Tendo rememorado momentos com Paulo Freire, volto a ter
Paulo Freire em minhas reflexões. O centenário de seu nascimento ensejou
homenagens e reconhecimento; no entanto essa pergunta leva diretamente ao
questionamento do que nos compete como leitores e educadores. O que assumimos?
Parece que o nome de Paulo Freire adquiriu mais o estatuto
de um significante, um referencial, uma forma de indicar uma experiência
educativa do passado do que um nome evocativo de seu papel pedagógico,
libertador e transformador. Retomar Paulo Freire é retomar a esperança de um
futuro possível, de abraçar suas ideias dialogando com nosso mundo
contemporâneo, outra ordem dos dias.
Um amigo me indicou a referência de um livro recém editado: Paulo
Freire. La pedagogía rebelde de Gustavo Ruggiero (Ediciones
UNGS. Colección Pensadores y pensadoras de América Latina. Los Polvorines,
2021). Talvez seja o caso de acessar diretamente a publicação, mas aqui fica o
que se põe, se dispõe e se propõe.
Gustavo Ruggiero, soube, é especialista em filosofia da
educação, professor na Universidade Nacional de General Sarmiento, na
Argentina. Na leitura síntese em que se apresenta a obra (acesse o link *),
reitera-se que o processo de alfabetização consiste, em última instância,
"adquirir a linguagem para sustentar a luta política". Existe uma
ligação inevitável entre ler o mundo, ler a palavra e lutar por um mundo
melhor.
Ressaltou-se, no artigo, que o autor se questiona, destacando perguntas geradoras desse desafio:
“Lemos Freire para entender nossas
práticas ou o lemos para 'aplicá-lo'? Explicar Freire ou pensar com ele? "
Responderia afirmativamente a esta sequência. Sim, entendo
os caminhos da minha prática como educadora e cidadã neste mundo a par do que
ele me incentivou e me fez compreender. Sim, posso explicar Paulo Freire em sua
essência. Sim, admito que penso como ele, construindo pontes e diálogos. Como
esse aqui, nos limites desse texto, evocando um exemplo pessoal de uma
tentativa direta de alfabetização. Por que narrar isso? Talvez possa ser útil, um
testemunho nos descaminhos da memória e uma reflexão sobre teoria e prática,
agora aos 75 anos, neste pandêmico ano de 2021.
Havia uma valeta
no meio do caminho...
Após uma semana com Paulo Freire, na Diocese de Juazeiro, em
1986, discutindo educação popular, pauta de uma Igreja progressista, me
dispus a aplicar o que estava bem fresco em minha mente. Em um lance ousado de
minha parte, me ofereci para alfabetizar voluntária e independentemente um grupo
de mulheres lavadeiras na periferia de Petrolina. De todo modo, já vinha
construindo uma história no movimento de mulheres da cidade, trabalhando com
sua consciência política, além dos problemas de gênero.
No galpão comunitário onde
estávamos reunidas, no bairro Pedro Raimundo, em Petrolina, Pernambuco, final
dos anos 80, eu e mulheres trabalhadoras como lavadeiras, com alguns de seus
irrequietos meninos, aguardávamos irmã Virgínia, freira indiana, que iria me
apresentar para o grupo.
Miúda e com um hábito curto,
simples e claro, sua presença impunha certa ordem no alvoroço. Era final de
tarde, começo da noite, único horário em que essas mulheres poderiam se reunir,
depois de um dia de trabalho doméstico ou lavando roupa para fora.
Fui apresentada rapidamente. Todas
eram leitoras do mundo onde habitavam sim, e isso ficou claro em nosso
interagir, mas ainda não alfabetizadas na leitura dos códigos linguísticos que
ditam regras e saberes de um mundo onde o desequilíbrio e a injustiça social se
replicam cotidianamente.
Consciente disso, fui inserida
num diálogo essencialmente pedagógico. Para mim, isto era um desafio em minha
vida de professora e de militante no movimento de mulheres. Se havia algum
resquício de idealismo, a realidade mostrou logo o que eu haveria de aprender e
talvez ensinar nessa troca básica entre mim e o outro. Nos diálogos iniciais,
eis que surge a palavra VALETA, signo linguístico interligando apresentações e
histórias de vida.
Nem eu mesma sabia direito o
significado de valeta, mas, nesse significante vocábulo - aqui pronunciado com
um é ligeiramente aberto – confluía a historicidade da situação destas
mulheres, de seu trabalho, de sua vida periférica.
Basicamente a valeta é uma vala
ou buraco pequeno às margens das ruas e estradas, para facilitar o escoamento
das águas. Certo, mas aqui esse significado se expandia. Ficou claro que valeta
seria a palavra geradora na proposta de alfabetização.
Água, vida, sim, sabemos, mas
também trabalho. Mulheres lavadeiras, por quê? Naqueles idos era a ocupação que
lhes dava uma renda possível, trabalhando em casa ou na casa das patroas,
outras mulheres em situações menos adversas. Uma realidade tradicional na
cidade, desde as lavadeiras que iam lavar as roupas nas águas do rio São
Francisco há muitas décadas, agora, nas periferias de uma cidade que atraía migrantes,
desde a construção da represa de Sobradinho e muitos empreendimentos, sobretudo
para áreas irrigáveis, “explodindo” também o crescimento urbano.
Tanto me lembro, como mulher de classe
média, que a vinda das máquinas de lavar roupa seria causar o desaparecimento
das lavadeiras e da possibilidade de um pequeno rendimento. O bairro Pedro
Raimundo era recente, com problemas de infraestrutura e muita pobreza. A Igreja
Católica teve uma atuação importante, daí a presença de Irmã Virgínia e outras
freiras, em seu apostolado, procurando organizar atividades e dar assistência
além da religiosa.
Voltemos à valeta. Digo,
aos encontros nas rodas de conversa no galpão comunitário.
A população do bairro se
organizava para pedir água para o bairro, sua maior necessidade, com a Compesa,
companhia estadual responsável por esse serviço público, com os políticos, com
a prefeitura. Como sempre havia aquele “jogo de empurra” de um órgão para o outro.
Ou alegações várias, por exemplo, que não havia encanamentos; mesmo se
houvesse, não havia... valetas.
Então, a população cavou valetas.
Na continuidade dos encontros,
desmontou-se a palavra valeta, va – le – ta, silabação básica. Tem
alfabetizadores que desejam uma receita de metodologia, uma cartilha pronta...
não é assim que funciona, pude compreender e interagir no processo.
Para que ser alfabetizado então?
No plano coletivo e individual, o desejo ficou expresso. Para ser respeitado,
desde fazer denúncias, solicitar melhorias para o bairro, abaixo-assinados,
fazer cartazes ou escrever cartas, ler bulas de remédios... Sem humilhações com
medo de políticos e doutores. Ser sujeito da história e não coadjuvante no
exercício cotidiano do viver.
A conscientização era possível,
na compreensão crítica da realidade e de si mesmos. Sujeitos da ação, é como o
alfabetizar se torna um ato político concreto. A palavra é a mediação entre
sujeitos, entre mundos e necessidades humanas e sociais. Isso é educação, em
seu sentido mais amplo. Não há neutralidade possível.
Perdi minhas anotações destes
primeiros encontros, mas me lembro de algumas palavras que puderam ser
derivadas, principalmente nos nomes próprios e nas primeiras frases.
Valdelice, Valentina, valente, leva, lava... Lavo roupa sou lavadeira. A valeta
é vala. A valeta é nossa.
Sim, a valeta era da comunidade,
do comum, de uma injustiça a ser urgentemente reparada. E que escoava, ecoava
pelas valas da desigualdade...
Mas, outra história se
avizinhava... talvez não seja prudente eu falar disso, já que é meu ponto de
vista, mas fui percebendo muitas dificuldades para continuar o trabalho. Não só
com as mulheres que faltavam muito, o que era bem compreensível na dureza de suas
vidas, com as crianças perturbando, com a falta de materiais como lápis e
cadernos e, às vezes, realmente, eu ficava meio atrapalhada. Também me desafiavam problemas pessoais,
dificuldades de locomoção, tinha filhas pequenas e era professora na rede de ensino
oficial, com muito trabalho.
Começou com dificuldades para
marcar as reuniões no galpão. Tal dia não seria possível pois tinha outra
reunião, uma desculpa ou outra; sobretudo havia interferência nas minhas falas
com as mulheres, como se desconfiassem de meu discurso, o que muito me
perturbou. Afinal era uma voluntária, independente.
E assim fui me afastando... A
água chegou ao bairro, mas tropecei nas valetas da desinformação.
Entretanto, o que aprendi nesta
experiência levei vida afora, adiante, diante do que se me depara. Mesmo em
outros níveis de aprendizagem (escolas e universidades) sempre dialoguei e ouvi,
atenta aos meus limites, mas sem medo dos desafios. Internalizei as lições
básicas de Paulo Freire, de diálogos marcantes, de coragem e constância no
aprendizado.
Nesse sentido, ainda me comovem os versos que Zita Alves da
Silva fez e a mim dedicou.
“À amiga Elisabet Gonçalves Moreira pela sua perseverança de dialogar com as pessoas.”
O MEU JEITO E O TEU JEITO
Zita Alves da Silva
Eu admiro o teu jeito Mesmo sem jeito, do jeito
esse teu jeito popular, de você dialogar,
teu jeito tem um defeito acabo encontrando jeito
que se chama bem está. p´ra o teu jeito acostumar.
Com o jeito, desse teu jeito; Do jeito, que é o meu jeito
bem de jeito vou ficar, do teu jeito vou ficar
e o defeito, do meu jeito; sem ter jeito, com teu jeito
com o tempo vai se acabar. mas, meu jeito vai mudar.