“Somos
todos viajantes de uma jornada cósmica - poeira de estrelas, girando e dançando
nos torvelinhos e redemoinhos do infinito. A vida é eterna. Mas suas expressões
são efêmeras, momentâneas, transitórias”.
Deepak
Chopra
Entre
lugares, sítios, cidades, construí pontes, desvelei enigmas e alegorias, me
reconheci. Dar lugar ao amor é um mote humano e sensível. Epifania em
deslumbramentos onde o olhar amoroso se encontra disponível se bem o vermos.
Abrir os
olhos e o coração para as possibilidades do tempo e do espaço. Assim fiz e faço
em minhas viagens. Aquelas onde tenho um transporte para mover e aquelas em que
viajo dentro de mim, um constante ir e vir, assentando a expansão do
conhecimento e das leituras que faço desse aprendizado.
Assim se
deu, assim se fez, assim relato. Neste aqui, o trânsito se tornou perene e fixo
na memória.
Saravá!
Décadas
depois, relembro as emoções de conhecer, na mítica cidade de Salvador, Bahia
brasileira, suas praias distantes, um terreiro de candomblé, a moqueca na lagoa
do Abaeté, a capoeira de Mestre Pastinha... tantas lembranças e... um amor que
até hoje me embalança.
Ali fui
levada num sonho de mulher jovem e aventureira, desejosa de sol e de ver gente
morena e bonita. Estudante paulista tem no imaginário a Bahia como referência
para férias idealizadas, um projeto de vida em expectativa.
Primeiro
foi uma viagem de quase três dias, em ônibus de linha comum, recurso para uma
estudante sem dinheiro bastante. Desconfortável, fui aprendendo, em outros
olhares, uma vista do interior brasileiro numa geografia de planos rápidos. Ao
meu lado estava sentado um homem magro, muito simples e sério. Fiquei receosa,
mas ele foi de uma postura elegante e correta. Sequer puxava conversa.
Aliás,
foi só quando adentramos no estado da Bahia, numa parada na cidade de Vitória
da Conquista que ele me ofereceu os frutos da época, doces e azedos umbus.
Estava feliz, via nos seus olhos, e então soube que ele voltava para sua terra.
O burburinho das pessoas oferecendo frutos e artesanato do lado de fora para os
passageiros em suas janelas era vivo e forte. Tão distante do barulho da cidade
grande, a poluição era de gente que respirava outros ares e anunciava lances
para meu entendimento de um mundo a ser descoberto. E amado.
Tantos
episódios. Minha ingenuidade e desconhecimento geográfico já se deu quando, ao
anunciar que chegávamos à cidade de Salvador, eu achei que era um equívoco.
Porque não via as serras, não havia curvas, como nas estradas de São Paulo ao
litoral Paulista. Bem, a Serra do Mar acabara quilômetros antes... Essa
possibilidade de comparação geográfica e humana é uma aprendizagem fundamental
para o viajante de primeira ou última viagem.
Outro
episódio, cômico, foi que, apertada para ir ao sanitário, entrei correndo no
banheiro e fui barrada por uma funcionária que me disse, não, esse banheiro é
masculino. Quando eu falei, ela então reconheceu em mim uma moça que, após três
dias na estrada, nem parecia gente, quanto mais mulher. Ademais estava vestida
como um menino, camisa e calças jeans, cabelos curtos. Um tempo de contestação
também no visual.
Tinha o
endereço do Hotel Colonial, na Ladeira da Barra. Havia sido indicação de uma
amiga que, por sinal, também me indicara um primo que morava em Salvador, para
algum contato, se preciso. Como minha amiga não fora na viagem que havíamos
combinado, lá estava eu sozinha num grande quarto. Casarão branco antigo, altas
portas e janelas azuis, o sonho estava se realizando.
Precisava
comer. Sabia do restaurante universitário não muito longe dali. Fiz sucesso
ali. Conheci o encarregado e conheci uma atração predestinada. Ele não liberou
a comida de graça, como eu achava que minha carteira de estudante pudesse
fazer, mas consegui o mesmo preço pago pelos estudantes locais.
Bem, o
fato é que ele se desdobrou para me mostrar Salvador, para ficar a meu lado.
Quando entrávamos no restaurante, os estudantes batiam os talheres no bandejão,
saudando e fazendo comentários sobre o baiano que “ganhara” a paulista. Inda
mais que ele era do interior do estado, lá das margens do rio São Francisco, um
barranqueiro...
O Brasil
vivia momentos políticos de repressão. Ditadura militar em curso. Havia uma
vida paralela que não mostrávamos claramente, estudantes em lides ideológicas,
procurando sobreviver em constantes conflitos. Não falávamos sobre isso, mas eu
sabia – sempre soube – de que lado estava. Assim, “descartei” logo o apoio do
primo da amiga, um burguês cheio de preconceitos. E ficava feliz com muitos
pretendentes nesta Bahia de tantas cores. Minha juventude e graça tiveram seu
momento de glória...
Mas eu
escolhi sem titubear. Um fato. Um amor em sincronia.
No
Pelourinho, um sítio dos mais atraentes da Salvador colonial, passeava com o
barranqueiro, conhecendo e estabelecendo empatias nos mesmos gostos. De repente, ele começou a assobiar, bem
afinado, uma bela canção do folclore russo. Não acreditei, o espanto foi mútuo.
Como, você conhece esta canção?
Conhecíamos.
Entramos
na Igreja de Nossa Senhora dos Pretos e ele, emocionado, fez uma jura de amor,
simbolizado neste encontro de conexões e emoções.
Fechando 2019,
após 50 anos deste encontro, questiono e admiro o destino que me estava
reservado neste lugar. Ou desde sempre predestinado?!
Ladeira do Pelourinho - Salvador, Bahia