Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

domingo, 10 de junho de 2018

INVOCAÇÃO NA VOZ SERTANEJA

                                                                                          Elisabet Gonçalves Moreira

“Seu dotô, só me parece
que o sinhô não me conhece,
nunca sabe quem sou eu,
nunca viu minha paioça,
minha muié, minha roça,
e os fio que Deus me deu.

Se não sabe, escute agora,
Que eu vou contá minha história,
Tenha a bondade de uvi:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasil.”

Patativa do Assaré, Cante lá que eu canto cá (Petrópolis, Vozes, 1978, p. 114)

            Que voz é essa do poeta que tanto apela em seu cantar? Não é uma invocação às musas como na poesia clássica, mas a um “dotô” em outro polo da comunicação,  voz chamada às falas, generalizada em seu aspecto distintivo, como um sinhô, sem cara ou nome. Um sinhô que nunca soube atender esse apelo histórico num país de desigualdades e contrastes.
            Percebo que estes signos de apelo não são destinados tão somente à consciência de um receptor imaginário, mas à consciência do próprio autor, tradição e memória, enquanto eu coletivo. Embora voz nomeada em sua autoria, uma poética oral não mais anônima - Patativa do Assaré é Antônio Gonçalves da Silva - revela também uma forma de marcar presença no mundo e caracterizar esse mesmo mundo em que ele vive.
            E é este mundo em que ele vive, onde vive seu receptor imediato, o do momento da declamação do poema, de sua escuta. Paul Zumthor[1] me lembra sobre a performance da oralidade “O ouvinte espectador espera, exige que o que ele vê lhe ensine algo mais do que simplesmente o que ele vê, revele-lhe uma parte escondida desse homem, das palavras do mundo.”
            E é essa leitura de mundo que atende o assim chamado poeta popular.  Não é só a identificação de classe social, mas da enunciação emotiva e poética de um porta-voz dessa mesma classe. Haveria neste apelo, pela voz dos oprimidos, um equívoco da função poética no sentido de sua função social como dominante? Rosemberg Cariry responde: “Patativa do Assaré consegue, com arte e beleza, unir a denúncia social com o lirismo.[2] Os aplausos do seu público são merecedores dessa conjugação de funções e de sua dinâmica.
            Zita Alves, poeta de Petrolina, mas cearense de origem como Patativa, morando no distrito de Vermelhos, em Lagoa Grande, na fazenda Ouro Verde, distribuída para o MST, também apela para uma variedade de receptores, referências generalizadas, mesmo quando nomeadas. Alguns versos desta mulher sofrida e sensível valem ser lembrados. E, esperamos, ter sua obra divulgada e estudada, já que tem 10 livros inéditos, primorosamente datilografados por ela própria.

 “Apelo da Nordestina”, escrito em 1982, é exemplar neste tema.

“Seu governador do estado
A coisa aqui ta pior
Sempre tenho trabalhado
Pra vida ficar melhor
Eu pego a foice, e o machado
Vou bem cedo pra o roçado
Pra brocar a macambira
Trabalho sem resultado
Eu já não falo em calçado
E a roupa? Que virou tira?”

Aqui, uma seleção de fragmentos, nessa função apelativa.
                
                                                          “Deus do céu, olhe o Sertão.”

“Meus filhos escutem
Os meus bons conselhos”

                                                      “Dona Compesa eu te rogo
                                                        Que mande logo esta água
                                                        Para o desprezado bairro
                                                         Que não tem água encanada.
                                                                          ...
Dona Compesa repare
A nossa calamidade
Olhe que este bairro sofre
Sofre mesmo de verdade.”

                                                             “Boa noite, seu Vigário
                                                              Eu vim pra me confessar,
                                                              Mas não sei se é meus pecado
                                                              Que eu quero le contar,
                                                               Pode até ser o estado
                                                               Do mundo ser como está”

Olhe aqui, seu professor
Analise o meu caderno
Fiz o que o Sertão criou
Sobre o verão e o inverno
Só não descrevi as flor
Do nosso Sertão moderno.”

                                                                “Santo Antônio Pequenino
                                                                  Ou Santo Antônio Viajante
                                                                  Me dê um casamentinho
                                                                  Que já perdi a esperança
                                                                  Quero casá no domingo
                                                                  Ou quando chegar as festas
                                                                  Se eu me casá este ano
                                                                  Eu agradeço a sua oferta”

            Se apelar é “invocar proteção ou testemunho”, o homem ou a mulher do sertão, da periferia da cidade, espera das autoridades um olhar efetivo sobre suas dificuldades. Mesmo convivendo com elas, tem consciência das limitações de seu protagonismo. Na verdade, quer ser ouvido, ser social historicamente alijado, mas presente.
            Esta mediação entre o eu, poeta popular até o outro, generalizado em seu apelo, seja o doutor, a entidade pública, o vigário, o coroné, o Poder enfim, se dá através de vários índices. Assim, o apelo, função conativa da linguagem, na classificação linguística de Roman Jakobson, funciona como pretexto para a expressão do eu coletivo, diria mesmo épico em sua representação.
            Observem que o uso do vocativo é feito de uma maneira muito respeitosa, sem agressividade. O apelante, vamos chamá-lo dessa forma, não é nem o leitor/ouvinte explícito. É apenas uma referência, já que ele nunca estará presente. A função social da literatura e do poeta é evidente nestas intenções. Mas é assim que funciona no senso comum sua capacidade de expressão, seu mundo invisível, longe do poder constituído. E por ele esquecido...
            Algumas vezes em que tive ocasião de ouvir Patativa e outras “cantorias”, os poemas pessoais, intimistas, mais curtos inclusive, não são declamados em público. Poemas narrativos ou jocosos são sempre bem recebidos. J.Borges, por exemplo,  com a leitura de seus folhetos é sempre um sucesso.
            As reações do leitor ou do receptor são predeterminadas pelas estruturas de apelo. Elas precisam do receptor para adquirir sentido e significação. Não é mais só o artefato artístico isoladamente, mas sua condição de vivência como obra de arte.
Assim, se projeta o sentido ali depositado em palavras, vozes que ainda insistem em fazer poesia e dar testemunho. Ouvidos moucos são daqueles que percebem, mas fingem não perceber, a existência desse mundo escorraçado. Mas tudo tem seu tempo, a história dos oprimidos está em processo neste país e ainda há esperança.

“Quero um chefe brasileiro
Fiel, firme e justiceiro
Capaz de nos proteger,
Que do campo até a rua
O povo todo possua
O direito de viver.”

Patativa do Assaré, primeira estrofe do poema “Eu quero” em Cante lá que eu canto cá (Petrópolis, Vozes, 1978, p. 116)

https://www.youtube.com/watch?v=PLPp_tlWvUM 

                                                   
(Petrolina, março de 2015. Refeito em junho de 2018.)




[1] Paul Zumthor, A letra e a voz. SP: Cia das Letras, 1993,
[2] Rosemberg Cariry, cineasta, em sinopse sobre o documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia”. http://patativaofilme.blogspot.com/