Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

POR QUE LEMOS PAULO FREIRE?

 

Tendo rememorado momentos com Paulo Freire, volto a ter Paulo Freire em minhas reflexões. O centenário de seu nascimento ensejou homenagens e reconhecimento; no entanto essa pergunta leva diretamente ao questionamento do que nos compete como leitores e educadores. O que assumimos?

Parece que o nome de Paulo Freire adquiriu mais o estatuto de um significante, um referencial, uma forma de indicar uma experiência educativa do passado do que um nome evocativo de seu papel pedagógico, libertador e transformador. Retomar Paulo Freire é retomar a esperança de um futuro possível, de abraçar suas ideias dialogando com nosso mundo contemporâneo, outra ordem dos dias.

Um amigo me indicou a referência de um livro recém editado: Paulo Freire. La pedagogía rebelde de Gustavo Ruggiero (Ediciones UNGS. Colección Pensadores y pensadoras de América Latina. Los Polvorines, 2021). Talvez seja o caso de acessar diretamente a publicação, mas aqui fica o que se põe, se dispõe e se propõe.

Gustavo Ruggiero, soube, é especialista em filosofia da educação, professor na Universidade Nacional de General Sarmiento, na Argentina. Na leitura síntese em que se apresenta a obra (acesse o link *), reitera-se que o processo de alfabetização consiste, em última instância, "adquirir a linguagem para sustentar a luta política". Existe uma ligação inevitável entre ler o mundo, ler a palavra e lutar por um mundo melhor.

Ressaltou-se, no artigo, que o autor se questiona, destacando perguntas geradoras desse desafio: 

“Lemos Freire para entender nossas práticas ou o lemos para 'aplicá-lo'? Explicar Freire ou pensar com ele? "

Responderia afirmativamente a esta sequência. Sim, entendo os caminhos da minha prática como educadora e cidadã neste mundo a par do que ele me incentivou e me fez compreender. Sim, posso explicar Paulo Freire em sua essência. Sim, admito que penso como ele, construindo pontes e diálogos. Como esse aqui, nos limites desse texto, evocando um exemplo pessoal de uma tentativa direta de alfabetização. Por que narrar isso? Talvez possa ser útil, um testemunho nos descaminhos da memória e uma reflexão sobre teoria e prática, agora aos 75 anos, neste pandêmico ano de 2021.

Havia uma valeta no meio do caminho...

Após uma semana com Paulo Freire, na Diocese de Juazeiro, em 1986, discutindo educação popular, pauta de uma Igreja progressista, me dispus a aplicar o que estava bem fresco em minha mente. Em um lance ousado de minha parte, me ofereci para alfabetizar voluntária e independentemente um grupo de mulheres lavadeiras na periferia de Petrolina. De todo modo, já vinha construindo uma história no movimento de mulheres da cidade, trabalhando com sua consciência política, além dos problemas de gênero.

No galpão comunitário onde estávamos reunidas, no bairro Pedro Raimundo, em Petrolina, Pernambuco, final dos anos 80, eu e mulheres trabalhadoras como lavadeiras, com alguns de seus irrequietos meninos, aguardávamos irmã Virgínia, freira indiana, que iria me apresentar para o grupo.

Miúda e com um hábito curto, simples e claro, sua presença impunha certa ordem no alvoroço. Era final de tarde, começo da noite, único horário em que essas mulheres poderiam se reunir, depois de um dia de trabalho doméstico ou lavando roupa para fora.

Fui apresentada rapidamente. Todas eram leitoras do mundo onde habitavam sim, e isso ficou claro em nosso interagir, mas ainda não alfabetizadas na leitura dos códigos linguísticos que ditam regras e saberes de um mundo onde o desequilíbrio e a injustiça social se replicam cotidianamente.

Consciente disso, fui inserida num diálogo essencialmente pedagógico. Para mim, isto era um desafio em minha vida de professora e de militante no movimento de mulheres. Se havia algum resquício de idealismo, a realidade mostrou logo o que eu haveria de aprender e talvez ensinar nessa troca básica entre mim e o outro. Nos diálogos iniciais, eis que surge a palavra VALETA, signo linguístico interligando apresentações e histórias de vida.

Nem eu mesma sabia direito o significado de valeta, mas, nesse significante vocábulo - aqui pronunciado com um é ligeiramente aberto – confluía a historicidade da situação destas mulheres, de seu trabalho, de sua vida periférica.

Basicamente a valeta é uma vala ou buraco pequeno às margens das ruas e estradas, para facilitar o escoamento das águas. Certo, mas aqui esse significado se expandia. Ficou claro que valeta seria a palavra geradora na proposta de alfabetização.

Água, vida, sim, sabemos, mas também trabalho. Mulheres lavadeiras, por quê? Naqueles idos era a ocupação que lhes dava uma renda possível, trabalhando em casa ou na casa das patroas, outras mulheres em situações menos adversas. Uma realidade tradicional na cidade, desde as lavadeiras que iam lavar as roupas nas águas do rio São Francisco há muitas décadas, agora, nas periferias de uma cidade que atraía migrantes, desde a construção da represa de Sobradinho e muitos empreendimentos, sobretudo para áreas irrigáveis, “explodindo” também o crescimento urbano.

Tanto me lembro, como mulher de classe média, que a vinda das máquinas de lavar roupa seria causar o desaparecimento das lavadeiras e da possibilidade de um pequeno rendimento. O bairro Pedro Raimundo era recente, com problemas de infraestrutura e muita pobreza. A Igreja Católica teve uma atuação importante, daí a presença de Irmã Virgínia e outras freiras, em seu apostolado, procurando organizar atividades e dar assistência além da religiosa.

Voltemos à valeta. Digo, aos encontros nas rodas de conversa no galpão comunitário.

A população do bairro se organizava para pedir água para o bairro, sua maior necessidade, com a Compesa, companhia estadual responsável por esse serviço público, com os políticos, com a prefeitura. Como sempre havia aquele “jogo de empurra” de um órgão para o outro. Ou alegações várias, por exemplo, que não havia encanamentos; mesmo se houvesse, não havia... valetas.

Então, a população cavou valetas.

Na continuidade dos encontros, desmontou-se a palavra valeta, va – le – ta, silabação básica. Tem alfabetizadores que desejam uma receita de metodologia, uma cartilha pronta... não é assim que funciona, pude compreender e interagir no processo.

Para que ser alfabetizado então? No plano coletivo e individual, o desejo ficou expresso. Para ser respeitado, desde fazer denúncias, solicitar melhorias para o bairro, abaixo-assinados, fazer cartazes ou escrever cartas, ler bulas de remédios... Sem humilhações com medo de políticos e doutores. Ser sujeito da história e não coadjuvante no exercício cotidiano do viver.

A conscientização era possível, na compreensão crítica da realidade e de si mesmos. Sujeitos da ação, é como o alfabetizar se torna um ato político concreto. A palavra é a mediação entre sujeitos, entre mundos e necessidades humanas e sociais. Isso é educação, em seu sentido mais amplo. Não há neutralidade possível.

Perdi minhas anotações destes primeiros encontros, mas me lembro de algumas palavras que puderam ser derivadas, principalmente nos nomes próprios e nas primeiras frases. Valdelice, Valentina, valente, leva, lava... Lavo roupa sou lavadeira. A valeta é vala. A valeta é nossa.

Sim, a valeta era da comunidade, do comum, de uma injustiça a ser urgentemente reparada. E que escoava, ecoava pelas valas da desigualdade...

Mas, outra história se avizinhava... talvez não seja prudente eu falar disso, já que é meu ponto de vista, mas fui percebendo muitas dificuldades para continuar o trabalho. Não só com as mulheres que faltavam muito, o que era bem compreensível na dureza de suas vidas, com as crianças perturbando, com a falta de materiais como lápis e cadernos e, às vezes, realmente, eu ficava meio atrapalhada.  Também me desafiavam problemas pessoais, dificuldades de locomoção, tinha filhas pequenas e era professora na rede de ensino oficial, com muito trabalho.

Começou com dificuldades para marcar as reuniões no galpão. Tal dia não seria possível pois tinha outra reunião, uma desculpa ou outra; sobretudo havia interferência nas minhas falas com as mulheres, como se desconfiassem de meu discurso, o que muito me perturbou. Afinal era uma voluntária, independente.

E assim fui me afastando... A água chegou ao bairro, mas tropecei nas valetas da desinformação.

Entretanto, o que aprendi nesta experiência levei vida afora, adiante, diante do que se me depara. Mesmo em outros níveis de aprendizagem (escolas e universidades) sempre dialoguei e ouvi, atenta aos meus limites, mas sem medo dos desafios. Internalizei as lições básicas de Paulo Freire, de diálogos marcantes, de coragem e constância no aprendizado.

Nesse sentido, ainda me comovem os versos que Zita Alves da Silva fez e a mim dedicou.

“À amiga Elisabet Gonçalves Moreira pela sua perseverança de dialogar com as pessoas.”


                       O MEU JEITO E O TEU JEITO

                                                              Zita Alves da Silva

 

Eu admiro o teu jeito                              Mesmo sem jeito, do jeito

esse teu jeito popular,                             de você dialogar,

teu jeito tem um defeito                          acabo encontrando jeito

que se chama bem está.                         p´ra o teu jeito acostumar.

 

Com o jeito, desse teu jeito;                  Do jeito, que é o meu jeito

bem de jeito vou ficar,                           do teu jeito vou ficar

e o defeito, do meu jeito;                       sem ter jeito, com teu jeito

com o tempo vai se acabar.                   mas, meu jeito vai mudar.

 .



(Foto de Euvaldo Macêdo Filho)