Para esta Parte II de minha pesquisa Marcas de Ferrar apresento estas análises tendo como referência Ariano Suassuna e Guimarães Rosa... como um folhetim, continuarei a apresentar outras considerações em outros textos e autores... talvez seja mais proveitosa esta leitura aos poucos.
MARCAS NA
LITERATURA: FERRANDO GENTE E GADO
Ariano
Suassuna (1927-2014), em seu romance A Pedra do Reino, utiliza-se de
alguns desenhos, típicos de ferros, e faz alusões à sua simbologia. Com a
devida licença:
"...é
que, na espádua esquerda de Dom Pedro Sebastião, tinham ferrado, a fogo, um
ferro desconhecido e que não é nenhum dos ferros familiares de ferrar
boi do Sertão da Paraíba! Eu sei, porque no nosso "Instituto Genealógico e
Histórico do Sertão do Cariri" temos um arquivo e registro desses ferros,
arquivo que eu organizei por sugestão do Doutor Pedro Gouveia!
-
Você ainda se lembra como era o ferro?
- Me
lembro como se fosse hoje, Excelência! Era uma espécie de lua, ou melhor, para
ser mais fiel à nobre Arte da Heráldica, um crescente, com as pontas viradas
para cima e encimado por uma cruz.
- A
marca do ferro na espádua de seu Padrinho era
recente?
- A
queimadura era recentíssima! Quando a gente entrou na torre, sentia-se ainda a
catinga meio fumaçada e polvorenta de carne de bicho ferrada!
- E
não havia nenhum sinal do fogo onde esquentaram o ferro?
- Nenhum, Excelência! Eu não já expliquei que no aposento elevado da torre da capela não havia nada, a não ser o sino?" [1]
A partir dessa descrição “uma espécie de lua, ou melhor (...) um crescente, com as pontas viradas para cima e encimado por uma cruz”, visualizamos o ferro descrito. Justaposição de um símbolo muçulmano (o crescente) e um símbolo cristão (a cruz). Uma leitura subliminar dessa imagem indica, pela posição (encimado), que a cruz parece dominar ou subjugar o crescente. Assim, como na História da cristandade que nos foi contada, através das Cruzadas pela libertação de Jerusalém nas mãos dos “infiéis” muçulmanos.
Se “no aposento elevado da torre da capela não havia nada, a
não ser o sino?" essa pista, esse
sino, também não representa/simboliza o signo/adivinha que invocara Pedro
Quaderna um pouco antes: "Para o meu enigma, portanto, só um Decifrador
brasileiro e de gênio!" (p.293)
Suassuna,
ou Quaderna, nos desafia, pois, para esse “crime indecifrável” em um “sertão”
imaginário, entre cavalhadas e emblemas, de lutas entre mouros e cristãos, de
narrativas lendárias da Pedra do Reino em seu romanceiro epopeia.
Para decifrar o crime em si,
suspense na trama da narrativa, é a
Semiótica que vai nos dar as pistas nesse horizonte simbólico. Vista como a teoria
geral das representações, que leva em conta os signos em todas suas formas e
manifestações que assumem - linguísticas ou não – a Semiótica enfatiza o
significado que lhes atribuímos. Por aqui caminhamos. E vamos procurar chegar
ao cerne dessas leituras, decodificações em processo.
Também Guimarães Rosa (1908-1967) em A Hora e a Vez de Augusto Matraga "ferra" o seu personagem-título:
"E,
aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o
ferro com a marca do gado do Major - que soía ser um
triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com chiado, chamusco
e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas recuaram todos, num
susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto, medonhos." [2]
A
imagem descrita é facilmente visualizada: “um triângulo inscrito numa
circunferência”.
0
triângulo, na concepção católica, representa três pessoas divinas numa só. E quem
"cura" Matraga são três: o casal de pretos pobres e o padre. A
circunferência, o círculo, não é menos simbólico e mágico: sem princípio nem
fim, tem uma energia poderosa. Protege de espíritos maus além de envolver e
prender a energia mágica que, descrita e enfatizada em rituais antigos, é necessária
para a concentração.
Realmente,
é nesse instante da narrativa, um corte fundamental, que se inicia também uma
nova fase da vida do pecador Matraga. Mesmo que tenha caído numa alegoria do abismo,
é, paradoxalmente, o instante em que o personagem "viveu", para
purgar seu passado até sua redenção, quando chega sua “hora e vez”.
É evidente que a função literária, artística, perseguida por ambos os escritores citados, vai além de uma possível simplificação da simbologia nos ferros, fazendo parte intrínseca do entendimento da narrativa.
Em A
Hora e a Vez de Augusto Matraga, o ferro é a própria marca do pecado, é a
violência não só física, mas o estigma do mal. Ou do bem? A marca de Deus ou do
Diabo? O Major representaria o quê, ao lançar Nhô Augusto na desgraça ou na
salvação? Poderíamos separar com nitidez esses limites? Dá para decifrar o
significado destes indicadores sígnicos? A leitura não se fecha numa única exegese.
Ao contrário, desafia gerando uma cadeia de significações e possibilidades.
Outro
índice simbólico está no lugar da marcação. Enquanto Nhô Augusto é marcado na
“polpa glútea”, isto é, no traseiro, humilhação ainda maior, em Suassuna, Dom
Pedro Sebastião é marcado na “espádua esquerda”, ou seja, no ombro, com esse
vocábulo talvez mais nobre: “espádua”. Aliás, “polpa glútea” também é mais
honroso e erudito – afinal Guimarães era médico - do que seu correspondente
vulgar: o traseiro ou outro jargão escatológico. Tem ares de um literatura
cavalheiresca, se assim podemos caracterizar o estilo desses grandes nomes de
nosso cânone literário. Um respeitoso leitor também deve segui-los...
[1] SUASSUNA, Ariano, Romance D'A PEDRA DO REINO e Príncipe do Sangue do Vai-E-Volta. Rio: José 0lympio,1976, p.294
(2) ROSA, J. Guimarães, A Hora e a Vez de Augusto Matraga in Sagarana. Rio: José 0lympio, 1976, p.335