Tantas homenagens neste centenário do educador Paulo Freire (1921-1997)... estou comovida e triste. Essas comemorações por centenários ou décadas nem sempre traduzem sinceridade. Mas, neste momento de escuridão bolsonarista, sim, é muito bom recordar quem foi Paulo Freire e sua importância. Muito além de frases de efeito, pensar na proposta educacional, afirmativa, concreta, da atuação dialógica no aprender/apreender/ver/ler o mundo. Essa troca fundamental em que se baseia nossa humanidade.
Paulo Freire visitou Juazeiro da Bahia em três momentos, a convite de Dom José Rodrigues, bispo católico, identificado com uma igreja progressista e atuante sobre as injustiças da realidade socioeconômica de nosso país. Em 1983, realizou um curso de formação de educação popular com 25 monitores. Nesse ano ele autografou para mim seu livro “Pedagogia do Oprimido”, que me nutria ideologicamente, seja como professora, seja como militante em movimentos sociais e políticos.
Em 1984, um trabalho de formação
com 11 ciclos de cultura, que funcionavam em três bairros da periferia da
cidade e oito em cidades do território “Sertão São Francisco”, onde a Diocese
atuava. Em 1986, o educador retornou à cidade juazeirense para continuar o
trabalho de formação.
Foi nesse momento que pude
participar dessa formação, ainda que morasse em Petrolina, Pernambuco, do outro
lado do rio São Francisco e não fizesse parte da Diocese ou de movimentos
católicos. O movimento das Diretas Já, que sacudiu o Brasil desde 1983,
consolidara o fim da ditadura militar (1965-1985). Desde os tempos de estudante
na USP, nos anos bravos da repressão, agora em Petrolina para onde me mudara em
1976, nunca deixei de atuar politicamente. Essa é outra história, mas alguns
fatos dela ainda quero narrar, pois fui até perseguida pelos acólitos do poder
local, já que atuava como crítica dos desmandos políticos em jornais da cidade.
Amigas me falaram da possibilidade de participar desse encontro com Paulo Freire e não hesitei. Foi uma semana intensiva, todos alojados em Carnaíba do Sertão, distrito de Juazeiro, onde havia um Centro Diocesano de treinamento. Elza Freire, esposa de Paulo, estava também presente. Infelizmente ela viria a falecer ainda neste ano, em outubro de 1986. Era, como Paulo, uma pessoa amável e firme em suas convicções. Havia uma divisão de tarefas, lembro bem. Enquanto Paulo falava teoricamente sobre Educação e seu posicionamento pedagógico, Elza se dedicou a uma parte mais prática, mostrando exemplos de como alfabetizar a partir da conscientização, tirando dúvidas em geral.
O mais legal dessa semana eram os
papos descontraídos, nas varandas do alojamento, à noitinha, após o jantar. Foi
ali que o homem Paulo Freire se me apresentou em várias facetas. Um ser amoroso
que transbordava fé e empatia. Conto aqui alguns detalhes... Muito me
surpreendeu ele se declarar devoto fervoroso de Santa Teresinha do Menino Jesus,
como é conhecida Teresa de Lisieux, nascida em França. Não confundir com outra
Teresa, Santa Teresa de Ávila (1515-1582), nascida na Espanha, embora haja
alguns pontos em comum na história destas duas santas, freiras carmelitas. Não
sendo católica praticante, eu conhecia superficialmente alguns detalhes. Teresa
de Ávila é conhecida por seus êxtases, um misticismo exacerbado e o fato de ser
considerada uma das grandes escritoras da literatura espanhola.
Teresa de Lisieux (1873-1897)
teve problemas de saúde desde a infância, tornou-se freira e pautou sua vida
pela busca da santidade, acreditando que não era necessário realizar atos
heroicos e nem "grandes feitos" para atingir a santidade e nem para
expressar o amor de Deus, “A única forma de provar meu amor é espalhando flores
e estas flores são todos os pequenos sacrifícios, cada olhar, cada palavra e
cada pequeno ato de amor.” Como não entender o olhar e a devoção de Paulo
Freire inspirados pelo amor ao próximo?
Aliás, Frei Betto, lhe colocou um
epíteto síntese: “Paulo Freire, o educamor”, numa crônica de 2001, quando da
comemoração de seus 80 anos. Décadas e memórias se avolumam e se desdobram...
Outro diálogo essencial com Paulo
Freire se deu ao conversarmos sobre nossa situação pequeno burguesa. Sendo
professora, trabalhando em até três períodos muitas vezes, com condição
financeira relativamente satisfatória, sempre tive empregada doméstica. E,
mesmo antes das leis de regulamentação do trabalho doméstico, eu já pagava o
salário mínimo e respeitava os horários da jornada. Bom, isto pode não vir ao
caso agora, mas Paulo me ajudou a entender – se não justificar – o processo em
que se inserem estas relações dentro de nossas casas. Se pagamos o serviço,
sempre seremos os empregadores, os patrões, com toda a carga semântica que
envolve essas designações no universo do trabalho e suas diferenças sociais.
Portanto, se se luta por justiça
social, o serviço que as empregadas domésticas executam devem ter esse lado
justo, profissional sim, pago com todo o merecimento e respeito. E foi assim
que Paulo Freire, um dos fundadores do PT, Partido dos Trabalhadores, também
disse que, já com certa idade, sem saber dirigir, mas com condições
financeiras, comprou um carro e contratou um motorista.
Foi quando ele deixou claro: sim,
classes sociais diferentes, mas, para qualquer posicionamento, “eu sei de que
lado estou”, de uma luta de classes em que os menos favorecidos têm que ter voz
e direitos. Igualdade e justiça social como parâmetro de nossas vidas, na luta
pelo bem comum.
Paulo Freire gostava de citar
este caso e ele aparece no livro/entrevista “Essa escola chamada vida”,
depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho, de Paulo Freire e Frei Betto (Ed.
Ática). Nessa prática, nessa escola chamada vida, um camponês no Maranhão
questionou um voluntário: “Meu amigo, se você pensa que vem aqui ensinar nós
a derrubar o pau, não precisa, porque nóis já sabe. O que nóis quer saber é se
você vai tá com nóis na hora do tombo do pau”. (página 62)
Sim, “a confiança do grupo
popular no intelectual que se coloca a serviço dele nasce da experiência de
estar na hora do tombo”, um aparte conclusivo de Frei Betto (página 63). Por
isso que sempre postulo, nas horas de desafios, de consciência das desigualdades,
“sei de que lado estou”.
Nos vários livros que tenho de
Paulo Freire ou sobre ele, encontrei, depois de 35 anos, anotações feitas em um
bloquinho sobre a essência política e pedagógica de seus conceitos sobre
Educação. Minhas anotações estão datadas: 19/4/86. E ali também encontro, com
sua letra, o endereço e o telefone de sua casa, no Sumarezinho, em São Paulo.
Assim que viajei a São Paulo, acredito
que em 1987, não tenho certeza, telefonei para ele e recebi um convite para
almoçar em sua casa. Uma linda casa e um almoço delicioso, tipicamente
pernambucano, com baião de dois e carne de sol. Lá estavam presentes também
Frei Betto e um convidado especial, o escritor americano Ira Shor. Ambos escreveram
livros sobre Paulo Freire.
Só lembrando que o livro de Ira
Shor, “Medo e Ousadia”, publicado no Brasil pela editora Paz e Terra, é tido
como um referencial qualificado para os tempos atuais, pelo avanço do fascismo
e da extrema direita tanto nos Estados Unidos como aqui no Brasil. Temos cada
vez mais dificuldades históricas para desenvolver o espírito crítico, uma
educação emancipadora, numa sociedade que retroage pedagogicamente.
Descontraídos, conversamos assuntos vários. Ainda me enterneço quando lembro do seu carinho e atenção. Ira Shor se ofereceu para tirar a foto, a seguir.
Ainda outra lembrança me veio.
Paulo Freire esteve rapidamente em minha casa, ainda no ano de 86. Na conversa,
falei de meus estudos de língua e literatura russa, na USP, e, já naqueles
idos, falamos na relação dialógica do discurso, estudada por Mikhail Bakhtin.
Paulo tinha conhecimento da importância dos estudos linguísticos a par do
aspecto político e filosófico da linguagem.
De repente, surgiu um nome e um
livro até hoje maldito: “Os condenados da Terra” de Frantz Fanon (Civilização
Brasileira). Uma das leituras fundamentais de meu marido e que fez a ponte para
Paulo Freire se manifestar, dizendo também que, para ele, este livro lhe foi a
grande referência. Assim como a “História da riqueza do homem”, de Leo Huberman
(Zahar Editores), livro que me abriu os olhos para consciência da exploração
capitalista, desde os tempos de estudante.
Só para situar ligeiramente: Frantz
Fanon (1925-1961) nasceu na Martinica, mas dividiu a sua vida entre a
militância pela independência anticolonialista, sobretudo na Argélia, e a
teoria crítica, desenvolvendo uma tese pioneira que chamou de psicopatologia da
colonização. Em síntese, os colonos, representando a civilização, nunca viram
os nativos como membros de sua espécie, daí que o processo de descolonização
sempre foi violento e violentador. Sejam condenados da terra ou oprimidos em
seu desafio no ato de libertação, Paulo Freire soube refletir e atuar no
contexto pedagógico dessas relações.
Paulo Freire também foi um grande
intelectual, sem dúvidas. Mas não se colocava como um provedor infalível de
conceitos. Deixava claro que não há ninguém mais culto do que o outro. O que há
são culturas paralelas, socialmente complementares. Lições que se desdobram
dialeticamente em vários textos, livros e ações. Pensar e repensar a prática é
prover a si mesmo e a vida.
Talvez eu ainda escreva na
continuação de registros, de momentos... geração de fatos e significados, no
reforço de um aprendizado. Tive uma experiência marcante com um grupo de
mulheres trabalhadoras, lavadeiras, na periferia de Petrolina, em 87, como
voluntária. Depois de décadas, avaliar o que não consegui atingir nos
finalmente pode ser exemplar nas ambiguidades dos contextos, da relação teoria
e prática.
Pouco sabemos e saberemos de
Paulo Freire se não o revisitarmos continuamente. Momentos que se superpõem e
nos instigam como educadores e como cidadãos. Entender a pedagogia do oprimido
pelo vocábulo grego Paideia significando ao mesmo tempo educar e
civilizar, o outro e eu, uma educação libertadora, de conscientização do
sujeito e da História onde atuamos e vivemos.