Bet com t mudo

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BET COM T MUDO... Quem me conhece, reconhece? Já me imagino receptora deste blog. Quem é esta mulher? Quem é esta Eli, Elisa, Betina, Betuska, Betî, resumida numa Bet com t mudo? Esta afirmação diminuta diz (ou desdiz?) uma identidade... Assim, quem sou eu? Sou (sim) uma idealizadora das pessoas, das relações, das amizades, das produções minhas e dos outros. Consequência: um sofrimento que perdura... na mulher crítica que procura saber e tomar consciência finalmente de quem é e do que ainda pode fazer (renascer?!) nesta fase da vida, um envelhecimento em caráter de antecipação do inevitável. Daí a justificativa do blog. Percorrer olhares, visualizar controvérsias, pôr e contrapor, depositar num receptor imaginário (despojá-lo do ideal, já que eu o sou!) uma escrita em que o discurso poderá trazer uma Bet com t falante... LEITURAS, ESCRITAS, SIGNATURAS...

domingo, 22 de outubro de 2023

SIGNOS EM TRANSIÇÃO

Conquanto não seja tarefa das mais simples, a "leitura" das relações intersígnicas dos ferros de marcar o gado levou-me a um dos possíveis sentidos do processo aí utilizado.

No decorrer desse trabalho, apresentado aos poucos nesse blog, vimos observando um processo dinâmico e geracional na leitura dos ferros de marcar/marcas de ferrar, signos em transição. Tomando como base uma das definições de Charles Sanders Peirce:

 

"Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo."  (PEIRCE, 1977)

 

A semiose se dá numa relação triádica, indo além das "duas faces de uma folha de papel" na proposição semiológica de forma e conteúdo de Saussure. Segundo Peirce, a natureza do interpretante depende do modo de representação do objeto no signo. Assim, o signo vai concentrar dimensões de um mesmo objeto e desenvolver seus interpretantes que são por ele determinados e, ao mesmo tempo, autodeterminantes por serem, igualmente, signos.

Desse modo, o objeto imediato está contido no próprio modo de sua apresentação no signo, e entra em correlação dinâmica para agir como força propulsora na mente que interpreta e gera os três tipos de interpretantes do signo:

1 - Interpretante em nível de primeiridade (interpretante imediato): provoca na mente interpretadora apenas a captação sensível de sua qualidade, que é um signo;

2 - Interpretante em nível de secundidade (interpretante dinâmico): provoca uma reação ativa da mente interpretadora;

3 - Interpretante em nível de terceiridade (interpretante final): provoca na mente interpretadora o reconhecimento das normas estabelecidas pelo uso comum e desenvolvidas sob a forma de leis que caracterizam convenções e hábitos.

Portanto, a descrição dos sistemas sígnicos, se dá, em síntese, também de acordo com três pontos de vista:

"(a) do ponto de vista das relações intersígnicas,ou seja, do ponto de vista das relações que um signo qualquer mantém para com os demais signos pertencentes ao mesmo enunciado. Seria o estudo da função sintática.

(b) do ponto de vista das relações de um signo para com o seu objeto, ou melhor, relação do signo enquanto veículo de informação para com o seu denotatum. Seria o estudo da função semântica;

(c) do ponto de vista das relacões do signo para com os seus usuários, quer dizer, relação do signo com o remetente e o destinatário. Seria o estudo da função pragmática." (Lopes, 1976)

Embora controvertida, até mesmo nos adeptos das teorias de Peirce e Morris, essa tripartição é que tem orientado, de modo geral, os estudos nesse campo. Evidentemente que estudos mais atualizados complementam o que aqui se coloca como ponto de partida. Não é intenção, nem poderia, esgotar assunto tão complexo.

Parece-me que autores interpretadores dessa teoria se esquecem, muitas vezes, da dinâmica desse processo e das relações entre esses pontos de vista. Num triângulo, afinal, temos também uma linha em geração contínua a partir de determinado ponto, no caso o próprio signo. Daí o perigo da estratificação ou hierarquização desses mesmos ângulos. Procedimentos mentais também dificilmente se esquematizam com rigidez.

Peirce e Morris deixaram uma classificação dos signos que nos ajuda a entender a complexidade da representação sígnica. Índices ou sinais não convencionais são chamados signos naturais porque o relacionamento no processo de comunicação não se dá entre pessoas, mas entre um índice da Natureza e o receptor-interpretador desse sinal. Um exemplo corriqueiro é dado quando o céu fica carregado de nuvens escuras e interpretamos como chuva iminente.

Entre os signos culturais ou artificiais, temos o símbolo, parcialmente motivado, como é o caso da cruz, símbolo do Cristianismo porque está associado ao martírio de Cristo numa cruz. Outros signos artificiais são as tabuletas, apitos, fórmulas e, é claro, os signos linguísticos ou verbais, cuja arbitrariedade é talvez o fator que melhor os caracteriza. A palavra cão (canis, cane, chien, dog...) não é o cão, mas é o nome comum dado ao animal, ou seja, o signo linguístico.

Finalmente o ícone ou imagem, tido como um sinal não-sígnico por incluir uma relação necessária entre a parte que expressa formalmente o conteúdo, o significante, e o conteúdo expressado ou significado. Uma fotografia é um ícone. No sistema da língua as onomatopeias são consideradas elementos icônicos.

É verdade que isso demanda muito mais abrangência e particularização, porém a intenção desse trabalho é outra.

Voltemos, portanto, a nosso ferro de marcar boi, animal e gente. Em fevereiro desse ano, como o título "Marcas de Ferrar (Parte I)" iniciei a publicação dessa pesquisa, nesse blog, ilustrando-a com esse ferro de marcar da primeira metade do século passado, índice motivador desse estudo. Um estudo que, esclareça-se mais uma vez, foi iniciado ainda na década de 80.

                                                                                     (Foto de Sílvia Nonata)

                                                                                         https://betcomtmudo.blogspot.com/2023/02/

Mesmo com base numa tradição secular, o ferro de marcar não deixa de ser um signo utilitário. Utiliza um material que, embora num sistema de produção artesanal, requer seu operário: ferro e ferreiro, mas com uma ética especial, de valores e normas que não se enquadram no mero consumismo de nossos dias. E uma complexidade não menos fascinante.

Sem classificar ainda nosso signo, vejamos o funcionamento do processo, segundo a teoria vista:

·         Signo: o visual, o desenho, a forma "ferrada" no animal;

·        Objeto: a fazenda ou a propriedade a que pertence o ferro, iniciais do dono, marca do dono;

·      Interpretante: efeito que gera o significado do objeto, mais reações a esse processo.

Em nível de primeiridade, o receptor configura as formas desse signo: letras em simetria ou um desenho especialmente criado. 

Em nível de secundidade, a relação semântica, "símbolo" da posse: identifico o dono do animal marcado com esse ferro.

Em nível de terceiridade: segundo minha cultura e interesses, posso ver apenas iniciais, um desenho rústico ou um belo exemplo de artesanato ou a marca simbólica da violência, da posse num sistema de posses, misto de misticismo, superstição, respeito.

Evidentemente que, em nível de primeiridade, da comparação de formas, do pensamento analógico, icônico por similaridade, temos sincronia e, em nível de terceiridade, de pensamento relacional, simbólico, temos diacronia. Embora sejam conceitos distintos, sincronia tem o objetivo, na linguística, de estudar a língua num momento específico e a diacronia o estudo da língua através do tempo. Ambas em inter-relação na dinâmica mesmo da cultura, pois se conjugam intimamente. 

Utilizando as palavras de Décio Pignatari, posso concluir:

 

"É por esta razão que um ícone, repetido e organizado, se transforma em signagem, em sistema de signos; é por esta razão que uma signagem ou um elemento dela, isolada do sistema, reverte ao ícone, a uma possibilidade."  (PIGNATARI, 1981)

 

0 ferro de marcar, que normalmente teria como função apenas identificar a rês ou animal de patrão em outrora campos abertos, não cercados, cerca-se, no entanto, de uma rede de interpretações sígnicas, muito maior que sua intenção primitiva.


Lembrando da canção Disparada, de Geraldo Vandré, de 1966, no auge dos protestos políticos contra a violência da ditadura militar no refrão:

“Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente”

Na dinâmica da língua encontramos a expressão “Tá ferrado”, isto é, marcado, frito, fudido, lascado, expressão da gíria que remete subliminarmente a essa prática, principalmente quando aplicada ao ser humano. Inclusive, temos exemplos nos BO policiais de extrema violência, quando maridos ou companheiros “ferram” mulheres como “castigo” por suposta desobediência, deixando sua marca pessoal para sempre, de macho dominante.


Metalinguagem, o interpretante continua gerando significações. Afinal, a própria significação tem como recurso a língua natural que lhe serve de fundo. 0 ferreiro, executor e muitas vezes artista-criador, interage com o dono do ferro, criador usuário. 0 receptor, o vaqueiro, o ladrão de gado, os vizinhos, ou o pesquisador, ou você, recebemos dessa marca agora invertida mais que uma leitura metonímica: uma rede de inter-relações e de expectativas.

Na memória coletiva e cultural temos um sistema de signos que modeliza o mundo sertanejo sob a perspectiva de sua dinâmica social e fundiária: um sistema, sobretudo, de posse e de não posse. Um símbolo de Poder, “a ferro e fogo” como se enfatizou, mas que se desdobra em outras possibilidades e linguagens.


Pierre Bourdieu, na seção “As produções simbólicas como instrumentos de dominação” em seu livro O Poder Simbólico, sintetiza:

 

“A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções.”[1]

 

Os símbolos são parte desse modo de representação da realidade e, consequentemente, do mundo de que faz parte, pelo qual a cultura e seus valores se expressam e se reafirmam através dos sistemas simbólicos.


Com certa surpresa, pude constatar que a prática da ferra persiste, inclusive nas imediações da represa de Sobradinho, entre Bahia e Pernambuco. Na segunda década do século XXI, um vaqueiro ainda pode ser contratado para achar o boi que vaga solto nas roças de sequeiro, gente de pouco criatório ou sem uma roça própria, de um extrato social diferente dos grandes proprietários.

O próprio gado, quando criado solto, revela seu estado animal, em que os bichos certamente se reconhecem em cruzamentos livres. Aliás, há uma referência preconceituosa a esse gado chamado de “pé duro”, sem raça definida. Um “pé duro”, isto é, de cascos fortes, resistente ao maltrato do meio ambiente na caatinga, das secas periódicas, no chamado regime de fundo de pasto pelos sertanejos, mas ainda com valor no mercado periférico, doméstico, e dos que pouco têm ou podem adquirir.[2]


Na verdade, milhares de povos adotaram as orientações e mentalidade do poder romano espalhado pelo Ocidente e, sobretudo das tradições ibéricas, durante o período colonial após a tomada das Américas. Não há como conter a história de uma violenta conquista construída e validada socialmente por suas instituições. A marca do proprietário sempre simbolizou a insígnia do poder, da propriedade privada, do respeito exigido e esperado, do sucesso pessoal e, adrede, suas benesses sociais e políticas.

 

 

 

          Petrolina, 2023 (refeito a partir do original de 1982)

Elisabet Gonçalves Moreira



Observação: Para finalizar esse estudo, vou publicar a Bibliografia utilizada, assim como as referências. Agradeço observações e comentários.



[1] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 10.