Como um folhetim... vou publicar por aqui uma sequência de minha pesquisa sobre MARCAS DE FERRAR, seja gado ou gente, signos do sertão ou de outras geografias, abrangendo muitos desafios e histórias. Espero atingir interesse do público... além da academia, olhares em diversos focos, uma escrita em divulgação...
Esta Parte I é uma apresentação. Na parte II, MARCAS NA LITERATURA: FERRANDO GENTE E GADO, vou mostrar como Ariano Suassuna, Guimarães Rosa e José de Alencar trouxeram estas marcas em algumas de suas obras e como elas funcionam simbolicamente no contexto da narrativa. Aguardem para breve...
Em memória do Professor Roberto Benjamim (1943-2013)
"Pastar nos grandes prados do visível."
Murilo
Mendes
(in Poliedro,
Rio: José 0lympio,1972, p.140)
(Foto de Sílvia Nonata)
Ferro de marcar gado
Proprietário: Januário
José Moreira (1899-1985)
Medidas: Comprimento
total: 26,5 cm. Altura da frente: 9 cm. Diâmetro da roda: 3,2 cm
Visualmente, na frente,
que é a marca, temos uma estrutura básica centrada num círculo; simetricamente
uma ponta para o alto, achatada como um prego e outra ponta para baixo,
abrindo-se em duas pequenas pontas laterais. O círculo é um símbolo protetor de
grande força mística. As pontas laterais, além de, esteticamente, apoiar a
peça, lembram as possibilidades de olhar de um lado para o outro.
Ferro usado na primeira
metade do século XX. Um vaqueiro tomava conta de vários animais de vários
donos. De cada 4 bezerros que nasciam, um era do vaqueiro.
Localização: Pacus, vilarejo às margens do rio São Francisco e que hoje está submerso, após construção da Barragem de Sobradinho. O local pertencia a Santana do Sobrado que, por sua vez, era distrito do município de Casa Nova, Bahia.
Paulista, aportada em Petrolina, nas margens do rio São Francisco, nos idos dos anos 70, me vi envolvida – e desafiada – por um ambiente prenhe de aspectos culturais inteiramente novos para mim. Meu interesse por esses aspectos me motivou a refletir sobre eles e a buscar compreender, na verdade dos costumes e usos, um pouco da sabedoria sertaneja e de sua arte, reflexo de uma época e de um modo de viver.
Num primeiro momento nada mais vi que um ferro de marcar boi, como me foi dito e apresentado. Estranhei. Por que ele não mostrava as iniciais do dono, semelhança visual que é a referência lógica, costumeira, como eu conhecia?
Mas,
nem sempre. Pouco a pouco, vim a saber, uma gama de respostas e um mundo de
significados.
Na sequência, um
causo me foi narrado. Nada tão instigante como esta narrativa preciosa e
simbólica: um novo amigo e vizinho, dono de algumas
propriedades rurais, tinha uma delas com o nome, já herdado, de “Lagoa do
Meio”. Entretanto, aconteceu lá um acidente com seu filho menor, que quase ia
morrendo afogado no açude. Por causa disso, ele mudou o nome da roça para
"Ressurreição" e a marca do ferro para um pequeno sol, pois esse,
esclareceu, significa a vida, a luz.
Além
dessa explicação, a leitura de Iúri Lotman me alargou os caminhos:
"A compreensão da cultura
como informação determina alguns métodos de pesquisa. Ela permite examinar
tanto etapas isoladas da cultura como todo o conjunto de fatos
histórico-culturais na qualidade de uma espécie de texto aberto, e aplicar em
seu estudo métodos gerais da Semiótica e da Linguística Estrutural." [1]
O
paradigma indiciário ou semiótico é, pois, a referência fundamental para
análises, observações e comparações históricas e culturais.
Assim,
este trabalho não pretende ficar como um simples registro das marcas de gado do
Sertão nordestino, espaço a que me limitei em princípio, pois essas marcas são
de muitos espaços, daqui e d´além-mar, e de muitas histórias. Minha pretensão
não implica também nenhuma resposta definitiva, já que inclui, na abertura
intersemiótica, um feixe de possibilidades.
Primeiramente
as pesquisas in loco: vaqueiros, proprietários de algum gado ou de
roças, ferreiros, gente honesta e boa a dar informações. E ferros, muitos
ferros, a maioria já sem uso, todos ganhados de presente. Diziam: já não servem
para nada.... Comecei então uma pequena coleção. Detalhando esse olhar
inicial, iniciei um projeto de pesquisa que vem se desenrolando há décadas.
Tendo retrabalhado esse projeto desde 2022, ele ficou extenso para ser colocado aqui de vez, por isso, estou optando por apresentá-lo em partes, facilitando, espero, a leitura e os caminhos que possam ser abertos, aprovados ou questionados. O veículo blog me pareceu uma alternativa. Estou à disposição... por aqui ou por este contato:
elisabetmoreira2014@gmail.com
[1] LOTMAN, Iúri M., "Sobre o Problema da Tipologia da
Cultura" in Semiótica Russa, São Paulo: Perspectiva, 79, p.32