Os filmes de faroeste (far = longe e oeste western
em inglês) exerceram influência no mundo todo, sobretudo criando estereótipos
que marcaram a história do cinema e o mito do herói do velho Oeste, das
histórias de bandido e mocinho. Este, sempre um galã, branco, leal, valente e defensor
dos injustiçados, enquanto o bandido é o sujeito mal encarado, comanchero
ou o índio cruel, matando e escalpelando colonos inocentes. Um mito inventado,
mas que, reproduzido à exaustão, criou a aura do cowboy, do vaqueiro destemido.
Enfim, um maniqueísmo que acompanha nossa identificação mais geral com os mitos
na luta do bem contra o mal. E que o bem, apesar de todos os percalços, sempre
vence, para glória do herói e de nossa catarse. Assim, também nos gibis de Tex
Willer, acompanhamos a saga épica desse herói aventureiro e valente, bom de
tiro e de caráter.
Quem é fã de gibis, das histórias em quadrinhos,
provavelmente conheça Tex Willer. Pode ser associado aos filmes do “western
spaghetti” ou faroeste macarrônico (ironia com os italianos) por certa visão
diferenciada do mocinho, mais violenta, e que acabou influenciando até novos
filmes americanos de faroeste. Este intercâmbio é bastante instigador, pois há
interesses claramente evidenciados na indústria cultural. Sucesso de público é
também garantia de retorno financeiro.
Mas o fato é que os gibis de Tex Willer chegam a muitos
países, por aqui, e, curiosamente, menos nos Estados Unidos da América. Já
explicaram que existe uma lógica nisso, afinal Tex Willer, um ranger a
serviço do Estado, em suas aventuras épicas, matando índios e bandidos com um senso
de justiça cristão, revela ou melhor desvelaria metaforicamente características
da própria Itália em sua luta pela unificação, após as sequelas da segunda
guerra mundial. Sabemos também que a mídia e a indústria cultural têm seus
interesses comerciais na distribuição deste tipo de produto e seu consumo. Portanto,
a confluência destes dois aspectos pode ter assegurado o êxito desses
gibis, iniciado na Itália.
A periodicidade dos gibis Tex é mensal, mas há sempre várias
revistas em oferta, almanaques, edições históricas, números especiais e outros.
As edições mensais na maioria têm 114 páginas em tamanho livreto padrão e, às
vezes, há continuação do enredo no número seguinte. Esse número dobra em
edições especiais. Para atingir o número de páginas, observei também que, às
vezes, coexistem duas histórias. São invariantes três tiras horizontais em cada
página, um a três quadrinhos em cada tira, a maioria com moldura.
A editora atual no Brasil, Mythos Editora, não publica a
tiragem, mas, acredito que seja considerável, pela popularidade do gibi.
Comprei um exemplar na Itália; também não há o número da tiragem. Entretanto,
em uma entrevista de um dos herdeiros e roteiristas da editora, Sergio Bonelli,
de 2008, há uma referência a 200 mil exemplares mensais, somente na Itália, sem
contar as edições especiais. O preço é variável. Em fevereiro de 2020, o
Almanaque Tex, em formato livreto, custou R$ 13,90 e 4 euros na Europa.
Os desenhos internos são em preto e branco (nanquim,
bico-de-pena) com as capas coloridas, às vezes uma arte de outros desenhistas.
Há também edições totalmente coloridas, com recursos de aquarela e nanquim. O
trabalho de arte é bem realista, acadêmico e plenamente realizado, seja na sequência
dos quadrinhos, na movimentação das cenas, na expressão dos personagens e
cenários, que atrai o leitor para closes e diferentes perspectivas.
Os roteiros são cheios de ação, aventura, muito tiro e
pancadaria. Nada é estático, tudo se encadeia numa dinâmica simples e envolvente,
quase cinematográfica e que, talvez por isso, seja esse realmente um dos
elementos de sucesso desses HQs, como leitura de entretenimento.
Tex Willer em ação (desenho
de Gallep). Uma boa história, muito ação e movimentos dão dinâmica aos
quadrinhos do gibi, como se estivéssemos assistindo à cena. Inicialmente em
preto e branco, há também gibis coloridos desde 2007.
Não sou leitora desses gibis, mas aqui em casa e na de meu
filho há estantes destes exemplares, os gibis do Tex, colecionados há anos. Meu
marido, desde sempre, quando ia à banca de revistas, perguntava: “E o cavalo do
Tex, já chegou?” Ele lê e relê estas
aventuras em quadrinhos e defende essa leitura como entretenimento, sabendo
sempre que Tex vai vencer, o herói típico, infalível.
Realmente, entre a seriedade de seus livros de política e
economia, os gibis de Tex são uma alternativa lúdica, prazerosa, assim como
para meu filho jornalista. Ambos, pai e filho, trocam revistas e falam destas
aventuras. E que aventuras... eles mesmo as ironizam muitas vezes pelo exagero
de certas situações, mas o encantamento não abala o fascínio de seus leitores. Aliás,
um fascínio em que se misturam elementos de ironia e comédia, além de
referências históricas e geográficas para embasar certa verossimilhança
narrativa.
Quando falei que iria escrever sobre Tex, ambos selecionaram
uma porção de histórias para eu me situar. Sim, porque outra motivação é que,
em viagem aos Estados Unidos, em 2018, conheci o estado do Colorado. Já
conhecia algumas estradas, paisagens e cidades do estado do Kansas e do Texas,
especialmente Laredo na fronteira com o México, com o Rio Grande (tão miúdo, me
pareceu!) onde a influência mexicana e a própria história se confundem ainda
hoje. Pois bem, no estado do Colorado, viajando de carro ou fazendo caminhadas
pelas marcantes paisagens das pradarias, lagos e montanhas, meu marido sempre
associava em tom de brincadeira “Tex passou por aqui...” Aliás, o criador de
Tex assume a influência da história americana em seus enredos dos quadrinhos e
encontrei uma foto de Gianluigi Bonelli com os filhos no estado do Arizona em
um dos gibis. Então não é mera coincidência...
Paisagem do
Colorado, planícies, vales e montanhas (foto própria).
Há muito material sobre Tex Willer na web, pesquisas
inclusive acadêmicas, análises críticas e fãs ardorosos da série. Não é assunto
para o blog fazer uma análise da evolução desse personagem ou de suas revistas,
mas lançar também um olhar sobre outro personagem, o índio Ouray, chefe dos
Utes, e como foi utilizado em uma das histórias. Se Tex Willer é um personagem
de ficção, o chefe índio Ouray é um personagem histórico, nativo, que viveu nos
Estados Unidos. Não sou especialista em história americana, mas foram muitas
coincidências para este desafio.
Geografia, História e Ficção... A história de um chefe da
nação indígena dos Utes, me foi apresentada sob diversos aspectos. E ele está
lá, representado nos gibis de Tex Willer.
Ouray, chefe indígena
dos Utes, em foto de 1874. Ouray, desenhado por Ticci no gibi Tex, número 474,
“O assédio dos Utes”, São Paulo, Mythos Editora, abril 2009.
Ouray se tornou personagem de gibi italiano e lhe deram voz
e vida. Mas uma voz de figurante e não da importância que esse homem teve na
história dos Utes e das negociações sobre as reservas indígenas no século XIX. Há
uma sequência de três revistas em que se prepara o aparecimento de Ouray, mais
pelos Utes, a tribo, constituírem uma ameaça. Os números 472, Os
soldados-búfalo, 473, O esquadrão de ébano e o número 474, O
assédio dos Utes. O argumento narrativo é uma criação de Mauro Boselli, com
arte de Ticci, editado na Itália em 2008. Portanto, 60 anos depois do primeiro
gibi, de 1948.
Com o fim da guerra civil, em 1866, o novo desafio para essa
nascente América “unida pelo fogo e pelo sangue”, era representada pela
conquista dos territórios da fronteira oeste. Aliás, o significado de fronteira
já dá um substrato interessante para se entender o maniqueísmo, o lado de cá,
civilizado e o lado além da fronteira, selvagem, mas rico em terras e
possibilidades, ocupado por selvagens e foras-da-lei.
Para combater os selvagens peles-vermelhas, nada melhor que usar
também os desprezados afro-americanos. Nestas três histórias, o protagonismo é dado
aos valorosos soldados negros, soldados-búfalo, assim denominados pelos índios
e não especificamente aos Utes ou a Ouray. Ex-escravos afro-americanos
combatiam nas fileiras do exército, mas sempre foram vítimas de preconceito. Esta
trilogia procura redimir, pelos olhos de Boselli, esses soldados tão fortes e
corajosos como os soldados brancos. Há algo de politicamente correto nesta
alternativa, mesmo que os soldados sejam clichês representativos em muitos
quadrinhos e na própria sequência da história.
Há uma sinopse bem interessante no início do número 473, que
facilitará minha apreciação.
“Tex e Carson estão no Utah à caça de Pablo Carrizo, um
comanchero que escapou deles alguns anos atrás e que atualmente vive com os
Utes do chefe Ouray nas montanhas Uintah. Na pradaria, os rangers são obrigados
a defender um grupinho de caçadores de búfalos do ataque dos Utes e, em seu
socorro, chegam dois soldados negros do décimo de cavalaria, conhecidos como
soldados-búfalo. Um deles, o sargento Bill Johnson, é um velho conhecido dos
dois parceiros, por quem vêm a saber que Ouray está irritado com os brancos
pela presença em seu território de um povoado fora-da-lei, Destiny, e que é
justamente Carrizo quem instiga a ira do velho chefe. Em Forte Duchesne, onde o
Décimo de Cavalaria está lotado, os dois rangers pedem para ser acompanhados
por uma pequena patrulha em sua missão de negociar com Ouray. Mas, ao chegarem
aos pés da montanha, descobrem que a agência indígena do rio White já está sob
o assédio dos Utes e dos comancheros de Carrizo...”
Os personagens aqui referidos são os mocinhos, ambos
rangers, Tex Willer e Kit Carson, este também uma criação original de G. Bonelli,
que nada tem a ver com o verdadeiro Kit Carson, com uma vida bem tumultuada em
várias frentes, seja um batedor do exército americano, seja combatendo índios.
O Kit Carson dos gibis é um ranger mais velho, amigo e compadre de Tex Willer
de longa data. Ambos não admitem injustiças e, mesmo matando índio e bandido,
apresentam uma lógica que os torna “mocinhos” do bem.
Acho esclarecedor colocar esta pequena pesquisa sobre quem
seriam os rangers e os comancheros, abundantes nestas histórias. Os rangers são
basicamente agentes de aplicação da lei numa terra sem lei como eram as terras
da fronteira, o longínquo oeste. Ao longo dos anos, os Texas Rangers (oriundos
desse estado) investigaram crimes diversos, caçaram fugitivos e perseguiram
índios e bandidos, agindo como patrulheiros da fronteira. Atuaram como
batedores, espiões, correios e guias para os colonos americanos. Há certa “aura”
lendária em torno dos rangers e uma suposta brava atuação, mas hoje em dia esta
é bastante questionada pois há exemplos de métodos usados tão brutais como o de
seus oponentes. De todo modo fazem parte
da mitologia do velho Oeste.
Interessante observar que a história pregressa de Tex
Willer, agora ranger, também passou por diferentes estágios e perspectivas. Ele
já foi rancheiro e cowboy no Texas no início do século XIX, participou na
guerra civil mexicana e na guerra de Secessão. Já foi até bandido, um
fora-da-lei procurado, por causa de uma vingança familiar, matando para se
defender. E quem já não viu heróis desse tipo nas mais variadas culturas?
Tex depois se casou com uma índia navajo, filha do chefe e,
por isso, se tornou índio, conhecido como Águia da Noite. Com a morte do chefe,
ele se torna (imaginem!) chefe índio. Tiveram um
filho, Kit Willer, que o acompanhará quando jovem em suas aventuras. A esposa,
Lírio Branco, também chamada Lilyth (um nome que carrega grande significado
para a mitologia do gênero feminino) morreu depois que traficantes colocaram
doenças nos cobertores da tribo. E isso foi muito conveniente para uma história
essencialmente baseada na virilidade e protagonismo masculino. E estas diversas
facetas do herói rendem bons argumentos para as histórias.
A definição de comanchero no dicionário é a de um
comerciante que negociava com as tribos nômades nativas americanas, como
os povos Comanche, Navajo e Apache. Esses comerciantes eram geralmente de
ascendência hispânica ou mestiços e assim nomeados porque os Comanches eram
seus melhores clientes. Vendiam ou trocavam produtos manufaturados, ferramentas
e tecidos, farinha, bebidas alcoólicas, fumo e pão por peles, gado e escravos,
especialmente mulheres índias. Traficavam armas e pólvora, armando os
peles-vermelhas em sua luta com os brancos, rancheiros e cavalaria. Homens da
fronteira, foram também caracterizados como bandidos e foras-da-lei.
Em algumas revistas Tex, aparecem introduções explicativas
sobre os editores, personagens ou fatos. No Almanaque Tex, nº 20, dezembro de
2003, levei até um susto: “Captain Jack: O verdadeiro Tex Willer” por Rino Di
Stefano, pesquisador e jornalista italiano. “Para todos era o mais temido e
respeitado Texas Ranger que jamais existiu.” O autor acha que Gianluigi
Bonelli, o criador do Tex Willer, tenha se inspirado nesse famoso ranger da
vida real. Um resumo da vida dele, como
apresentado, reforça características semelhantes entre a vida e a atuação dos dois
rangers. Se non é vero...
No número 474, O Assédio dos Utes, Ouray aparece
apenas como uma referência de um valente chefe indígena, um sakem. Sua
figura é mostrada em poucos quadrinhos, atacando os soldados da cavalaria
americana, enganado que foi pelo comanchero. Um bandido fora-da-lei e um
coronel branco racista e sanguinário dão o tom do confronto, pois os
soldados-búfalo é que são mostrados como verdadeiros heróis nessa batalha. A
palavra assédio tem aqui seu sentido original, de operação militar, onde se estabelece
um cerco com a finalidade de exercer um domínio e vencer os que lá estão na
defesa. Há uma certa ambiguidade neste título da revista, pois a guerra e a
matança se justificam também pelo perigo do assédio.
Atacados, Ouray e seus guerreiros acabam fugindo para as
montanhas. Na verdade, uma derrota. Mais adiante, Tex Willer, fala como ranger
vencedor e autoridade de chefe dos navajos a um prisioneiro ute, argumentando
dessa maneira: “... tanto nós quanto vocês fomos arrastados neste trágico erro
por dois instigadores de ódio... Carlos, um ute que desonra a sua tribo, e o
comanchero Pablo Carrizo, um falso amigo dos homens vermelhos!”. Continua no
quadrinho seguinte: “Carrizo enganou os Utes, porque estava aqui pelo ouro das
montanhas Uintah, exatamente como os outros brancos que invadiram as suas
terras, enlameando o tratado!”. Síntese da guerra também no tom autoritário de
Tex Willer: “Agora Carlos está morto! Os soldados-búfalo o mataram e Carrizo o
seguirá no inferno! E ninguém mais deverá seguir o seu exemplo e levantar de
novo a machadinha de guerra, porque os soldados-búfalo não vão permitir!”
(página 37 da revista em referência).
Tex liberta os prisioneiros, dá-lhe cavalos e ainda um
presente para Ouray, dizendo-se confiante no “bom senso de Ouray”. Fica
evidenciado que são bandidos, como Carrizo, que “enlamearam o tratado” com os
Utes. E a história do gibi continua na perseguição a Carrizo em muitas páginas
à frente, derramando-se em elogios aos soldados negros da cavalaria. Ouray sai
de cena literalmente pois esta história é a final da trilogia citada.
No encerramento da história, em sua página final, há mais
uma fala, do coronel do forte, sobre as negociações com o chefe índio: “Ouray
tem a cabeça no lugar e aceitará as nossas condições!” O vencedor não deixa
dúvidas quanto a isso. E termina com festa e brinde aos soldados-búfalos.
O que podemos inferir daqui? O primeiro e mais importante,
me parece, é o fato de termos um batalhão da cavalaria americana constituída
por soldados negros, denominados “soldados búfalos” pela aparência. Isso é
inusitado nos gibis. Ponto para Bonelli e sua equipe editorial. Aliás, o autor,
na primeira parte da trilogia, a inicia “Esta é a lenda dos soldados-búfalo...”
com um belo quadrinho panorâmico e alegórico de um batalhão flutuando no ar
sobre as pradarias do oeste. Uma lenda certamente, na representação criada pelo
autor, como personagens de um gibi. O autor da história, Mauro Boselli, declarou
em uma entrevista que precisava de um argumento inovador para a o gibi pois, na
Editora Bonelli, o ritmo de produção é alto, envolvendo outros heróis e outras
HQ.
Os autores estudam a história americana, mas não conseguem
se deslocar de sua visão europeia, etnocêntrica. Os soldados negros da
cavalaria americana realmente existiram, dentro do contexto da Guerra de
Secessão. São assim apresentados “Soldados tenazes e obstinados como búfalos e
aos quais, como aos búfalos, o grande espírito havia oferecido uma cabeleira
dura e lanosa.” (página 12, do gibi 472) Fortes e valorosos, os
soldados-búfalos mostram-se defensores competentes dos interesses da dominação
branca neste “faroeste”. Em nenhum momento se identificam com os
peles-vermelhas; afinal são soldados e obedecem a ordens. Apesar de estigmatizados pelos racistas, na
figura do comandante coronel branco, o batalhão dos soldados negros faz parte
do núcleo de heróis do bem.
E quanto a Ouray? A importância
histórica deste chefe não é mostrada, mas ele teve um desempenho significativo
na luta contra os brancos e nas negociações com o governo pelas terras e
reservas indígenas dos Utes.
Encontrei este livro Ouray, chief of the Utes, com
abundante e esclarecedor registro fotográfico da história de Ouray e das
circunstâncias históricas de sua vida.
Autoria de P. David Smith, editado pela Wayfinder press, do Colorado,
1996. É um livro sem ficha catalográfica, acredito que edição do autor. Observa-se
na montagem da capa uma figura feminina ao lado de Ouray, sua esposa Chipeta,
que teve importante atuação na vida do marido e, quando viúva, foi também uma
negociadora nos tratados de reservas com os brancos. Ela não aparece nos gibis.
A capa traz a informação: “A fascinante história do mais
famoso e controverso Chefe Índio do Colorado.” Ouray nasceu perto de Taos, Novo
México em 1833 e faleceu em 1880 no Colorado. Sua mãe e seu pai eram indígenas,
ligados aos Utes e aos Apaches. Vivendo em uma localidade culturalmente
diversificada, foi criado na religião católica, aprendeu espanhol e inglês e mais
tarde a língua dos Utes e Apaches. Passou
grande parte de sua juventude trabalhando para rancheiros mexicanos. Com 18
anos mudou-se para o Colorado onde se tornou membro da tribo Utes dos
Tabeguache pois seu pai havia se tornado chefe, ainda que tivesse sangue
apache. De lá até 1860, ele viveu como os Utes, caçando e lutando. E se tornou
chefe aos 27 anos, após a morte de seu pai.
É aí que talvez possamos localizar Ouray na história de Tex
Willer. Pois a biografia do chefe Ouray mostra que ele se tornou um negociador
nos tratados entre índios e brancos, tendo-se reunido com os presidentes
Lincoln, Grant, e Hayes e foi chamado o homem de paz, porque procurou fazer
acordos com os colonos e o governo. Esse foi um período de grandes mudanças sociais e
políticas e que marca a submissão de toda uma orgulhosa nação indígena, expulsa de
suas terras originais e forçada a aceitar sua realocação em reservas.
Após o episódio sangrento, conhecido como massacre Meeker,
de 1879, Ouray viajou, ainda em 1880, ano de sua morte, para a capital
Washington. Ele tentou garantir um tratado para a tribo, que queria
ficar no Colorado, mas, no ano seguinte, os Estados Unidos forçaram os Utes a
se deslocarem a oeste das reservas, na atual Utah.
Embora Ouray tenha confiado nas autoridades, foi
enganado e traído. Hoje é reconhecido como um dos maiores chefes Utes pela sua
persistência e diplomacia. Desde 1939, na reserva dos Utes, há um memorial de
honra dedicado aos grandes chefes, incluindo Ouray.
Entre os fatos históricos e a ficção, o Ouray mostrado nos gibis,
há uma clareza explícita na superioridade do homem branco sobre o nativo “selvagem”.
Superioridade mediada pelo fala de Tex Willer representando o grande vencedor. Mesmo
que Boselli tenha justificado a cobiça do homem branco pelas terras e riquezas,
traindo os acordos, a ameaça ou chantagem aos Utes é digna de menção. Talvez
que este “bom senso de Ouray”, dito na fala de Tex, seja também a análise
sucinta da personalidade do grande chefe, esperada pelo conquistador branco.
A traição que sofre Ouray na história, que levou à sua
derrota, é atribuída a um comanchero fora-da-lei, um bandido. De certa forma,
há uma verossimilhança com a vida real do chefe índio, pois ele acreditou nas
promessas dos brancos para sua tribo. Um ingênuo ou um perdedor inevitável? A integridade não se coaduna com a ganância dos mais espertos. E
isso fica demonstrado alegoricamente no gibi.
Assim se representam, índios e negros, submissos a uma
colonização forçada, que procura amenizar séculos de exploração e genocídio. Heróis ou bandidos, a visão dominante é a do
branco vencedor, com certa aura de justiça – e aí percebe-se também os
resquícios de uma cultura cristã - no seu envolvimento na conquista do Oeste e
da formação do povo “americano” (na verdade, americanos também somos nós da
América do Sul e Central).
Se a história é assim representada, também os aspectos
físicos do velho oeste americano o são. Pradarias, vales, rios, pequenas cidades
de madeira garantem certa fidelidade à paisagem, cenário natural das aventuras.
Tipos físicos também; além dos já citados, convivem mineiros, prostitutas,
cowboys, xerifes, num amálgama híbrido de fatos e de origens, partícipes e
figurantes de inúmeras aventuras.
Reproduzo aqui trecho do depoimento de G. Bonelli, o criador
do Tex Willer, no gibi Tex Especial 60 anos, de setembro de 2008: “Até onde eu
me lembro (...) eu sempre tentei recriar, nas histórias de Tex, a atmosfera
real do Oeste Selvagem, onde, infelizmente, os homens “justos” eram forçados
pelas circunstâncias a usar “o velho Juiz Colt” para reprimir os abusos e as
violências praticados por elementos sem escrúpulos e, de consequência, essa
minha posição de intérprete fiel do modo de viver daqueles tempos muitas vezes
me levou a usar uma linguagem bastante forte e a fazer roteiros notavelmente
violentos."
E acrescenta: "Tex não tem nenhum fundo psicológico e eu nunca pretendi lhe dar um.
Tex é um justiceiro que dá razão a quem tem, sem se preocupar com o resto. Para
Tex não existem problemas raciais ou sociais. Como eu já disse, para ele quem
está errado, está errado, ainda que seja o arrogante coronel do forte, ansioso
para se cobrir de glória e fazer carreira às custas da pele de seus soldados e
daqueles pobres diabos dos índios, ou se é o costumeiro político sujo e ultra
corrupto que, para encher o cofre, vende terras que não são suas para
especuladores com uma consciência coberta por uma floresta de pelos digna de um
mamute!” Aê mocinho!!!!
Por estas palavras, pelas comparações, conhecemos não só a
linha característica do personagem, como de seu autor. Tex Willer sempre será o
representante do vencedor.
Hoje, os EUA reconhecem as tribos indígenas como nações
domésticas independentes. Entretanto, em suas reservas, as dificuldades de
sobrevivência se acentuaram, pois o modo de vida é outro de sua cultura
ancestral. Ainda são muito criticados por causa de algumas "benesses", mas problemas com alcoolismo e alto nível de desemprego constituem aspectos negativos da aceitação de sua realidade no mundo atual.
Evidente que esse trabalho não tem a pretensão de esgotar as
relações aqui abordadas, há muitas leituras possíveis. O mundo dos HQs,
representativo de uma cultura letrada, é fonte de uma multiplicidade de
desafiadoras abordagens. Temos uma mitologia quase romântica de um oeste que foi
duramente conquistado para a civilização, para a lei e para a ordem, pelo homem
branco. Sabendo que o leitor dos quadrinhos é uma invenção do século XX,
reforça-se, dessa maneira, uma visão estereotipada não só dessa abrangência
como de justificativas para o racismo e a superioridade da etnia branca ainda tão
presentes nos dias civilizados de hoje sobre os nativos, negros e imigrantes.
Assim na Europa como nos EUA.
Olha o bonitão Tex Willer aí, um texano, vestido como um
ator de cinema, forte, viril, bem armado, tendo ao fundo o cenário, a pradaria
americana e a entrada para um rancho de colono, nos tempos da conquista do
oeste.
E o cavalo do Tex, já chegou por aí?
Para terminar, convido para este bem humorado vídeo clipe
nacional. Raul Seixas “Cowboy fora-da-lei”, com todos os clichês do cowboy do
faroeste. No final do clipe, o “herói”, deitado na cama, está lendo um gibi...
do Tex. Close nele.
https://youtu.be/4syrZTW2aiI
Alguns links que complementam o interesse pelos gibis de Tex
Willer.
Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, maio de 2020.