequenas/Helenas”. Apesar do “quase”, conotando aí, na linha do “mas”, se não a decadência desses homens, uma prática corriqueira dessas bebedeiras, farras e amores bem machistas.
    O adjetivo pequenas parece funcionar em sentido mais carinhoso, da voz e do ponto de vista do narrador, quase apiedado por essas mulheres sofredoras. Outra leitura a ser feita é a referência à “pequenez” da situação da mulher, inferiorizada e humilhada. Também o substantivo helenas leva a extrapolar dois significados. Os gregos, também chamados de helênicos, da antiga Hélade, atual Grécia, daí o feminino e pluralizado helenas referindo-se às mulheres, em geral. Além disso é uma referência também a Helena de Tróia, cuja beleza a todos apaixonava e que tão trágicas consequências trouxe àquela cidade grega. Mas nesse caso são mesmo as mulheres comuns, até por que são as “pequenas Helenas”.
 
Quarta estrofe:
   Há um espaçamento musical maior entre essa estrofe e as demais. Acredito que o efeito não seja só pelo conjunto harmônico da melodia, mas porque, mostrada a situação dessas mulheres e percebido aquele efeito sutil e simpático às mulheres de Atenas em sua condição feminina, ultrajadas, esse espaçamento parece sugerir talvez uma mudança de atitude ou uma reflexão sobre tudo que se mostrou.
   A seqüência narrativa prossegue, sempre na terceira pessoa do discurso. Portanto, decorrente do sexo conotado nas estrofes anteriores, após o verso inicial da chamada para o “exemplo”, elas “geram pros seus maridos, os novos filhos de Atenas”.
   São mães, mas não para elas mesmas ou para os filhos, senão para os maridos, numa função meramente reprodutiva. Esta completa ausência de afirmação feminina é constatada óbvia e melancolicamente: “Elas não tem gosto ou vontade/Nem defeito nem qualidade”. Além da anulação (negativas não e nem) de si mesmas, observa-se a ausência de qualquer alternativa.  São apenas escravas, quietas, submissas.
      A dose continua: “Não tem sonhos, só tem presságios”. Decorrente de sua situação, elas não têm direito a nada, sequer a sonhar. O clima de tragédia persiste no ar, acompanhando o desenrolar do texto. Esses presságios são os pressentimentos, o agouro que sempre apareceu nas lendas gregas (oráculos, pitonisas, sonhos etc.) e que acompanham justamente “o seu homem”, a sua vida e suas aventuras. São os agouros de “mares, naufrágios” e ainda o amor de outras mulheres em terras alheias: “Lindas sirenas/Morenas”.
   Sirenas aqui significando as “sereias” que, como se sabe, tinham no canto (sirena) o poder de encantar os humanos e fazê-los atirarem-se às águas, enfeitiçados. Canto e mito se personificam em “morenas”. A alusão é também feita à lenda de Ulisses e ao episódio da Ilha de Circe, na Odisséia de Homero.

Quinta estrofe:
   O “exemplo” continua em relação aos “presságios” anteriores, pois elas, as mulheres de Atenas, “temem por seus maridos, heróis e amantes”. Tudo gira em torno deles, heróis  (os que executam as ações e os mitos) e amantes (os que amam, elas ou outras).
   O destino trágico dessas mulheres se evidencia ainda mais na conotação do temor da perda de seus homens: “As jovens viúvas marcadas/E as gestantes abandonadas”. Mulheres jovens sujeitas à própria sorte: viúvas marcadas porque já não são virgens. Umas e outras, no entanto, aceitando mais uma vez o destino que lhes é imposto, sem escolha, ainda: “Não fazem cenas”.
   Interessante que só aqui, nesta estrofe, na gravação original do autor, aparece o acompanhamento de um coro feminino. Sabe-se como o coro faz parte intrínseca do teatro grego. E aqui o coro acompanha o cantor somente em: “As jovens viúvas marcadas/E as gestantes abandonadas/Vestem-se de negro, se encolhem/Se conformam e se recolhem”. Esse  pequeno conjunto de  vozes femininas enfatiza a mensagem, a conformação à própria tragédia pessoal.
   O luto, a seqüência de verbos “se encolhem, se conformam e se recolhem” num crescendum de atitudes passivas, caracterizam uma involução do ser humano. Tanto que se recolhem “Às suas novenas/Serenas”. Só lhes resta orar, sem maiores mágoas, daí porque o serenas, já que nada realmente resta a fazer, pois nada há a ser feito.
   Observe-se que também as estrofes são em novenas, isto é de 9 versos, quase uma alegoria dessa situação perto do fim, desse ritmo de ladainha ou de carpideira.

Sexta e última estrofe:
   Dístico conclusivo, o “exemplo” das “mulheres de Atenas” só pode ser mesmo a morte sem alternativas, neste final narrativo. “Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas”. Secam: pior que a morte talvez, um definhamento inumano. E fazem tudo isso, até a própria morte “por seus maridos”, leitmotiv de suas vidas. Reitera-se em versão final o epíteto da primeira estrofe: “orgulho e raça de Atenas”. Completa-se portanto o ciclo: “”vivem” até “secam”.
   Em termos de ritmo sonoro, a canção termina sem maior grandiloquência, brevemente, um canto quase réquiem.
    Volta-se então à pergunta inicial. Nada se sabe da intenção do  autor, apenas o que o texto se nos apresenta. Por que, pois, o “exemplo” das “mulheres de Atenas”?  Por que essa volta a uma situação clássica, tipicamente grega?
   Essencial, parece, é o clima da tragédia implícito e colhido como tema e pretexto. A condição feminina, ultrajada e por isso mesmo trágica, sem solução, é mostrada em seus aspectos evolutivos, no ciclo de uma vida comum, sem a nobreza de grandes realizações, esta sim reservada aos homens, aos aventureiros e donos de seus destinos.
   Nada se sabe também do funcionamento desta canção dentro do contexto da peça, cujo nome “Lisa, a mulher libertadora” parece abordar a condição da mulher, não se sabe em que tempo ou espaço. Mas, no tempo e espaço de hoje, qual é a verdadeira situação da mulher? Não teriam também elas o mesmo destino trágico, de subserviência e passividade das “mulheres de Atenas”?  E essa condição não se torna atemporal e universal?
    A nosso ver, esse “exemplo” age pois como uma espécie de tomada de consciência às avessas, na reiteração da condição humilhante e oprimida da mulher comum, da mulher do povo. Mulheres de Atenas, gregas ou não, universalizadas nessa condição.
   Portanto, o “exemplo” das mulheres de Atenas não é um exemplo a ser seguido ou imitado, mas um exemplo que, mostrado em sua nudez cruel, quando o autor reduz praticamente a nada essa mulher, age ou pretende agir inversamente. Não é assim que age o reflexo do espelho, quando miramos nele?
   Além de uma estruturação altamente elaborada, como se pôde observar, nota-se seu funcionamento também enquanto texto artístico. A canção popular vista não apenas como cultura de massa, efêmera e sem maiores consequências, mas como arte que chega mais facilmente às massas. Ainda que seu público seja limitado pela estratificação social, refinamento cultural, poder aquisitivo e pelas condições do mercado distribuidor de discos, fitas e Cds, merchandising  e corrupção quase que generalizada nas emissoras e programas de rádio e TV.
   Não é assunto deste trabalho agora, mas lembrar apenas o complexo maior de algumas implicações para a canção popular chegar até ao público ouvinte, receptor ou interessado.
    Gostar ou não gostar é também fruto cultural de toda uma política e uma intenção. Portanto, até os preconceitos contra o gosto popular ou as preferências eruditas devem ser analisadas dentro de um contexto mais amplo.
   Finalizando, Mulheres de Atenas, de Chico Buarque e Augusto Boal, artistas múltiplos  e que têm uma carreira “engajada” na realidade nacional, mostraram, neste texto em particular, não só a abordagem de uma problemática atualizadíssima sobre a situação da mulher comum e suas consequentes reflexões sobre essa possibilidade de  conscientização, como de um texto artístico verdadeiro e criativamente construído, unindo palavra e música, num todo carregado de significação.            
 
BIBLIOGRAFIA:
 ·       BUARQUE, Chico e BOAL, Augusto. Mulheres de Atenas, in Meus Caros Amigos Chico Buarque, disco LP Philips 6349 189, Rio, 1976.
·       CÂNDIDO, Antônio. A crise de liberdade na Literatura Brasileira. Entrevista na revista Banas no. 1109, São Paulo, Ed. Banas, 1975, p. 42/45.

·       POUND, Ezra. ABC da Literatura.  S. Paulo, Cultrix, 1970.

·       VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos.  S. Paulo, DEL/USP, 1973.

 
·       Dicionário de Mitologia Greco-Romana. Abril Cultural, São Paulo, 1973.
·       Dicionário de Espanhol-Português. J. M. Almoyna., Porto Editora Ltda., Lisboa, 1974.

·       Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. Aurélio Buarque de Holanda. Rio, Civ. Brasileira, 1969, 11a. ed.




* A palavra “cadenas” existe em português com o sentido de  “modo de tirar, sem perigo, dos chifres do touro o laço que o prende; entrelaçamento dos pares na dança do fandango. (Do cast. cadena).” É interessante notar que      vários “espanholismos” no texto: mirem-se, cadenas, sirenas, falenas são todas palavras de uso idêntico também em espanhol.

 


sábado, 2 de abril de 2016

Depois destes dias tumultuados, em que a palavra "crise" se agudizou  e extrapolou fatos, ações e versões, finalmente consegui concluir este pequeno trabalho. (É certo que também andei bem ocupada com a tradução de uma tese e sua publicação, da qual falarei em outra postagem...)
Neste caso, exerço um pouco de minha atenção sobre o fazer poético, analisando alguns textos de poetas da região, depois de um evento para falar de poesia em seu dia, no SESC local.
Aguardo comentários... sei que a verdadeira poesia não se esgota em análises mas o rumo delas pode nos indicar subsídios interessantes. Obrigada.


O eu poético masculino e feminino: diferenças exemplares
Elisabet Gonçalves Moreira
Foi quase sem querer que, numa exposição sobre a poesia de Petrolina, pude observar reveladoras diferenças.  Claro que isso não é nenhuma nova descoberta, mas é interessante não só apontá-las nessas breves notas como levantar questionamentos e repensar até mesmo esta questão de gênero no gênero... poético.
Direto ao texto. É dele que emana outro viés da subjetividade da crítica, mas, de dentro para fora. Assim, IRENE LAGE DE BRITTO nos diz:
rompo o hímen da poesia
quando flagro palavras
em trânsito de estação
acordo arredias
amamento e,
incestuosamente,
nos despimos do cotidiano
brincando fantasias de estar
 
à revelia do milagre
a mão seduz o branco
ao desafiar seus limites de cor:
- branco, eu te quero verde!
sofro escorrego falsifico rimas
que desafiam a cor dos limites
masturbam o pensamento
e pecam poemas veniais
O que temos aí em termos de estrutura textual? Falando a professora de Teoria Literária, a função poética é dominante, mas a função emotiva, aquela que parte do eu, do emissor, está fortemente caracterizada. A subjetividade de um(uma) eu mulher se acentua nas imagens violentas de um estupro explícito para o fazer poético, neste amálgama com a metalinguística. O eu se integra a esse fazer, sensações e cores em fantasias, estranhezas no discurso e nas metáforas. Além do cotidiano, há também o desmascaramento da sexualidade feminina que ousa dizer, se masturbar e assumir o pecado.  E, assim, fazer poesia. Assumidamente poesia.
Dois textos de WESLEY HEIMARD, estudante de Direito, músico e poeta.
Quem tem 10 vacas quer ter mais 10
E fazer 20
A medida do ter nunca enche
Descansa assim quem nem vaca tem.
 
As aspas contém malícias
por isso aspas
nas minhas carícias.
O primeiro texto de Wesley  se apresenta na função referencial, com um ritmo que lembra os provérbios populares. Na leitura, em voz alta, há que se observar o uso de “Quem tem”, das nasalizações. A forma - e seu formato - se tornam pendulares, numa visualização que conota seu conteúdo, sua mensagem. Nestas referências, no uso do verbo ter – quem tem – quem não tem - o poeta mostra o ser engajado na crítica social, do capitalismo predador e desigual. Já que não existe medida para o ter...
No outro poema há uma ironia sutil, na ressignificação das aspas. Minimalista, quase um hai-kai, o eu não se revela diretamente em sua sensualidade (malícias), mas assume suas carícias pessoais. A repetição das palavras, as rimas em substantivos, reforçam o significado do que ficou subjacente, subentendido.
Na forma de quadras, WAGNER MIRANDA,  músico do grupo Matingueiros.
Quadras
Todo Lamento Profundo
Das angústias do universo
Talvez não caiba no mundo
Mas cabe dentro de um verso
 
Sigo meu rumo sozinho
Não tenho medo de nada
Com as pedras do meu caminho
Construo a minha morada
É muito fácil entender
Em sua cabeça isso ponha
O que faz um sonho morrer
É a inércia de quem sonha.
Wagner disse que fez estes versos aos 13 anos e nunca mais os esqueceu...  Quadras, como forma literária, estão nas raízes de nossa cultura. Redondilhas, rimas abab, quem esquece?
A função da poesia, o que queremos de nossa vida, são os motes destas quadras. Alarga-se a mensagem, amplia-se o eu poético, estamos todos na estrada, escolhendo caminhos e afirmando – ou não – nossos sonhos, nossas opções.
A musicalidade das quadras se afirma também neste viés da poesia, a poesia cantada, já que Wagner é um excelente compositor e arranjador.
JOÃO GILBERTO GUIMARÃES SOBRINHO em seu livro Quebranto – 2012:
Lição
Toda vida vivida em prol de outra
Soa como desperdício
Aos ouvidos de quem sofreu
A lástima
De ser metade quando poderia ser todo.
Há também nesta “lição” um propósito de vida. Proverbial, em terceira pessoa, o poema tem seu início com a palavra Toda – referindo-se a vida – para terminar com todo, referindo-se à metade do que não foi. Nos entremeios, o desperdício e a lástima por esta outra metade, o que poderia ter sido... a conjunção que não foi vivida ou uma vida alheia de si mesmo.
Um poeta jovem com uma lição de sabedoria. Não explicitamente no texto, o eu poético sabe que é impossível viver uma vida inteira. Isso me faz lembrar o poema “Passatempo” de Carlos Drummond de Andrade ao admitir que ao fazer ou não o verso “só encontra meia palavra”.
VIRGÍLIO SIQUEIRA
Um poeta destas bandas, da caatinga e das margens, o mais assumido que conheço, o que não se rende, que mostra
A fibra do que não se verga  
Depois de triturados
Meus pés virarão asas
E romperão, num galope alado...
Rumo aos horizontes
As pradarias do medo
(...)
Alazão afoito; afeito aos desafios
Atento, e contra desacatos
Avesso a desaforos
E à rendição
Se me podarem os braços
Brotarei em garras de impávidos tentáculos
Medusa de serpentes ígneas
Destemidas, quais membros que afagam
Defendem-se e atacam
Em lampejos de armas claras
(Porque só ao lume é grandiosa a busca)
Ainda que sufocada
Minha voz ressoará pelos ventos
(Afirmativa, decisiva e decidida)
(...)
E haverão de voar
Em sons que se alastrem
E em essências que se entreguem
À plenitude dos atos, aos quais se propõem
E que, por terem a fibra do que não se verga
Nunca se rendem; não se detêm, nem se decompõem
(In VAGA-LUMEAR - Página 321)
A voz do poeta deste lado de cá é firme, é forte, não tem medo, está na vibração, na essência do que foi dito. Como não ver nestes fragmentos do poema de Virgílio a voz masculina que pulsa nos versos que assume? Sim, é todo ele uma afirmação do poeta que se faz além das metáforas. A fibra vigorosa na plenitude do fazer poético, uma armadura para a eternidade.
Não é um contraponto aos poemas anteriores, é uma complementação. E complementa - ou finaliza - também a postura arrojada de Irene “à revelia do milagre”.
No final, fico assim, que diferenças haveria entre o eu poético feminino e o eu poético masculino? Se há posturas, há estilos, há gerações, há níveis diferentes no trato com a palavra e com a vida.
A voz feminina na poesia é de pouca monta. Mulher ainda fica nos arredores de um mundo essencialmente masculino, em seu poder de mando e de palavra. Mas, o mais importante, seja uma voz ou outra, é que seja poesia verdadeira. Essa inexplicável arte poética, essa linguagem de cujos significados e emoções refazemos nossas vidas, nossas esperanças, a canção que redime nossa frágil humanidade. Se não, que sentido teria fazer poesia?
 (Petrolina, 2/4/2016)