Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

domingo, 24 de novembro de 2019

Um saci no meu jardim



Não sei como ele foi parar lá...

Ele estava vivinho, pulando em sua perna cotó. Deve ter vindo das matas vizinhas como os anuns, pombinhas asa branca, passarinhos variados expulsos de suas árvores e espaços abertos. A vida nas cidades iluminadas também atrai os seres dos cafundós da memória.

Da janela da sala, quase meia-noite, depois de assistir a um filme na tv paga - filme que nem lembro qual foi - vi uma luz vermelha que acendia e apagava. Como baforada. Era baforada. Mas disso eu não esqueci.

Saci fumando cachimbo, baforadas de fumante inveterado, olhava no meio das moitas das sempre floridas e vermelhas icsórias, mexia no canteiro central, até pulou nos galhos mais baixos do meu pé de salgueiro chorão... Acho que estava com sede, como os passarinhos, borboletas e formigas que habitam meu jardim e lhe dão vida em movimento.

Pensei, vou falar com ele. Será que ele falaria comigo? Pensei de novo: vou dormir e ver se ele retorna amanhã. Mas vou deixar uma caneca de água em cima do banco. Se tiver sede, ele bebe.

E assim fiz... e ele bebeu, e veio mais vezes. Sem ter como comprar fumo de rolo, comprei um maço de cigarro comum. Deixei lá. Ele, sabidinho, rasgou o papel e colocou o fumo industrializado no cachimbo. Acho que gostou, pois foram várias vezes que lhe ofereci este presente, aguardando que ele se acostumasse com essa pessoa atrás da janela. Assim, fumei um cigarro que acendia um enviesado risco vermelho no reflexo do vidro.

O saci também estava curioso. Uma noite chegou mais perto do vidro da janela e nos encaramos. Eu o saudei abanando ligeiramente a mão. Ele deu um pulo para trás e se escondeu na moita de icsórias. Mas podia ver o cachimbo encandeando nas baforadas.

Ele estava morando lá, no meu jardim. Como ficava escondido durante o dia, eu não sei, mas vou contar depois, se me lembrar.

Virou um jogo de aproximação. Deixei um pirulito vermelho, de morango. Ele gostou pelo jeito. Porque depois deixei um pirulito verde, sabor menta. Ele odiou. Encontrei o doce jogado no chão, dia seguinte. Voltei para o sabor morango.

Após alguns dias, resolvi que era hora de conversar com ele.

Abri a porta com cuidado. A luz do poste vizinho iluminava algumas sombras. Pude vê-lo ligeiramente quando o cachimbo era aceso. E ele me viu também.

Eu lembrava do saci de Monteiro Lobato, das lendas que povoaram nossa imaginação infantil. Tão brasileirinho, esse moleque cor de carvão fez parte da história dos velhos e de tias contadoras de histórias que não tinham heróis americanos de desenhos animados nas tvs. Porque eles viam o saci e acompanhavam suas traquinagens.

Assim nos chegamos. Não precisamos de apresentações. Já nos conhecíamos. 

No banco do meu jardim podíamos conversar. Estávamos meio desconfiados nesse primeiro encontro. Falei do tempo, do calor, se estava gostando de morar no meu jardim, dos presentinhos que lhe dera. Ele mais ouvia que falava. Murmurava, como o vento nas folhagens.

Mas seus grandes olhos falaram mais. O garoto que havia neles me encantou. Esse encanto continuou por vários dias. Falava sobre tudo, meu confidente especial. De todo modo, eu sentia sono e me despedia sem muita demora.

Sabe, saci, minha mãe dizia que você aprontava dentro de casa, escondendo a tesourinha de unha, a agulha de costura, azedava o leite, todas essas coisas que dão errado e a gente fica com raiva.

Ele só fazia rir e... lá vai baforada.

Você ri, mas tenho certeza que hoje em dia esconde o celular das pessoas. Ou as chaves. É ou não é?

Nem sim nem não... baforada ao vento.

Então lhe pedi um favor. 

Proteja-me saci, proteja minha casa dos olhares invejosos, dessa gente que acha lindo meu jardim e, não demora muito, a planta, antes viçosa, começa a definhar. 

Ou do meu gato que ficou doente e não há meio de ficar bom de novo. 

Ou do retorno de meu marido que saiu de casa há três anos...

Aí ele me encarou apertando o cenho. Me assustei. Colocou seu dedo indicador em minha testa, me empurrando e me fazendo encará-lo. Então eu vi, pude ver. Nos seus olhos iluminados havia raiva, brabeza de saci sem mais nem pra quê...

Afinal, pude entender. Sem explicação, revi eu mesma perdida na vida, ainda que meus cabelos brancos mostrassem os anos por onde passara.

Saci, você pode me achar em mim mesma?

Ainda procuro a luz do seu cachimbo nas noites do meu jardim.