"Em verdade vos digo: Tudo o que ligardes sobre a terra será ligado também no céu, e tudo o que desatardes sobre a terra, será desatado também no céu.”
(Bíblia, Mateus: 18:18)
“O homem é amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu.”
Max Weber (citado por GEERTZ, Clifford)
Ao ler Mircea Eliade, Imagens e Símbolos (São Paulo:
Martins Fontes, 1996) e ter sido convocada a apresentar o capítulo III “O “Deus
Amarrador” e o Simbolismo dos Nós”[1]
para um grupo de pesquisa de estudos do Imaginário, do qual faço parte, me
senti motivada a pesquisar o assunto, em mais relações e significados que
transitam pelo imaginário coletivo.
A referência a um “deus amarrador”, Varuna, na mitologia
védica indiana, imediatamente me trouxe também a lembrança da “Nossa Senhora
Desatadora de Nós”, que ouvira há algum tempo e me chamara a atenção pelo
inusitado. Sabemos que existem centenas de nomes e atribuições à mãe de Jesus,
dentro da teologia cristã, mas essa titulação é realmente insólita, assim me
parece. No entanto, o texto de Eliade mostrou o quão pertinente ela pode ser,
reproduzida como um arquétipo, um paradigma que atravessa a história, como
imagem e símbolo.
Não pretendo fazer um resumo pari passu do capítulo de
Eliade, mas, a partir da imagem desse “deus amarrador” ou “ligador”, construir
um paralelo entre essas duas referências e sua simbologia, que não deixa de ser
também uma visão semiótica na leitura desses signos, passível, é claro, de
observações, complementações e discordâncias.
No mito do “Deus Amarrador”,
Varuna, Eliade mostra que, dentre as atribuições desse deus soberano (Terrível)
está a magia, por meio da qual ele combate os deuses guerreiros. Desse
modo, Varuna consegue equilibrar o mundo. Como? Armas que se revelam, muitas
vezes, sob a forma de um laço, do nó, seja ele concreto ou figurado. O deus
guerreiro é Indra, ao contrário de Varuna, que salva as vítimas “amarradas” por
Varuna, “desamarrando-as.” (Eliade, p. 90)
Estudos mostram que grande parte
das culturas politeístas tem um deus considerado amarrador, que amarra, captura
e imobiliza seus inimigos. Mas, geralmente, há também um deus “desamarrador”.
Diversas culturas ligam as “amarras” a divindades nem sempre boas, demoníacas
muitas vezes. Na ambivalência mítica, não há como deixar de relacionar Jesus,
filho de Deus, e seu contraponto, o demônio, na eterna luta entre o Bem e o
Mal. No evangelho bíblico de Marcos 5, 1-20, ele “liberta”, “solta” o
endemoninhado ao exorcizá-lo, desprendendo-o das correntes e grilhões de
Satanás.
Para entendermos o imaginário que se depreende não só desse mito, suas imagens e símbolos, precisamos acompanhar o rescaldo extraordinário do ser humano em suas inquietações espirituais. Apresento preliminarmente essas duas imagens, selecionadas no Google, para uma primeira - e ligeira – comparação visual.
Varuna é o “deus
amarrador”. Um deus cósmico, original. Nessa escultura (sem data) no templo
Rajarani em Orissa, Índia, vemos o fio (corda) que passa pelos seus dedos da
mão esquerda, envolve seu corpo e fica atado no que parece um tronco de árvore.
Sem dúvidas um deus majestoso, ladeado por belos ornamentos, característicos da
arte indiana. A “corda” lembra uma serpente. Uma figura de mulher, diminuta, a
seus pés, do lado esquerdo, segura o que parece ser uma concha, símbolo das
águas e da fertilidade. Pode-se inferir sua posição de inferioridade e a
devoção ao deus.
Nossa Senhora Desatadora de Nós se origina
dessa pintura do artista alemão Johann Schmidtner, cujo original é de 1700. A
pintura encontra-se na capela de St. Peter, em Augsburgo, na Alemanha. Uma
Madona, representada como a invariante da Imaculada Conceição, cercada de
anjos, iluminada pela pomba, signo visual do Espírito Santo, tem em suas mãos
uma comprida fita branca cheia de nós, à esquerda, entregue por um anjo, e
lisa, à direita, numa alegoria de que desatou esses nós. Observe a expressão
facial desse anjo, como se nos dissesse: “Está vendo? Ela desatou os nós”. Sob
seus pés está uma meia lua e uma serpente. Em sua cabeça tem 12 estrelas, lembrando o texto de
Apocalipse 12.1 “Uma mulher vestida de sol, e a lua debaixo de seus pés, e uma
coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça.” Uma rainha do céu e da terra. Nessa
fita alegórica está evidente a polaridade “amarrador/desamarrador”.
Na pesquisa, fico sabendo que a inspiração para a criação do nome da “Nossa Senhora Desatadora de Nós” foi a frase de Santo Irineu, bispo de Lyon, no Século III: "Eva atou o nó da desgraça para o gênero humano; Maria por sua obediência o desatou". A oposição entre essas duas mulheres míticas, como muitas outras da própria Bíblia, putas e santas, estrutura a base ideológica da inferioridade da mulher, especialmente o aspecto subliminar de sua sexualidade. Somente Maria é a Virgem santificada. Ainda lembrar que a cobra, sob os pés da Madona, remete à história de Adão e Eva, ao pecado original, culpa e castigo, e ao simbolismo da serpente-princípio-do-mal, conexão que significa a origem de todos os males pela estreita relação entre a vida e o pecado.
Através da oração, do jejum, da ajuda do Arcanjo Rafael e do poder de Deus, Tobias liberta Sara dessa maldição e casa-se com ela. Depois volta à casa de seu pai com um remédio que o Anjo Rafael lhe mandara fazer e o pai fica curado. Isto significa que para que dois corações venham a se encontrar, é preciso desatar primeiro os nós. E assim é a mensagem fundamental de Nossa Senhora Desatadora dos Nós para os cristãos.
Nesse desenho estilizado de Varuna, podemos observar melhor
os detalhes de sua imagem e simbologia. Sentado na postura de lótus (Padmasana)
considerada um asana (ou postura) bastante avançada, preferida para meditação e
para se entoar mantras. Uma postura que “permite” que você suba ao céu e ao
mesmo tempo permaneça plantado no chão. O triângulo formado por ela simboliza
conhecimento, vontade e ação, os fundamentos de uma prática da Yoga.
O deus se apresenta com fitas, laços e nós que envolvem seu colo e passam pela sua mão direita. Inclusive há várias linhas que o envolvem, como se fossem extensões do deus, até mesmo nos cabelos. Na mão esquerda segura uma concha, objeto de estudo do livro de Mircea Eliade, já que Varuna é também um deus lunar e aquático. O deus monta Makara, o monstro quimérico de características reptilianas. Makara é a matriz do caos, o não manifestado; por outro lado, ele gera o tempo no sentido da dissolução, a natureza cíclica. Varuna é, pois, aquele que dirige e põe ao seu serviço o plano material, não o destruindo, mas “domesticando-o”.
Ao atar um nó de forma concreta, física, a uma ideia, concepção, ou pensamento, estabelece-se uma conexão entre o nó (físico) e o pensamento do que se precisa ou se pede (mental). Rituais, sortilégios, superstições, crenças e tantas outras designações abrangem esse caráter mágico do poder da mente, principalmente ligados à doença e à morte.
“Amarre o nó” (2024), meok e acrílico
sobre hanji. Moonassi. (Imagem compartilhada com permissão). https://www.thisiscolossal.com/2024/02/moonassi-murmures/
Amarrar um barbante no dedo com um
nó para não se esquecer de algo é (ou foi) um exemplo bastante comum dessa
relação mágica e poderosa, assim como os “laços” no casamento para a união dos
noivos. Hoje, ostentar pequenos laços coloridos implicam em campanhas de
conscientização de saúde ou de cidadania. Múltiplos significados se avolumam em
diferentes propósitos ou interpretações.
“Mas é justamente essa imprecisão e essa instabilidade que
são interessantes do ponto de vista fenomenológico, pois elas desvendam a
tendência das “formas” religiosas a se interpenetrarem e a absorverem umas às
outras. Esta perspectiva dialética só pode ajudar a compreender os fenômenos
religiosos e arcaicos.” (grifos meus, Eliade, página 98)
Mas não é isso que vai ocorrer com muitos fenômenos atuais
como a devoção a “Nossa Senhora Desatadora dos Nós”?
A simbologia do “fio da vida” é de seu destino humano, tecido
desde seu nascimento. “Resulta daí que
um simbolismo tão denso exprime duas coisas essenciais: por um lado, que, no
Cosmos como na vida humana, tudo está ligado através de uma textura invisível:
por outro, que certas divindades são as mestras desses “fios” que, em última
análise, constituem uma vasta “amarração” cósmica.” (Eliade, p. 112)
Enfim,
este assunto é inesgotável e um desafio para outros estudos. O tema dos laços
tem incontáveis variantes, seja na mitologia ou na iconografia, como imagem de
enlaçamento ou como forma de arte ornamental sob a figura de nós, entrelaçados,
fitas, cordões, redes e outras. No seu sentido mais geral, representam a ideia
de ligar, sabendo-se, no entanto, que o fim último do ser humano é libertar-se
dessas “amarras”.
O nó é,
pois, um símbolo complexo que integra vários sentidos importantes, relacionados
com a ideia central de conexão fechada. É nele que já reside o domínio das
espirais. O signo do infinito ou 8 na horizontal constitui um entrelaçado, um
nó, manifestação dessa infinitude e representa o conceito do que seria a
eternidade, como algo que não tem um começo nem fim.
A partir de um ponto de vista religioso e místico, o símbolo do infinito pode ser interpretado como a junção do físico com o espiritual, num movimento eterno de nascimento e morte, luz e escuridão.
“Essa ambivalência do “amarrar” (...) vem
provavelmente do fato de que o homem reconhece nesse complexo uma espécie de
arquétipo de sua própria situação no mundo.” (Eliade, p. 116, destaque
feito pelo autor).
“O que parece mais certo é a tendência de qualquer “forma
histórica” a aproximar-se o máximo possível de seu arquétipo, mesmo quando ele
se realiza num plano secundário, insignificante: este fenômeno se verifica por
toda a parte, ao longo da história religiosa da humanidade.” (Eliade, p. 119)
Inicialmente, a imagem de Nossa Senhora Desatadora de Nós fora
criada figurativamente em um quadro, uma pintura, como vimos. Com o tempo, foi construída uma estátua para
ela e as imagens se multiplicaram.
Uma tia que conheci, velhinha e devota de Nossa Senhora
Desatadora de Nós, deixou esta pequena imagem como herança para a filha do
coração, em Recife, no final do século passado. Embora simples e modesta, a
santinha traz os elementos fundamentais de sua decodificação, desde a fita
entre os seus dedos, com os “nós” de um lado e sem nós do outro lado, ladeada
por dois anjinhos, apoiada sobre “nuvens”, uma meia lua e a cobra, símbolo do
pecado, vencida aos seus pés. Pequenos anjos seguram os dois lados de uma fita,
querubins que lembram os anjinhos de Rafael (aliás compare com a pintura
original), mas que simbolizam o seu papel de mediadores e auxiliares do
milagre. Ela se equilibra sobre nuvens (ideia do celestial) e tem a seus pés
uma meia lua e uma serpente enodada. A simbologia se confirma, ela tem o poder
celestial que “amarra” o demônio na visão da serpente. As cores são importantes
indícios de interpretação. O vermelho do vestido com contornos dourados é um
símbolo de sua majestade e o azul do manto é o da pureza a ela atribuída, sua
virgindade.
Ao lado, inseri outra imagem, visualmente mais bem apresentada,
vendida em lojas de artigos religiosos e em vários sites, inclusive no popular
Magazine Luiza.
De acordo com a explicação religiosa cristã, os “nós” são os
problemas e dificuldades do nosso dia a dia. As orações, pedidos e promessas
fazem parte desse lado da fé, acreditando que a Santa desate os nós de seus
“aperreios”, inclusive os financeiros. No sistema capitalista em que vivemos,
de custos e trocas, essa prática é comum, estendendo-se a outros santos
católicos, mediadores da fé. Nesse caso, qualquer forma idealizada – variante –
tende a se tornar universal, a reencontrar o arquétipo. Hierofania ou teofania,
vive pela manifestação do sagrado. A fé que traz significado para a existência.
Para finalizar, trazer ao contexto o título desta
apresentação, a ilustração e as epígrafes selecionadas, do ponto de vista
geral, simbólico, como o religioso das escrituras bíblicas e a reflexão na
própria filosofia. A cultura vista como uma teia de significações trançada pelo
próprio homem ou, ainda, como um conjunto de estruturas de sentido. As amarras
e tessituras nesse amálgama onde tentamos entender propósitos existenciais e
responder ao fundamento de nossas vidas tão precárias.
Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, fevereiro de 2024.
BIBLIOGRAFIA
E REFERÊNCIAS DE CONSULTA
Bíblia
Sagrada. São Paulo:
Edições Paulinas, 1971.
ELIADE,
Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo, Martins Fontes, 1996.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Antropologia social.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. p.15
CIRLOT,
Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.
Documentos
eletrônicos, via web:
·
https://pt.wikipedia.org/wiki/Nossa_Senhora_Desatadora_dos_N%C3%B3s
Acesso em 23 de
outubro de 2023
·
https://cruzterrasanta.com.br/historia-de-nossa-senhora-desatadora-dos-nos/35/102/
Acesso em 30 de outubro de
2023.
·
https://www.thisiscolossal.com/2024/02/moonassi-murmures/
Acesso
em 27 de fevereiro de 2024
[1] O
livro citado, disponível em pdf, tem o mesmo título, mas em outra tradução, da
COLEÇÃO Artes e Letras / Arcádia (Lisboa: Arcádia, 1979). Inclusive o capítulo
III denomina-se - O «Deus Ligador» e o Simbolismo dos nós”.