A motivação da parte I destas aventuras e histórias
continua... não só neste blog, mas até numa pesquisa em andamento sobre os
ferros de marcar o gado. Símbolos, mitos, leituras semióticas e afins...
E aqui reproduzo desenhos dos ferros dos Kadiwéus, nativos indígenas,
povo originário, nos confins do Mato Grosso do Sul, copiados por Guido
Boggiani, antropólogo entre outras atividades. E histórias, inferências e
reflexões que nos arrebatam...
Desenhos e Ferros de
marcar, usados como “siglas de reconhecimento” dos Kaduwéus, conforme figura
103, página 229, do livro “Os Caduveos” de Guido Boggiani (Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1975),
Reprodução fac-similar da edição publicada pela Livraria Martins Editora, em
1945, como consta da Ficha Catalográfica.
Da “orelha” desse livro, uma apresentação inicial: “Sem
pretensões literárias, como assevera o autor, Guido Boggiani redigiu, em 1894,
a narrativa de uma viagem feita com escasso intuito de lucro e resultou num
livro pitoresco, repleto das melhores observações sobre uma nação indígena
entre diversas outras, mais ou menos perdida nos alagadiços entre o sul do Mato
Grosso e o Paraguai.” (De Vivaldi Moreira, escritor mineiro, falecido).
Não concordo com a classificação de um livro “pitoresco”, pois
vejo certo sentido depreciativo, já que o livro, embora tenha ressalvas
etnográficas, principalmente no registro da língua ali falada, é uma obra
fascinante. Mais do que informativa, com fotos e desenhos além de meramente
ilustrações, a escrita de Boggiani, em primeira pessoa, diários de sua vida
entre os Kaduvéos ou Caduveos, funciona e atrai como pequenos contos, fatos,
opiniões e observações no cotidiano insólito dessa etnia, descendente dos
lendários indígenas cavaleiros, os Guaicurus. Além do mais, esta edição se
complementa com uma Introdução de Herbert Baldus e Prefácio de G.A. Colini,
extremamente esclarecedoras sobre a vida e a obra de Boggiani, seu contexto
histórico e antropológico.
Guido Boggiani
Guido Boggiani (1861-1902), italiano, faleceu com apenas 41
anos, assassinado por um indígena. As circunstâncias de sua morte, consequência
de sua vida aventureira e destemida, são também elementos de uma história em
que se mesclam desde o olhar de um antropólogo europeu ao mundo mágico e
insólito dos indígenas em suas fronteiras, mitos e cotidiano. Foi como comerciante
de couros de cervos do Pantanal, sua referência de contato com os nativos e
habitantes da área, mas Boggiani era também pintor, aquarelista e retratista,
carregando uma máquina fotográfica na transição entre um século e outro, escrevendo
e registrando gente, paisagens, fauna e flora.
Mulher Kadiwéu do Rio
Nabileque, Brasil. Foto da coleção Boggiani. Publicado em 1892/Dr. R.
Lehmann-Nitsche. (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Kadiweu_woman_1892.jpg)
Fantástica ou não, uma das hipóteses era o “medo” de que, em
fotos e desenhos, se aprisionasse a alma do retratado. Tanto que Boggiani e seu
acompanhante tiveram a cabeça decepada e a máquina fotográfica enterrada. Ainda
que não estejam claras até hoje as motivações para sua morte, pois Guido
Boggiani convivia com os nativos há tempos, o mito de que as câmeras roubavam a
alma e a vontade dos retratados, foi popularizado após sua morte violenta.
Guido Boggiani ressaltou o gosto pela ornamentação desses
indígenas, tanto no corpo, como nos objetos de uso pessoal, nas marcas dos
animais de sua propriedade, como “siglas de reconhecimento”. E afirma “Há
belíssimas e algumas delas parecem representar figuras humanas simbólicas. O
caráter destas siglas é notabilíssimo e talvez um acurado estudo delas possa
conduzir a interessantes descobertas.” (p. 228)
Sim, é isto mesmo, daí indica outras pistas. “Reproduzo aqui
algumas das principais (...) e sobre alguns objetos estão reunidas em
quantidade como se fossem caracteres de uma escrita.” O desafio é oportuno. Impossível
não eleger o olhar semiótico, já caracterizado como “etnossemiótico”, em que
podemos mergulhar, analisar e refletir as múltiplas camadas das condições de
significação, sem o empirismo muitas vezes fortuito dessas ocorrências sígnicas.
Observar os desenhos é mesmo irresistível. Lévi-Strauss ressaltou que, de todas as etnias
indígenas brasileiras, são os índios Kadiwéu que apresentam uma das pinturas
corporais mais bem elaborada, criativa e bonita. Desenhos que representam,
inclusive, sua estratificação social, histórica e cultural.
Claro que já existem muitos trabalhos sobre essa etnia, além
do reconhecimento por etnólogos, antropólogos como Levy Strauss e Darci Ribeiro,
além do próprio Boggiani. Para mim, foi uma grande surpresa conhecer (mesmo
através do acervo bibliográfico) e divulgar mais uma vez a beleza e importância
estética e cultural dos Kadiwéus. Sem dúvidas, há ainda muito a ser pesquisado,
tantas as possibilidades, nesse grande tecido intercultural que se nos
apresenta, linhas e olhares em diálogo.