De abril para maio, continuação desta pesquisa no blog... observações excelentes me foram feitas no pessoal. No entanto, acredito que continuar apresentando a pesquisa, recortando-a, propicia outro olhar além do informativo: reflexões sobre essa prática, evolução e objetivos.
MARCAS NA ARTE E NA HISTÓRIA
Suassuna, Rosa e Alencar (como vistos na parte anterior, nesse blog) movimentam seus heróis do sertão num
tempo e num espaço todo simbólico, embora com distintas variantes e intenções. E,
por isso, não estranhei quando, entrevistando gente mais antiga, falou-se com
muita seriedade do poder das palavras e das atitudes.
Como
ferrar o gado somente na lua nova ou lua cheia para garantir a reprodução do
rebanho. E se benzer para se livrar da peste, curar o boi no rastro, espantar o
demônio e as visagens que rondam esses cafundós.
Na
"planta de ferro” do dono ou do ferreiro, esclareceu-me, velhinho e
doente, Pedro Brás, grande artista segundo consenso, que o saber do ferreiro é
fundamental, para não "empastar" na hora da ferração, para que um
desenho não seja igual a outro - detalhe imprescindível - não só para assegurar
a propriedade, mas para a Arte.
Esse
direcionamento para a Arte não pode passar despercebido: da diferença entre a
arte utilitária - que se vê principalmente hoje, nos ferros feitos com aço
inox, encomendados pela Internet - e o cuidado artesanal do ferreiro,
trabalhando e modelando o ferro do cliente.
Na dissertação de mestrado de 2012 da autoria de Daniella Lira
Nogueira Paes, no portal do Iphan “Sob os signos das boiadas: as marcas de ferrar
gado que povoam o sertão paraibano” (1) há fotos
de uma oficina de produção artesanal de ferros de marcar ainda em funcionamento
naquele ano.
Aliás,
observei que até mesmo um ferro de marcar, enferrujado, pode ser vendido nos
leilões de antiguidades para gosto – ou negócio - de colecionadores.
E, como peça de museu, no Cais do Sertão, em Recife, há alguns ferros em
exposição, assim, como, certamente, os há em outras ocasiões e lugares. Valores
e significados vão desde o apreço individual até a peça de museu, o que fica
como memória ou referência histórica de usos e costumes.
Desse modo, temos os objetos em
dupla perspectiva de observação: nós os olhamos e os admiramos, assim como esses
objetos nos olham. Narrativas e desafios nesses olhares e talvez a posse de uma
referência que nos justifica como ser histórico.
No
ferro, há uma ou mais pontas que se fundem num cabo. Para proteger a mão de
quem ferra, do calor em brasa, insere-se no cabo um complemento de segurança que
pode variar de madeira a um osso de animal. Sempre rústico, tenho um ferro cujo
cabo é uma espiga de milho já seca, que deve ter sido uma alternativa bastante
útil nessa hora.
“Dono,
se gosta, pode fazer bule, bota, a "moldura" que quiser”, na fala de
Pedro Brás. Até me contou de um ferro, em Carnaíba, BA, na forma insólita de
uma garrafa. E que seu dono é um beberrão contumaz. Nesse caso, penso que seja uma
leitura intencional na marca do ferro desse vaqueiro ou uma espécie de humor, talvez
ironia neste universo em que o Poder marca além do couro do boi. Uma marca alternativa,
questionando o mundo dos ricos fazendeiros e do próprio artesanato.
Entretanto,
usual mesmo, é o ferro de marcar feito com base nas letras iniciais do
proprietário. Em geral uma letra básica, simplificando o visual dessa identidade.
Assim como o nome de batismo é uma marca que me distingue, o ferro reproduz
minha conquista, minhas posses de direito no mundo em que habito. A partir do
desenho básico, detalhes aparecem, determinando inclusive leituras familiares, parentesco
e até os compadrios.
O certo
é que o costume de ferrar os animais - e gente - indicando uma propriedade, uma
posse, um símbolo de poder e dominação, está associado a fatores históricos,
sociais e econômicos, remontando a priscas eras, passando por impérios e
civilizações, uso espalhado em várias geografias.
Com a pesquisa facilitada nestes tempos de internet, de pdfs e similares, há alguns trabalhos que corroboram tais observações. Na ilustração a seguir, detalhe da cópia de uma pintura de parede do túmulo de um homem chamado Nebamun que viveu no Egito, cerca de 1475 a.C, observam-se trabalhadores negros da região, ocupados na marcação do gado a ferro quente. Ainda que não tenhamos conhecimento do desenho dos ferros, infere-se que a marca certamente era a garantia da identificação e propriedade do rebanho. (2)
Marcas a ferro
quente também foram usadas para criminosos condenados, proporcionando um
registro criminal humilhante e indelével. Na história jurídica ocidental
registram-se usos e abusos desta prática.
No século XVI,
após a chegada de Colombo à América, o conquistador espanhol Hernan Cortés introduziu
a marcação a ferro,
usando três cruzes cristãs para marcar seu gado e cavalos. À medida que a
pecuária se espalhava pelos campos abertos, as marcas para mostrar propriedade
se desenvolveram em uma heráldica semelhante aos brasões usados nos regimentos da cavalaria. Séculos
seguintes, para evitar a duplicação de marcas e dar proteção legal aos
proprietários de gado, governos aprovaram leis de marcas exigindo o registro
de todas as marcas e tornando crime a alteração de marcas registradas.
No Brasil, não foi muito diferente. Com a colonização e a pastagem do gado, o uso dos ferros se disseminou de norte a sul, com algumas particularidades regionais. Bastante citada é Ana Pimentel, mulher de Martin Afonso de Souza, quem primeiro trouxe gado para o país, desembarcado em São Vicente, SP, em 1534. Ainda no século XVI, já havia marcas de gado registradas no Rio Grande do Sul. (3)
Também foi em meados desse século que os primeiros escravos africanos chegaram ao Brasil e traziam a pele marcada a ferro quente. Laurentino Gomes narra o ritual das marcações de nossa história colonial, demonstrando o horror vivido pelos negros cativos e como aquela era uma prática além do corpo, de um sistema organizado no lucrativo mercado de escravos.
"Antes de partir, os africanos eram marcados com ferro
em brasa. Em geral, recebiam sobre a pele quatro diferentes sinais. Os que
vinham do interior, já chegavam com a identificação do comerciante responsável
pelo seu envio ao litoral. Em seguida, o selo da coroa portuguesa era gravado
sobre o peito direito, indicação de que todos os impostos e taxas haviam sido
devidamente recolhidos. Uma terceira marca, em forma de cruz, indicava que o
cativo já estava batizado. A quarta e última, que poderia ser feita sobre o
peito ou nos braços, identificava o nome do traficante que estava despachando a
carga. Ao chegar ao Brasil, poderia ainda receber uma quinta marca, do seu novo
dono — o fazendeiro, minerador ou senhor de engenho para o qual trabalharia até
o fim da vida. Os fugitivos contumazes teriam, ainda, um “F” maiúsculo (de
“fuga” ou “fujão”) gravado a ferro quente no rosto. Em Angola, o trabalho de
marcação dos escravos chamava-se carimbar (de carimbo, palavra que, em idioma
quimbundo, significa marca). Era executado por um funcionário do governo
conhecido como “marcador de negros” e supervisionado por outro chamado de
“capitão das marcas”.
O ritual de marcação era assustador. Primeiramente, o
“marcador de negros” colocava o carimbo de metal, com uma longa haste de
madeira, sobre carvão em brasas até que ficasse incandescente. Em seguida, com
a ajuda de vários assistentes, imobilizava o escravo. O local a ser marcado era
então coberto com cera e um pedaço de papel lubrificado com óleo. Desse modo,
evitava-se que a pele grudasse ao ferro quente e fosse arrancada durante a
operação. A dor da queimadura era excruciante. Os cativos urravam e se debatiam
ao sentir a aproximação do metal em brasas e precisavam ser fortemente contidos
pelos assistentes do “marcador”, que lhes seguravam as pernas e os braços. Nos
dias seguintes, enquanto as feridas cicatrizavam, as marcas de sua nova
identidade iam ficando cada vez mais visíveis". (4)
Também
negros escravos, pelo menos no Nordeste, como citado pelo viajante inglês Henry
Koster, em seu diário Viagens ao Nordeste do
Brasil, escrito no início do século XIX e traduzido por Câmara Cascudo, podiam criar animais domésticos, como galinhas e porcos
e, “ocasionalmente, um cavalo para alugar e possuir o dinheiro assim obtido.” (5)
Entretanto, o lugar da marcação do cavalo do escravo era
diferente, pois este animal era comumente marcado na coxa direita com a marca
de seu dono, mas os animais de propriedade dos escravos deviam ter a marca na
coxa esquerda. Embora lhe fosse proibido ter posses, o costume instituiu essa
práxis diferenciada. Uma vez escravo, sempre escravo...
Na ilustração “Slave branding”, ou seja, marcação de um escravo:
Recentemente, soube de uma história inquietante, um
fato singular que, de alguma forma, mostra o olhar violento e sádico do
dominador sobre seu semelhante ali subjugado. Em 1860, em Iguatu, Ceará, a
proprietária de uma grande fazenda marcou crianças escravas. Seu nome era
Bernardina Maria de Oliveira; o marido era um coronel, Antônio Alves, que
escravizava indígenas e negros. Como antecedente, há também uma história de
violência e vingança. Um dos filhos foi assassinado e dois outros filhos
vingaram a morte do irmão. Quando a polícia veio prender os assassinos, o
coronel armou seus escravos e jagunços, recebendo-os à bala.
Morreram 31 escravos e os 16 policiais. Foram tantos
mortos que se construiu um cemitério na estrada, que ainda existe. Depois
disso, veio um destacamento da capital para prender o coronel, já com quase 80
anos, que foi mandado para a Ilha das Cobras, hoje Fernando de Noronha. A
esposa ficou na fazenda e fez essa marca para o ferro, a fim de manter o
patrimônio do marido. Foi quando começou também a ferrar crianças. Dizem que
ela colocava as crianças em disputa numa corrida; quem perdesse era ferrada no
traseiro.
Decodificar o desenho do ferro é difícil, um exemplar
com muitos detalhes. Inclusive porque, a depender do ângulo em que ele se
coloca, apresentam-se mais desafios. Basicamente, sobre uma curva acentuada, há
um paralelismo em duas pontas - talvez uma representação do casal – e de seus
filhos no outro extremo, em pequenos “puxetes”, retas e curvas.
Entretanto, para ilustrar essa triste história, depois de oito anos da prisão do coronel, os escravos da fazenda fizeram um motim, mataram a mulher e fugiram. Aos 90 anos, o coronel recebeu um indulto do governador, retornou, e tudo tinha se acabado, restavam apenas ruínas. Entrou em depressão e acredita-se que tenha se matado.
(1) Apud A estética armorial dos ferros-de-marcar na obra de Ariano Suassuna e Manuel Dantas, de Daniella Carneiro Libânio de Almada in https://www.pluralpluriel.org/index.php/revue/article/view/131 nº 17 – 2017 - Acesso em 21/07/2022
(2) https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nebamun_Supervising_Estate_Activities,_Tomb_of_Nebamun_MET_DT11772_detail-7.jpg . Nota: Detentor dos direitos autorais da ilustração: https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/
[3] http://www.nordesteweb.com/not09/ne_not_20010903d.htm (Acesso em 04/04/22)
[4] GOMES, Laurentino. Escravidão – volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. Páginas 281/282.
[5] KOSTER,
Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Vol. 1. 12ª ed. Rio-São
Paulo-Fortaleza: ABC Editora, 2003.
(Continua...)