Minha casa é
inundada de pequenos objetos, lembranças, curiosidades... todos com uma
história de apego e conhecimento e não mera decoração. Tudo eu vou atrás, quero
saber... já me disseram que tenho espírito de pesquisadora. Gostei disso, pois
entre tantas observações que fazem sobre nossa pessoa (quanta aparência e
sentidos temos?) está o valor que dou à curiosidade, às leituras mais profundas
do que nos rodeia.
Talvez por
isso também tenha me identificado com a Semiótica, essa leitura dos signos onde
tudo é passível de leitura: “textos” em diferentes níveis de análise,
encadeamento gerativo de ideias e significações.
Nestes dias
de reclusão (por conta de uma convalescença) meus olhos se voltam para
detalhes. Desenhando, procurando ver também nos ângulos, na luz e sombra de uma
tendência “hiper-realista”, escolhi um pequeno anjo de liga metálica que
fotografei, imprimi, copiei, pintei. Este anjo tem apenas 9,5 cm e uma
referência “Faithfull Angels” by Ganz. Anjo dos milagres, escrito na tag. E com
um pequeno texto, uma oração eu diria, que traduzi do inglês: “A fé vê o
invisível, acredita no incredível, e recebe o impossível.”
Mas, nesta
direção, um pequeno demônio se inseriu. Uma gárgula pensativa, cópia em resina (com
um ímã nas costas) de uma gárgula da igreja Sacré Coeur de Paris. Irônica, parece perguntar: E
eu? Não faço parte de sua “instalação” doméstica?
Faz sim... quase
sem perceber, também executei o mesmo procedimento. Os desenhos feitos ainda
carecem de reparos. Apenas exercícios para percepção de luz e sombra, volume, e
uso de diferentes materiais.
Mas a comparação
do significado, deste contraste entre um anjo idealizado na figura feminina e
um mítico monstrengo, fica inserida subliminar, a partir da própria escolha,
consciente ou não. E na ousadia de fazer um texto sobre isto e uma pequena
reflexão sobre a natureza humana.
Primeiramente
uma referência sobre as gárgulas... Quem assistiu à animação da Disney “O
corcunda de Notre Dame” viu como essa figura é usada. Quasímodo, o personagem
criado por Victor Hugo, é similar a uma gárgula. E há várias adaptações
cinematográficas, algumas antológicas.
Uma amiguinha
de 8 anos me disse que viu a gárgula numa animação do Scooby Doo. Há jogos que também usam
a personagem, geralmente do mal, personificado pelo seu aspecto demoníaco. Em
francês, a palavra é "gargoille", originalmente conhecida como
"garganta". Daí “cuspirem” a água das chuvas, que escoa pelos
telhados, fazendo parte da arquitetura gótica, nas catedrais medievais.
Existem
diversos modelos de gárgulas, do grotesco ao satírico, mas é pela sua força
simbólica que resistem e impregnam o imaginário ainda nos dias de hoje. Podem
dar um aviso: atenção, o demônio está
sempre de olho. Ou, contemporizando, as gárgulas, lá do alto, servem para
afastarem o mal, agindo como guardiãs da igreja.
Já os anjos,
em toda sua inesgotável plêiade iconográfica, remetem a mais questionamentos do
que as gárgulas. As representações destes seres do bem são sempre idealizadas.
Tidos como seres perfeitos, carregam o conceito de beleza de nossa cultura
através dos tempos. Beleza física e espiritual. Também os anjos são guardiões
dos fiéis, protegendo-os do mal.
Existe uma
hierarquia de anjos, categorias e funções bem definidas que o esoterismo e
algumas correntes religiosas divulgam e complementam com associações de todo o
tipo. De imediato eu só associo que os demônios são também anjos, expulsos do
céu pelo Deus pai criador.
Assim, estas
miniaturas que fazem parte do meu acervo doméstico – tenho muitas outras
figuras de anjos – além de tê-las desenhado, carregam um significado especial
para mim, apesar de minhas descrenças religiosas. A espiritualidade que se
insinua, ancestral, fazendo parte da vida e de seus desafios. Alegorias? Sim,
idiossincrática, gosto de pensar nestes desvãos sobretudo filosóficos.
Na eterna
luta do Bem e do Mal, o homem sempre se viu dividido entre crenças e religiões,
entre objetos, ícones e símbolos que tanto podem significar proteção como
poder, medo ou fé. Escolhas que fazem parte de nossa humanidade e de suas
contradições.
Gárgula original da Igreja de Sacré Coeur
em Paris, pensativa e observando a cidade.
Petrolina, 20
de janeiro de 2019
Elisabet
Gonçalves Moreira